quinta-feira, abril 29, 2010

Quanto vale ou é por quilo?

“Quanto vale ou é por quilo?” é um filme dirigido pelo paranaense Sérgio Bianchi. O filme tem a intenção de demonstrar o passado sempre presente no tecido que compõe a sociedade brasileira. Fundado no escravismo, o Brasil é alimentado por uma desigualdade que determinou um modo de ser. O filme já busca chocar desde o princípio com o título – “Quanto vale ou é por quilo?” – que dá a idéia de um comércio de produtos de pouco valor, comprado num amontoado. De objetos subutilizados adquiridos em brechó; de “coisas” de pouca monta; de descartabilidade e coisificação.

O filme é inspirado na adaptação livre do conto “Pai contra mãe” de Machado de Assis. As cenas iniciais reproduzem essas palavras do grande romancista carioca do século XIX: “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras[1].

Do início ao fim da produção há a estratégia de se de demonstrar que as mazelas do Brasil não são problemas de uma administração política recente. Não se trata de um problema recente, que apareceu de uma hora para outra
. Trata-se na verdade de um problema que acompanha o país desde os dias mais idos. O passado está sempre presente. Assim, percebe-se que de lá para cá muita pouca coisa mudou. A problemática que envolve toda a realidade nacional está na sua gênese. Mudou o figurino dos atores. Todavia, a estrutura do palco, os personagens não mudaram de papel na encenação da novela da vida. São feitas inserções de documentos do Arquivo Nacional. “Os cortes entre a adaptação do conto e esses documentos do Arquivo Nacional produzem quase que choques sucessivos no espectador, na medida em que igualam a violência, a noção de que pessoas podiam ser propriedade de outras, ou a lógica do lucro do sistema de escravidão no Brasil, ao que hoje é produzido com relação aos excluídos e marginalizados em nossa sociedade”.

Os negros não se acotovelam em navios negreiros como outrora.
Agora os navios negreiros são representados pelas cadeias, pelos ônibus ou o metrô lotado dos grandes centros, os presídios que guardam/treinam para o crime. Há ainda um comércio que se forma em torno de crianças abandonadas. ONGs que lucram mais do que ajudam ante a ineficácia do Estado. A ampliação do sistema carcerário é fator de crescimento econômico. Ou seja, o filme denuncia todas as espertezas dos solidários de fachada, que doam para as obras de caridade, mas que lavam e sonegam o dinheiro do cidadão com alianças espúrias.

A figura do capitão do mato é explorada pelo filme.
Os capitães do mato trabalhavam num tipo de atividade terceirizada. Tinham honra social. O ordenado que ganhavam dos senhores de escravo variava de acordo com o objeto capturado – o escravo. O valor da mercadoria variava de acordo com a idade, força física e habilidade para o trabalho. A recompensa pela captura ou recaptura era fornecida no ato da entrega. Dessa forma era possível constituir uma carreira lucrativa fundada, sobretudo, numa legitimação social mesquinha. O diretor insere com um corte brusco e introduz a figura do pistoleiro de hoje. Fica implícito, assim, que o pistoleiro de hoje foi o capitão do mato de ontem. Essa lógica da continuidade dos papéis executados por outros personagens é constante na obra.

O filme, assim, possui uma base crítica, fortemente vinculada a um discurso de protesto. Os escravos ainda estão aí na figura de meninos de rua, dos catadores de papel. A alforria não se deu de forma plena. Ela é um engodo dos poderosos a fim de fazer entender que se vive numa sociedade livre, emancipativa, democrática. No chamado Estado Democrático de Direito, uma espécie de figura jurídica que premia apenas os fortes. Como nesta frase-protesto proferido pelo personagem de Lázaro Ramos: “O que vale é ter liberdade para consumir, essa é a verdadeira funcionalidade da democracia”. Ou nesta outra: “Consumidores de classe “AA” sempre imprimiram os seus modelos para as demais classes. Hoje a classe média também tem sede de ter princípios. Daí esse surto de ações sociais”. Há ainda uma crítica ácida à indústria complexa das compensações: a miséria ou a prisão como economicamente rentáveis e geradoras de emprego, a solidariedade como empresa ou até mesmo a denúncia como um negócio. A sujeira nas licitações públicas. As alianças do Estado com a iniciativa privada. O “jorro” das verbas dos trabalhadores que alimentam a pesada máquina estatal. Responsabilidade social ou solidariedade são exaltadas e mobilizadas como marketing dessa nova indústria que gerencia a miséria e os miseráveis. Como nas campanhas televisas, com o claro objetivo de arrecadar fundos para entidades que se afirmam como protetoras de menores abandonados; ou ainda, campanhas sensacionalizadas pela mídia a fim de arrecadar alimentos. Tudo isso apenas promove aquele que faz, onde o retorno certo é o lucro exorbitante.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Primeiro Semestre de 2007

[1] Texto extraído da Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo, acessado no dia 26/05/2007, às 13:54.

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