terça-feira, agosto 26, 2008

As secas vidas de vidas secas

“(...) já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos”.

Graciliano Ramos (Angústia)

Graciliano Ramos é um dos mais importantes escritores de toda história da Literatura Brasileira e mundial, também. O escritor alagoano conseguiu pintar páginas de um impressionante realismo em seus livros. Trata-se de uma literatura funda, existencial, em que as paisagens interiores dos personagens se entrelaçam numa complexidade crescente. O homem interior, psicológico, é agudizado se tornando uma projeção daquilo que existe no exterior. O que importa para Graciliano não é o ambiente necessariamente a priori, mas o personagem com suas complexidades que constitui o centro da narrativa. Ou seja, o ambiente é um elemento necessário; mas, o personagem com sua densa carga de diálogos e complexidades interiores, é que constitui a vida romanesca.

A geração de 30 escreve romances seguindo a tradição dos naturalistas/realistas europeus e brasileiros do século XIX. Com isso significa dizer que o que é narrado é verossímil, é semelhante à verdade. Não há quebras de leis físicas ou biológicas, não há intervenção de forças divinas ou diabólicas. O romance de 30 fixa diretamente estruturas históricas perfeitamente identificáveis por suas características econômicas e sociais. Os romancistas de 30 têm uma postura crítica – que se bem interpretado, pode ser visto como uma atitude panfletária – em relação às características políticas, sociais e econômicas das estruturas históricas apresentadas. Vê-se ainda no romance de 30, algo que o distingue dos realistas e naturalistas do século XIX, que é a possibilidade. Ou seja, apesar da desordem e do caos instalado na sociedade (mundo) há um otimismo na transformação do homem, na passagem para um estado novo, de maior satisfação para a vida (DACANAL, 1986, p.13-15).

Graciliano Ramos constrói uma espécie de “realismo socialista”. Não há fantasias no escritor, apenas o real com as cores da tragédia da vida. A tragédia social está depositada nos ciclos da natureza. Os personagens são objetos da articulação malfadada da vida. São vítimas da articulação da vida, do modo deteriorado pelo qual os gestos humanos se cosem e descosem num tecido em que natura e cultura se confundem em fios de sol, aspereza, esterilidade, animalidade, azedume, seca, alheamento, carência... toda arte de Graciliano está em saber fundir o ideológico e o ecológico. Numa linguagem concisa, onde só se escreve o necessário e o suficiente (RODRIGUES, 1979, p. 214).

Essa característica pode ser constatada em Vidas Secas. O romance ou novela, como referem alguns, é a história da estada de retirantes de uma seca sem data numa fazenda abandonada e encravada em um lugar sem nome. A Família de retirantes – Fabiano, Sinha Vitória, o Menino mais velho, o Menino mais novo, a cadela Baleia – ficam todos no lugar até chegarem as primeiras chuvas. Nesse mesmo local, permanecem mais tempo com o consentimento do dono da terra que, trazendo seu gado de volta, permite que Fabiano seja seu vaqueiro. A confusa e traumática relação com a cidade, a exploração sofrida junto ao patrão, ao comerciante, ao soldado amarelo, ao fiscal da prefeitura, são esses os conflitos por que passa a gente narrada por Graciliano. No seu meio, o campo, o conflito é com o próprio meio, sempre os obrigando arribar. E é assim que termina essa saga sem fim nem começo, escrita entre 1937-38, na qual impera não somente a ação dolorosa do meio sobre o homem, e sim, a impotência do homem pobre, analfabeto, esmagado por uma forte tradição de relações, diante de outros homens ditos fortes, sabidos, poderosos (MENDES, 2004, p.11).

O romance Vidas Secas é escrito em terceira pessoa e enfoca os modos de ser e as condições de existência, segundo uma visão distanciada da realidade. Graciliano envolve a seca, o latifúndio, o drama dos retirantes, a caatinga, a cidade. Dentro dessa estrutura rigidamente construída, fica claro que os personagens não conseguem o que desejam. O que prevalece são “o que as circunstâncias impõem, gestos, intenções, desejos e esforços, [e no mais] tudo se torna inútil”(NICOLA, 1998, p.363).

Um dos protagonistas do romance é Fabiano. Fala-se em “um dos protagonistas”, pois o sertão é também um dos principais agentes da obra. Fabiano não possui sobrenome, do seu passado é ressaltado apenas o fato de se tratar de uma linhagem de vaqueiros servis, o que constitui uma certa hereditariedade da miséria. É analfabeto e traz consigo uma vontade repelida: não sabe falar direito e se relacionar com os outros homens, sobretudo com os da cidade. Vive com a família no isolamento de uma fazenda de gado esquecida, onde ensina aos filhos o seu ofício e teme a chegada de mais uma estiagem. Graciliano se utiliza do discurso indireto livre na obra. Os personagens pouco falam, pouco se expressam. Afirmam-se por meio de uma fala inexpressiva e gutural (“Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas”).

Fabiano é um tipo de homem em que é perceptível a ausência dos aspectos básicos do ser humano. Falta a ele um perfil fundamental da sua condição humana que é a dignidade. A consciência que ele tem de si mesmo é a mais atroz possível. Fabiano é um bicho, um animal que aprendeu a andar pelo mundo procurando uma sombra aonde se colocar (“parecia um macaco”). Ele não tem melhor sorte do que os demais seres. Afinal, ele é uma vítima das condições fulminantes, do aspecto agreste da paisagem sertaneja, que vitima tanto homens quanto bichos e os encerra à mesma condição – a luta pela vida.

Essa idéia faz dos personagens bichos (“Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos”). Fabiano assim como sua família se mostra alheada. Possuem características animalizadas. Aos animais não resta outra necessidade a não ser comer, beber, dormir e sobreviver. É uma espécie de luta primal que o meio impõe sobre os personagens. A natureza dita e sacramenta os desejos de Fabiano. Ele espera as estações, espera as chuvas, olha para o céu e sabe que os ciclos naturais ditam a sua sorte. O ressecamento interior do personagem, a ausência de dignidade, o alheamento, é uma derivação da paisagem exterior. Em suma, o que impera para Fabiano é apenas o desejo de sobreviver à semelhança dos animais. Estes constituíam os mais “civilizados” e corteses “colegas” de Fabiano (“Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais”).

O monólogo de Fabiano é mais interior do que exterior. Suas reflexões são densamente existenciais. O que está em jogo é o desejo de ser homem (“Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos, mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra”). O personagem busca uma posição idealizada, uma postura que o faça ser mais gente (“cabra”), mais homem. O personagem descobre-se na sua inanição, no seu estágio de bicho ignorante, ordinário, estúpido.
A rudeza da existência põe um pessimismo ácido e dilacerante nas percepções de Fabiano. “O pessimismo não é uma moral ou uma filosofia. É uma estado de alma” (CARPEAUX, 1998, p.235). Essa condição imprime no personagem uma forma peculiar de se apropriar do mundo. As condições reais do mundo instila em Fabiano um tipo de consciência crítica. Repete-se aqui a sentença de Marx de que as condições materiais do mundo constrói a consciência dos indivíduos.

Tal concepção mostra que a História não acaba se resolvendo na “consciência de si”, como “espírito do espírito”, mas que, em cada um das suas fases, encontra-se um resultado material, uma reunião de forças de produção, uma relação historicamente criada com a natureza e entre os indivíduos, que geração transmite à geração seguinte; uma massa de forças produtivas, de capitais e de condições que, embora sendo em parte modificada pela nova geração, prescreve a esta suas próprias condições de existência e lhe imprime um determinado desenvolvimento, um caráter particular (MARX;ENGELS, 2006, p.66).

Ou seja, percebe-se em Fabiano que as condições de sua existência, o monólogo travado consigo mesmo são um reflexo da tirania do espaço e do tempo. As suas concepções e percepções da realidade estão diretamente influenciadas por esta neblina do meio que obscurece a consciência que tem de si mesmo. A compreensão “ressecada” de si mesmo projetava-se de fora para dentro, mas a natureza e as condições reais da vida formaram a sua consciência.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CARPEAUX, Otto Maria, in, RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro/São Paulo. Editora Record. 1998. 240p.

DACANAL, José Hildebrando Dacanal. O Romance de 30 – 2ª. Edição. Porto Alegre. Mercado Aberto. 1986. 67p.

RODRIGUES, Medina A. [et al.]. Antologia Brasileira: textos comentados – volume III. São Paulo. Marco Editorial. 1979. 372p.

MENDES, Francisco Fabiano de Freitas. Ponto de fuga: tempo, fome, fala e poder em Vidas Secas e São Bernardo. Dissertação apresentada como exigência parcial a obtenção do grau de mestre em História Social à Comissão Julgadora da Universidade Federal do Ceará, sob orientação da Professora Dra. Ivone Cordeiro Barbosa. Fortaleza, 2004. 204p.

MARX, Karl; ENGELS, Frederich. A Ideologia Alemã – Feuerbach, A Contraposição entre as Cosmovisões Materialista e Idealista. São Paulo. Martin Claret. 2006. 157p.

NICOLA, José de, Literatura Brasileira – das origens aos nossos dias, Editora Scipione, São Paulo, 1998. 503p.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas – 29ª. Edição. São Paulo. Livraria Martins Editora. 1971. 175p.


Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

Um comentário:

Anônimo disse...

Trabalhar Vidas Secas nos faz viajar no inconsciente coletivo de um povo subjulgado pela força da natureza.
É conhecer um pouco da nossa história e sobretudo é ser sensível para perceber e se condoer com as mazelas que afligem o ser humano, seja fisica ou psicologicamente.
É indescritível a sensação de poder compartilhar as experiências colhidas nesta obra singular. Parabens pelo seu escrito!!!