sábado, fevereiro 05, 2011

Comentário sobre o filme “Os narradores de Javé” – Diretora: Eliane Caffé

O filme “os Narradores de Javé” conta a História de um vilarejo afastado, surgido no meio de um vale e que está na iminência de sumir por causa do projeto de instalação de uma hidroelétrica. Pela descrição do lugar, conclui-se que se trata de um vilarejo localizado num sertão de pessoas humildes e que não podem barrar a ordem que vem de cima, imperativamente.

A única chance de brecar a vinda e instalação da hidroelétrica é provando que a cidade tem importância, tem uma história. O grande problema se dá quando a questão é proposta. Ninguém sabe escrever ou tem a capacidade de produzir um tratado histórico. A única figura letrada é um tal de Antônio Biá, um malandro, que para manter o seu emprego nos correios da cidade, como a Sherazade do conto árabe As mil e uma noite, passa a inventar histórias sem fim dos moradores. Assim, os correios continuou a funcionar e ele não perdeu o emprego. Antônio é recrutado pelos moradores para contar a “grande” história de Javé.

Para isso, ele precisa ouvir os mais velhos contarem as suas versões. Aqui temos a idéia dos velhos como os portadores da tradição, aqueles que têm autoridade para reavivar os fatos adormecidos na memória existencial. O interessante é que as histórias apresentam versões tendenciosas. Estas versões estão sempre a favor daquele que as conta. Ou seja, num dado sentido a diretora do filme, muito inteligentemente, quer passar a idéia que a História é sempre dominada por aquele que a conta. O portador do poder da construção da História sempre tenderá a contar a sua versão como a verdadeira para manter-se privilegiado.

Antônio Biá envolve-se em várias aventuras. Dia a dia as pessoas do lugar passam a depositar confiança nos seus trabalhos, nas suas pesquisas de campo. Ele passa a ser respeitado como uma espécie de “salvador” – ele e o seu livro. Os moradores o seguem aonde quer que ele vá. Aqui percebe-se que o filme trata também sobre o poder da palavra. Biá por ser o único a ter condições de reunir os documentos e recontar a história da cidade, passa a ter um tratamento diferenciado: os comerciantes passam a reverenciá-lo. Sendo que este é um comportamento típico do povo para com aqueles que gozam de algum poder, de alguma autoridade ou mesmo influência. Ou seja, de que aquele que possui a prerrogativa pode beneficiar de alguma forma. Este é um aspecto típico da antropologia do povo brasileiro. Aquele que detém o poder da palavra, tem a seu favor condições de reivindicar, negociar ou manipular os fatos ao seu favor. Este paradoxo permite descrever que a conservação do poder tem como sua principal arma o domínio do saber, da educação formal. As revoluções não são feitas por canhões que atiram, mas por cabeças que pensam e transformam o pensamento numa iniciativa histórica.

Todavia, o que Biá menos faz é escrever sobre a História da cidade. Ele se envolve numa série de aventuras intrigantemente boêmias, em porres vadios e irresponsáveis e não sistematiza as informações, a fim de reunir as informações e escrever a saga da cidade. Biá é, na verdade, a personificação do malandro brasileiro: prosaico em seu comportamento, mas elegante, envolvente, assediador por natureza; irresponsável por obviedade, admirado pelas suas estroinices; desenvolto em suas ações, sempre escorregadio, liso, completamente capaz de ter uma resposta para cada situação que as circunstâncias exigirem.

Afinal, o povo descobre que Biá não levou a bom cabo o projeto a ele incumbido. Ele não redigiu uma única página do “livro da vida da cidade”. Por causa disso, ele foi execrado pelo povo do lugar que depositou confiança extremada em sua capacidade de organizar as narrações orais num verdadeiro discurso cientifico. A cidade foi condenada a “sumir do mapa” e existir somente na memória do povo. Aqui a diretora mostra que o povo é o verdadeiro portador da História. Não existe História sem uma memória que a abrigue. O povo muda do lugar e segue o seu caminho incerto, mas sem saber que esta ação está a serviço da História. A História vai aonde o povo está. O homem é quem constrói a História como um elemento vivo, dinâmico, caminhante num fluxo contínuo. A História está grávida dos feitos dos homens. A cidade afunda no coração das massas de águas represadas, mas existe com sentido verdadeiramente vivo no coração dos homens. Os homens dão partos contínuos à História, seja num vilarejo afastado ou numa grande cidade.

O filme possui clareza e lógica na sua abordagem. É um filme consistente. Não possui um aspecto vago, sem conteúdos. Possui informações que podem ser observadas e ampliadas como as que foram abordadas acima. Por ser um filme cômico, torna-se agradável assisti-lo e ver o desfecho da trama. Cada cena envolve aquele que vem a vê-lo.

Não consegui detectar nenhum ponto fraco no filme. Tenho apenas pontos fortes a retratar: (1) o filme é fiel em retratar o povo. Maioria do elenco é constituído por gente comum. As fisionomias cansadas, esquecidas, são mostradas com muita propriedade, o que é um ponto positivo e não artificial. (2) O ambiente, a disposição das casas do vilarejo, os movéis rústicos, reproduzem com fidedignidade a casa dos sertanejos. (2) A fala é típica do sertão esquecido, analfabeto. Fala esta que “fala” a própria condição humilde do povo. Fala plástica, desprovida de aparatos eruditos. Apenas fala do povo comum, da gente comum, que descreve a cultura peculiar do povo, que tem a sua própria história.


Escrito em 2006

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