sexta-feira, dezembro 03, 2010

Impressões pessoais sobre “A História da Civilização” de Durant[1]

Concluí há pouco a leitura de um dos tomos da obra do historiador inglês Will Durant. Já ouvi diversas críticas ao seu método historiográfico. Quando leio tais discussões, concluo num monólogo interior: “Historiadores!”. Uns gostam dos franceses; outros, detesta-os. Alguns outros execram a análise dialética daqueles que leem a História sob a perspectiva do materialismo de Marx. Falando como mero expectador, considero a tradição francesa e penso que o marxismo é a mais elevada das concepções filosóficas, conforme disse certa vez Vladimir Lênin num ensaio. Observem que rechaço qualquer sectarismo.

Do livro de Durant ficaram três percepções a serem destacadas, comentadas gratuitamente:

(1) A decadência do Estado Romano. A toda poderosa Roma veio abaixo. Ela foi sendo minada lentamente. Seu exército tornou-se lânguido e ineficaz. O enfraquecimento do exército, do poderio bélico, é sempre uma amostra de que um Estado Onipotente esteja a ruir. O fato é que o exército romano já não conseguia deter as forças bárbaras que marchavam em magotes expressivos. Vinham do norte, do sul, do leste, do oeste. Constituíam-se num flagelo aniquilador. Os últimos imperadores romanos foram meninos frágeis e aturdidos. O Estado estava com as estruturas apodrecidas. A alta burocracia vestia-se com uma pompa patética. Golpes. Assassinatos. Conspirações. Levantes. Loucuras. Medidas ineficazes. Outro elemento que deve ser considerado, além da corrupção e do enfraquecimento econômico e militar, é o advento do cristianismo como a religião do Império. De certa forma, acredito, as circunstâncias tenham forçado o Estado Romano a se tornar cristão. A fé dos escravos crescera demais. Não havia mais como controlar. Escravos, soldados, parte da elite política, alguns indivíduos ricos haviam se convertido à nova fé. Constantino alega conversão e edita a tolerância aos cultos cristãos. Imagine: um Estado que ameaça cair; fome, desagregação, a invasão dos implacáveis bárbaros, incertezas. De repente, surge uma fé que promete o Paraíso, estabilidade, a possibilidade de um “outro reino”. Penso que diante de conjuntura tão apocalíptica, a promessa cristã tenha se tornado alvissareira, oportuna. Trouxe a esperança de estabilidade que as camadas mais angustiadas da sociedade precisava. Na calamidade, então, torna-se comum a fuga metafísica. Quanto mais acossados pela conjuntura histórica, mais os homens precisam de religião. Surgia uma nova estrutura que prometia “agasalhar” todos os homens – a Igreja Católica e Apostólica Romana (a Igreja Universal). E no dizer de Durant: “... deve a Igreja Católica figurar entre as mais imponentes obras-primas da história” (p.63). Ou seja, durante mais de dezenove séculos, ela permanece amalgamada com os poderes o mundo. A História do Ocidente querendo ou não está grávida dos feitos da Igreja de Roma. Ela é a principal herdeira das estruturas do Império dos césares. Herdou inclusive a arrogância da elite imperial e a estrutura burocrática da hierarquia que fazia o Estado Romano. Substituiu o césar (divino, augusto, que tudo podia) pelo papa (grande pai, substituto de Pedro, representante de Deus entre os homens). Quando o Estado Romano não teve mais condições de conquistar militarmente, passou à Igreja a fome imperialista para que ela empunhasse a cruz. O símbolo cristão substituiu a espada e tornou-se num eficaz instrumento de poder.

(2) Outro fato que se destaca na obra de Durant é a descrição feita a respeito dos bárbaros. Indiretamente eu possuo sangue bárbaro. Pois, eles são os principais formadores das nações européias – França (francos), Inglaterra (anglo-saxões), Ibéria – Espanha-Portugal (visigodos), Itália (ostrogodos), Alemanha (alamanos) e etc. As tribos bárbaras sempre existiram nas cercanias de Roma. Os romanos chamavam de bárbaros àqueles que não faziam parte do Império ou que estavam para além dos limites geográficos da terra dos césares. Assim, as inúmeras tribos e povos que estavam fora das fronteiras romanas, constituíam-se bárbaros. O termo barbarer provavelmente tivesse uma relação com o sânscrito varvara, o qual significava um indivíduo grosseiro e ignorante. E, de fato, os bárbaros possuíam um estilo de vida bastante rústico. Não tinham o costume de tomar banho. Banho e limpeza são coisa de árabe e índio. Gilberto Freire enuncia essa tese em sua obra Casa Grande e Senzala. Os árabes estiveram na Ibéria e deixaram lá o gosto pelos aromas. Já o banho é resultante de nossa matriz indígena. Voltando aos bárbaros: dormiam em cima dos cavalos. Comiam carne semi-crua. Tinham o costume de colocar a carne entre as pernas e o corpo do cavalo. O calor provocado pela fricção entre homem e animal modificava o estado da carne. Eram criaturas implacáveis. Não concediam clemência a quem quer que fosse. Matavam homens, mulheres, crianças, animais; ateavam fogo nas aldeias por que passavam. Átila, o huno, era chamado de “o flagelo de Deus”. Fato que deve ser considerado com relação aos bárbaros era a habilidade diplomática. Além de mordazes guerreiros, eram extraordinários negociadores. À medida que foram se estabelecendo nos domínios combalidos do Império Romano, foram ampliando geograficamente as terras ocupadas por intermédio da diplomacia. Grandes líderes bárbaros como, por exemplo, Alarico, Teodorico, Átila, Meroveu, foram responsáveis pela consolidação dessas tribos. A presença bárbara ruralizou a Europa. O cristianismo com o seu ideal de ruptura com o mundo fez com que surgissem os monastérios. Viver no claustro. Tornar-se um anacoreta. Exorcizar as paixões corruptas da civilização. Ou numa tese agostiniana de filosofia da História: deixar a “cidade dos homens” e ingressar na civitate dei (“cidade de Deus”). A vida citadina dos romanos tornou-se em algo deletério. De modo que é a partir desse movimento que pode se falar em feudalismo. Os indivíduos saíam das cidades e, geralmente, procuram a proteção de um senhor que lhe concedia terras para trabalhar. Isso fez com que surgisse um novo modo de produção, uma nova relação material para com a História – o Feudalismo.

(3) E outro aspecto bastante considerável da obra de Durant foi a “revelação” do povo árabe. O Ocidente não conhece a riqueza que se esconde por trás das areias quentes do Oriente. Imaginar um árabe é visualizar um indivíduo que se rende a Deus (Alá) de forma incondicional. É dessa submissão (inclusive o termo islão, significa submissão), que derivam todas as relações que o sujeito histórico estabelece com o próximo e com o mundo. Viver para um mulçumano é render-se a Deus e prestar crédito ao que disse o Seu profeta, Maomé. Das principais religiões do mundo, o Islamismo foi uma das últimas a surgirem. Como tudo isso veio a existir? A fé aglutinou as diversas tribos semitas que viviam no deserto antes do século VII. A maioria possuía as suas crenças particulares – muitos cristãos e judeus. Maomé conseguiu iniciar um movimento que consolidou a nova fé e fez com que surgisse dadivosamente uma bela flor no deserto. Quando assistimos àquelas reportagens descaracterizantes montadas pela grande mídia que atende a interesses econômicos, afugentamos a possibilidade de conhecer um dos povos mais belos do mundo. Os árabes possuem pensadores sofisticados, poetas absurdamente sensíveis, matemáticos fantásticos, músicos complexos, cientistas com um alto grau de especulação, estadistas valorosos. Nomes como Avicena, Averróis, Tabari, Muhammad ibn Musa, grande matemático, Abu AL-Rayhan Muhamadd ibn Ahmad AL-Biruni, entre tantos outros devem ser respeitados. Os árabes anteciparam em muito aquilo que viria a ser pensado séculos mais tarde na Europa. Para que tenhamos um exemplo é só mencionar o filósofo Avicena, uma das mentes mais belas e privilegiadas da História. Há inúmeros outros pensadores árabes como mencionei, mas Avicena sobrepujou-os pelo estilo, pela beleza das figuras metafóricas, criadas para elucidar fatos, aclarar exposições. Avicena antecipou o pensamento de Aquino em muitos aspectos. Era um verdadeiro “discípulo” de Aristóteles. Em muitos sentidos, é por causa do entusiasmo dos árabes para com o pensamento que temos a possibilidade de conhecer os grandes pensadores helênicos. Eles fizeram um belo trabalho de resgate da filosofia grega, principalmente de Aristóteles. Em suma: os árabes são uma jóia rara a ser contemplada mais atentamente. A arquitetura de suas mesquitas, os aromas afrodisíacos, a paixão pelas mulheres, a música evocadora de mistérios represados, o pensamento, a poesia com gosto e cheiro de jasmim e mirra. Tudo isso aguça os sentidos e confirma o poder de seu povo.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: 01 de dezembro de 2010, quarta-feira.

[1] História da Civilização (4a. parte) – Idade da Fé – Tomo 1º., Will Durant, Companhia Editora Nacional, 1957, 411p.

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