quarta-feira, agosto 19, 2009

Mudança

Longe da fazenda, considerei-me fora da realidade e só. De fato, não estava só: várias pessoas transitavam por ali, ruídos vagos quebravam o silêncio. (...) Absurdo alguém viver num lugar onde se apertavam tantas casas.

Graciliano Ramos, in Infância, p. 43

No início do ano de 1.989 eu estava às vésperas dos dez anos. Um acontecimento extraordinário se deu. E isso desenhou contornos novos à minha vida. A minha existência se inclinou para outra direção. Foi um ano interessante para a minha família. Minha mãe era uma mulher de trinta anos; meu pai um homem de trinta e três anos; e meu irmão tinha apenas sete anos. Fomos visitados pela surpresa. Com certeza esse acontecimento mudaria a perspectiva da minha vida como estudante. Deixaria a escola rural. Lá estudei até a terceira série do ensino fundamental. Já sabia assinar o nome. Caminhava por estradas esburacadas quando ia ler. Intervalos volumosos. Gagueiras. Esforços no soletramento. Já havia vencido a cartilha. Estava num nível mais elevado. O livro agora tinha mais palavras e menos figuras, critério este, que para alguns, diferencia todo e qualquer livro.

Como acontecia naquelas paragens, muitos dos filhos daquela terra migravam para o centro-sul em busca de melhores condições para a sobrevivência. E assim havia se dado como Manuel Serafim que havia vindo para Brasília na década de setenta. Na capital do país chegara, constituíra família, arrumara um emprego e vivia com estabilidade na cidade satélite de Brazlândia. Chegara em Pernambuco no início de 1.989 – mês de fevereiro. Fez andanças. Visitou os colegas de infância. Foi à venda conversar com os matutos. Quando chegava alguém que morava num outro estado, a região inteira ficava excitada. Dizia-se, geralmente:

- Você viu, o filho de fulano chegou de...!?. Ou:

- Chegou de São Paulo, o filho de sicrano... – e assim se perpetuavam as novidades.

A minha fantasia também se colocava a trabalhar. Como seria esse novo mundo? Hoje, por exemplo, quando escuto a Nona Sinfonia de Anton Dvorak, “Novo Mundo” a compreendo e a sinto pelo simples fato de um dia ter experimentado as impressões de uma imaginação que brincava/brinca com a minha mente. Dvorak escreveu para descrever como os migrantes se sentiam ao chegar ao Novo Mundo, a América. Eu naquele tempo não conhecia o compositor tcheco, mas tinha nas paredes minha mente telas pintadas descrevendo estes mundos impressionantes. Contavam-me fora e eu os desenhava dentro. Por isso, imaginava esses novos mundos e os coloria com cores impressionantes.

O fato é que Manuel Serafim acabou encontrando meu pai. Fez promessas. Disse que levaria o meu pai para Brasília. No mês de março meu pai partia para Brasília. Ficamos eu, minha mãe e meu irmão sozinhos. Meu pai partia para criar condições, para que ao chegarmos a Brasília, não fossemos privados pela necessidade. Deixaria a minha terra. Partiria para um mundo estranho, novo. Como eram as criaturas. Meus nove anos me propiciava sensações agradáveis. Os meus pés calejados se afastariam da terra que nasci. Os meus banhos de riacho teriam cabo. Os coqueirais não mais tremulariam sob o vento para que eu os visse. Meus colegas seriam deixados. As cabras e bodes não mais seriam pastoreados por mim. A lenha na mata não teria mais necessidade de ser buscada. Iria embora a ameaça dos espíritos das matas. Os canaviais seriam abandonados. A visão do engenho Cacimba totalmente embargado pelo tempo se diluiria na memória. Esboroamentos completos. Lapsos abruptos. Expatriamento a fórceps, não tinha como lutar contra a mudança inexorável.

Cinco meses ficamos esperando até que as condições foram criadas para que partíssemos. Nesse período, lembro-me nitidamente, que abandonei a escola. Achava-me livre das lições morosas. Da professora que trocava “árvore” por “arvore”. Do cocó volumoso no alto da cabeça. Das vestimentas largas. Dos meninos que gastavam os olhos na lição ordinária.

Finalmente, no dia 19 de agosto de 1.989, às 21 horas e trinta minutos deixávamos o Pernambuco e nos dirigíamos para o coração do Brasil. Um novo tempo se desenhava, como a paisagem que corria fora das janelas do ônibus da Itapemirim. Meus olhos tentavam se adaptar às novas paisagens. Cheguei à Capital Federal num domingo. Tempo frio, seco, desértico. Os entardeceres tinham conotações místicas. O ocaso possuía tonalidades diferentes. O sol todos os dias se escondia avermelhado. As árvores eram banhadas por focos psicodélicos de luminosidade acobreada. Tinha a impressão de ver no céu um olho vermelho sem pálpebra. Uma bola enorme, incandescente. Menino desinformado, sentia-me inferiorizado diante dos outros. Fui morar em Ceilândia Norte num local insalubre. No lote em que morávamos várias famílias se escondiam em barracos de madeira. Espantalhos tortos. O local se assemelhava a um cortiço. Nas noites longas e frias ouvia as discussões entre os casais.

Nos meus dias eu sentia saudades do Nordeste. Ficamos eu, minha mãe e meu irmão no barraco crivado de instabilidade enquanto meu pai trabalhava. O frio molestava-nos. Fiquei o resto do ano de 1.989 sem estudar. Não lembro se brincava com o meu irmão e que brincadeiras poderíamos efetivar. O fato é que sentia um saudosismo dos meus avós. Habitava em meu peito um buraco que somente cabia às minhas vivências pernambucanas. Minha mãe se alimentava de cartas e eu de vontade de ser uma carta. Queria poder informar os meus parentes e ambientações distantes sobre como estávamos em nossa saudade do tamanho deles.

Mudamos para um outro local na mesma vizinhança, contudo tratava-se de um local melhor, mais amplo, mais privativo. Fiz amizades com meninos da minha idade. Brincava de carrinhos. Nas tardes que se finavam num processo morredouro, eu com minha sensibilidade lembrava do Pernambuco. Como naqueles mesmos momentos, enquanto estava nos rincões pernambucanos, eu ia catar lenha na mata, apascentar o rebanho de minha mãe, brincar, correr, andar descalço, buscar água na cacimba. Tecendo essas memórias, amarrando idéias e desembaraçando pensamentos, vejo hoje que deve ser por isso que até tenho o costume de fazer comparações, guardar fatos e mergulhar nos rios caudalosos de reminiscências doces. Aprendi esse artifício na minha infância. Criança invadida pela saudade, eu a levava comigo para onde ia e isso me fazia crescer. Uma despedida, hoje, abre hiatos no peito ao passo que me recordo de situações vividas. Didatismo aprendido de um tempo em que privado pela distância, eu guardava em mim a capacidade de me orientar nas estradas da minha imaginação.

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* Este texto é resultado de uma pequena autobiografia que escrevi no ano de 2006 para uma atividade na faculdade. Possui pouco mais de 65 páginas. Este capítulo narra a minha saída do Pernambuco. Foi num dia como este, 19 de agosto. Ainda me recordo dos acontecimentos. Pretendo futuramente engrossar as ideias e tornar esses fatos em um livro. Com disciplina isso será possível.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque

Data: 19 de agosto de 2009, 20:49:52

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