terça-feira, janeiro 11, 2011

Sobre reality shows

Escrito há quase três anos, numa ocasião como esta.

No dia 10 de janeiro de 2008, eu cheguei cansado em casa à noite. Deitei no sofá. O desejo veemente de descansar após um dia estafante de aborrecimentos, de profunda insalubridade. Acordara cedo aquele dia como de praxe. Não sou muito dado a assistir programas de televisão. Mas naquele dia estava sozinho em casa. Peguei o controle e pensei comigo. “Vamos ver o que está passando nessa caixa maluca”. Busquei ser razoável, consciencioso. Tenho pensamentos negativos sobre a televisão. Imagino aquelas pessoas que ficam expostas de 20 a 30 horas da semana diante das imagens. Julgo que isso é um exercício absurdo. Afirmo num acesso de deslocamento que a televisão brasileira precisa passar por um processo de reforma moral e educativa. Os programas em sua maioria são de péssima qualidade e de uma pobreza intelectual bastante indesejável.

Naquela noite eu busquei ser solidário, mas a minha aquiescência não sobreviveu às investidas dos fatos. Deti-me no Big Brother Brasil. Simulei uma experiência. Limitei-me. Arquitetei mentalmente que ficaria exposto àquelas imagens por uns 20 minutos. Todavia não suportei mais que dez. Vi um Pedro Bial tentando ser simpático. Esforçando-se para ser agradável. Expunha sua indigência intelectual. Justificava-se. No dia anterior insistira numa opinião equivocada. Errara sobre o similar de Dionísio na mitologia romana – Baco. Aproveitava o momento para fazer conexões despropositadas e vexatórias com os participantes do programa. A uma chamava de musa a outro de um dos personagens da mitologia greco-romana. Estava nítido que o sujeito desgraçadamente não levava jeito para ser animador de circo. Moços de corpanzil atlético; de jeito e maneiras saudáveis; com aparente autonomia intelectual. Por sua vez, moças de corpos sensuais, de seios fartos. Ou seja, em minha análise vejo que o que está em jogo é a corporeidade atlética dos participantes, a saúde física, pois o que se busca é o caos, o nascimento da mediocridade que se insinua por meio das imagens recepcionadas pelos telespectadores.

Vi às imagens de uma festa que acontecera um dia antes. Uma espécie de evento “com objetivo para potencial de orgia”. As investidas dos moços que, seminus, insinuavam os corpos na tentativa de requestar as moças participantes para um “programa” dês-compromissado. O álcool destrancava os sentimentos mais escondidos. Lançava fora os pudores. No fundo o que se buscava era justamente que essas tentativas se tornassem substanciais, pois há milhões de brasileiros assistindo àquelas imagens. O público está sedento por luxúria, leviandades e voyeurismo. O desejo dos telespectadores é que “aquele mundo” – o da dita casa – se torne no pior dos mundos. Isso alimentará com lixo as suas almas. A falência da moral é desejada; a penúria espiritual é o que o público deseja em sua veleidade atomizada.

George Orwell escreveu o livro 1984. Neste livro, o escritor insinua um controle do Estado através da televisão, instalada em cada residência, ligada a um maquinismo central controlador. Dessa base coordenadora seria possível controlar a vida dos cidadãos. O Estado “assistiria às ações dos seus súditos”. Esse ente controlador é chamado de “Grande Irmão” (Big Brother) por Orwell. Já no programa da Rede Globo há uma inversão. O "estado" é representado pelos telespectadores que espionam as ações dos participantes confinados naquela jaula cercada de câmeras. Todavia, no dizer de Muniz Sodré em seu excelente ensaio O Monopólio da Fala – Função e Linguagem da Televisão no Brasil, “a eficiência da dominação, portanto, consiste em ocultar, do melhor modo possível, o controle totalitário dos pensamentos, dos gestos, da palavra, enfim do desejo”[1]. Assim, com relação ao livro 1984 há paradoxalmente uma inversão, pois enquanto este mostra um estado de controle, no programa em questão as pessoas pensam que assistem, mas na verdade estão presas pelo feitiço do controle. Por intermédio do poder com potencial lúbrico e de simulacro da realidade que a imagem possui. De alguma forma o sistema controla os desejos individuais do consumidor final, aquele que ab-sorve as imagens. O telespectador representa um mundo de desejos e aspirações que precisa ser preenchido pelo poder controlador de um centro que estabelece o que é e não é em termos de riqueza cultural e estética. Ou seja, o telespectador é um viajante passivo, pois apenas recepciona sem interagir com as imagens. Trata-se de um pacote pronto que é lançado a ele. Cabe aceitar ou reprovar.

O poder encatátório das imagens penetra no mais íntimo da privacidade do indivíduo. Aonde ninguém chega a imagem chega, pois a individualidade supõe “separação”, “ruptura” com o outro. A imagem pré-estabelecida por uma equipe técnica com as ânsias do mercado, promove um desfecho para a trama, que necessita ser a pior possível, pois os consumidores do produto precisam de intrigas triviais e relações banalizadas. Desse desenlace brota o lucro e o controle. O controle ideológico não é estereotipado. Não aparece aprioristicamente. Os verdadeiros ladrões não roubam fazendo escarcéu. Eles buscam o silêncio discreto – o mais que possam. Da mesma forma, o controle ideológico da mass-media busca eliminar com ‘uma aparência’(e aí está o nó-górdio da pós-modernidade) a questão de sua verdadeira finalidade, insinuando como ‘natural’ a necessidade geral de uma informação centralizada e abstrata[2].

Abaixo segue um texto escrito por Frei Betto. Em 2002 ele escreveu estas palavras publicada no sítio ADITAL. O texto é poético em sua essência e denuncia o abandono daquele que se devota diante do programa.

Reality Show
Frei Betto

Sim, quero ver a tua vida em detalhes, minuto a minuto, e ouvir as palavras que jorram de tua boca, rir o teu riso e enraivecer-me com o teu rancor, assistir à tua paquera, ao teu namoro, ao teu gesto de carinho, à tua transa, espelhando tua beleza em minha indigência.
Quero deixar de lado amizades, trabalhos, livros e lazer e, de olhos pregados em tua magia, absorver a tua arte de movimentar-se no labirinto da quimera, livre de dores e afazeres, mergulhado na fama e na fortuna.
Venerarei o teu ócio na vitrine, exibindo-te sem pudor a milhões de olhos, despido por infinitas imaginações, liberto das grades odiosas dessa existência de penúria anônima, escrava da rotina atroz de quem jamais aprendeu a voar, nem foi aquinhoado pela sorte. Abrirei em meu monitor a porta da tua casa mágica e, sob o peso de minhas carências, ingressarei virtualmente em tua liberdade, no teu gozo, no teu charme, no teu riso, na tua sensualidade, como quem toca com os olhos os veneráveis ícones que nos fazem transcender da mediocridade cotidiana.
Minha fidelidade ao teu exibicionismo será a chancela que sacramentará a tua vida como real e, do lado de cá, buscarei a alforria de minha indigência em tuas loucuras, em teus jogos e em tuas danças. Quero decifrar em ti a minha própria intimidade, rasgar a minha alma em tuas mãos e deixar a minha mente impregnar-se dessa ilusão que faz de mim teu pequeno irmão.
Recobrirei a minha realidade com a tua fantasia e farei de teu espetáculo o brilho de meus olhos vazados, nessa permuta hipnótica de quem busca a complacência com seus próprios limites para tentar encobrir a mesquinhez que me corrói. Ficarei atento ao teu banho, ao teu sexo, à tua ira e às tuas refeições, fiel à exposição perene deste teu ser desprovido de preocupações e conteúdos, entregue a esta liberdade que faz de ti o que não sou, e me permite projetar em teu vigor as minhas fraquezas e em teu esplendor o sabor amargo de meu anonimato.
Verei em tua janela, que se abre para a minha casa, a subversão de todos os valores, como se nos cômodos que te abrigam findassem todos os princípios, escorrendo pelo ralo tudo aquilo que num lar soava como sinônimo de família. Ampliados pela eletrônica, meus olhos contemplarão as tuas intimidades mais ousadas. Sentirei os teus odores e beberei o teu suor.
Esticarei o meu olhar até os limites proibitivos do escárnio e, quem sabe, verei o teu rancor extirpar toda a inveja que jaz em meu peito e a tua voracidade explodir em taras que haverão de suprir os meus desejos mais ignóbeis e saciar as minhas pulsões mais abjetas. Deste lado da tela, sentirei os teus sentimentos e comungarei as tuas emoções, vendo-te virar pelo avesso nesse zoológico de luxo, exposto à multidão como carne no açougue, a engordar no balcão do voyeurismo a gorda soma dos teus patrocinadores.
Em ti livrar-me-ei de todo ideal que não seja fazer da vida um jogo de entretenimentos, a sedução epidérmica como sucedâneo de quem não atinge as profundezas do amor, vendo-te representar a ti mesmo sob os aplausos invejosos de meu olhar sequioso, preso ao teu desempenho huit-clos.
Aprisionarei a tua vida em meu olhar, tornar-me-ei teu carcereiro eletrônico, decidindo o teu presente e o teu futuro, absolvendo-te ou condenando-te, juiz supremo que se ignora refém do próprio equívoco.
Inebriado com as tuas loucuras, te elegerei objeto supremo de minha admiração, deixando-me devorar pelo teu sucesso, do qual farei tema de todas as minhas conversas.
À espera de que os corvos venham devorar o meu coração, e agora que a nossa história foi para os quintos dos infernos, quero ser consumido e consumado por ti, arrancando de meus olhos todas as escamas, até que eu possa ver também ao vivo, na busca desenfreada de audiência, o marido espancar a mulher; o filho estuprar a mãe; o pai assassinar a filha; enfim, o horror, pois sei que o show não pode parar e que o seu limite é não ter limites.

31 de janeiro de 2002
Fonte: ADITAL

[1] SODRÉ, Muniz, O monopólio da Fala – função e linguagem da televisão no Brasil, Editora Vozes, Petrópolis – RJ, 1978, p. 45.
[2] Idem, p. 49


Por Carlos Antônio M. Albuquerque

2 comentários:

Anônimo disse...

Carlinus,
Que texto incrível !!
Eu não gosto de televisão, principalmente essa tvzinha que se faz, mediocre e rasa. Quando me atenho em frente a tv prefiro os canais abertos com curiosidades e programas de história, educativos e que realmente me tragam algo de substancial.
Quanto ao Big Brother ... você já disse tudo, eca !!!

abraço

Carlinus disse...

Carla, obrigado pelo comentário. Já havia postado esse texto há algum tempo, mas como hoje começa o famigerado programa global, resolvi trazê-lo à tona mais uma vez.

Menos televisão; mais livros, música de qualidade e afetos para todos nós.

Abraços imensos!