terça-feira, março 08, 2011

A morte e a morte do meu avô

Esta reflexão mirrada deveria ter saído há mais tempo. Andei um pouco ocupado. Somente agora, neste feriado de carnaval, arranjei um intervalo para fazê-la. No dia 17 de fevereiro último, eu perdi o meu avô. Sua morte provocou um abalo na minha família materna. Já fazia certo tempo que ele estava a agonizar. Um derrame o derrubou. Precisava de tudo e todos para as mínimas coisas. Vivia acamado. Sua voz quase ininteligível quase não era ouvida.

A última vez que o vi foi em fevereiro de 2004. Naquela ocasião, eu fizera uma viagem ao estado do Piauí. Aproveitei que estava perto e resolvi visitá-lo em Pernambuco. Passei 15 dias a ouvir histórias. Casos extraordinários. Acontecimentos que ainda pretendo colocar no papel, numas memórias que tenciono escrever futuramente.

Meu avô representou muito para a minha educação. Aprendi com ele o respeito pelo próximo e a disciplina austera para com a vida. Ainda posso ouvir a sua voz forte e grossa, rolando dos lábios quase sempre enrugados em sinal de seriedade. Era um homem firme. Carregava dentro de si a educação machista e senhorial dos homens do interior. Parecia gostar em seu silêncio dessa condição.

Mas a morte veio com seus braços frios e imparciais e abraçou o meu avô. No dia em que soube de seu falecimento, eu chorei de modo estranho, como que para me resignar aos fatos. A morte é cruel, fria, vitimizadora dos vivos e animados. Ela é uma cirurgiã, uma faxineira implacável. Arranca os homens da face da terra . Deixa apenas o seu rastro melancólico. Os homens se vão e ficam as trilhas saudosas que, com o tempo, apagam-se diligentemente, silenciosamente. O tempo é o principal operário da morte. O seu trabalho lento e processual nos leva a um destino inexorável.

Salomão diz em Cantares que “o amor é forte como a morte”. Até hoje penso no que ele quis dizer com isso. Amor e morte são duas realidades que fazem balançar o coração dos homens. Os dois são experiências marcantes. Foi inevitável não lembrar desse texto quando o meu avô morreu. Amor é experiência para os que vivem. O amor transforma e provoca revoluções, afirmam os poetas. Talvez seja nisso que resida a sua força. Mas, a morte é fulminante. Ela não escolhe hora, classe social, beleza ou feiúra. Quando vem, leva qualquer um de modo impiedoso. É como naquela filme de Ingmar Bergman, O Sétimo Selo. Em todos os momentos estamos sendo espreitados por ela. Lutamos contra ela. Jogamos com ela. Todavia, por mais habilidosos que sejamos e por mais força que tenhamos, ela em um dado momento nos rende e nos aplica o lance fatal - o xeque-mate!

Dizem os sábios que é quando lidamos tranquilamente com o fato de que vamos morrer é que começamos a não ter medo da vida. A vida é um sonho. Um dia o sonho, a fantasia efêmera passa e deixamos de ser. Nós sumimos juntos com ela.

Foi pensando nisso que assisti ao filme Rosencrantz e Guildenstern estão mortos, do diretor e dramaturgo Tom Stoppard. Os personagens foram extraídos das costelas de Hamlet, do dramaturgo inglês William Shakespeare. O filme em muitos aspectos é nonsense, mas possui aquelas reflexões shakespereanas profundas sobre ser e não ser. Stoppard conseguiu captar esse aspecto singular da obra de Shakespeare com bastante habilidade. Rosencrantz e Guildenstern, com Gary Oldman e Tim Roth, é uma película densamente filosófica. Há diálogos extraordinários. Reflexões fascinantes. Como, por exemplo: “Nós devemos nascer com uma intuição da mortalidade”. Lembrei de Pascal. Ou: “Antes de sabermos da palavra [morte], antes de sabermos que há palavras, nascemos ensanguentados e aos berros, sabendo que para cada ponto da bússola, há apenas uma direção. E o tempo é a sua única medida”. Mas, uma questão problematizadora acerca da vida e da morte é dita por um dos personagens: “Seria horrível, não é mesmo? Ficar preso numa caixa, e para sempre. Mesmo considerando que se está morto, não é um pensamento agradável. Especialmente se você está morto... Se eu te perguntasse agora mesmo: vou te colocar numa caixa, você preferiria estar vivo ou morto? Naturalmente que preferia estar vivo. Vida numa caixa é melhor do que vida nenhuma (...)”. Aqui reside o ponto sensível, o dilema essencial que envolve o ser humano. O homem é o único ser que sabe que vai morrer. Todavia, mesmo nessa condição de estar num invólucro mortal, é melhor viver e morrer, do que nunca ter vivido ou existido.

Para lidar com a morte o homem se mune de diferentes reações. Cria religiões, poesias, ritos, explicações mirabolantes, uma vida numa outra esfera, tudo para continuar a existir. Seu desejo de estar o persegue e o atormenta, sempre.

No fundo morrer é não ser. Um dos personagens do filme de Stoppard diz que “a morte é a negação absoluta. É não estar”. De fato, morrer é não estar, é não ser, enquanto evento material e histórico. Somente somos enquanto vivemos. Viver é ser e estar. A vida é a força que nos anima, propulsiona a sermos mais. Dá sentido à vida que recebemos é a verdadeira missão que temos a executar. Morrer sem ter entendido qual é o seu papel na história é mais trágico do que a morte. Viver é descobrir as respostas que fazemos à vida. Amar, sentir o cheiro das pessoas que cativamos; o sabor da comida que gostamos; da música que apreciamos; da visão que os olhos anseiam é, verdadeiramente, buscar ser e estar na vida. Em suma, chorar com aquilo que os olhos veem, mas somente a alma consegue entender.

Desperdiça a vida quem não observa tais eventos. Tenho certeza que meu avô foi e esteve enquanto viveu. Agora sua presença repousa dentro de mim e dos meus familiares. Ele será memória viva enquanto eu for e estiver.

Obrigado, vô!

Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: terça-feira, 8 de março de 2011, 20:05:37.

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá Carlos,
Que texto comovente e ao mesmo tempo tão ponderado e racional. Sua dissertação a cerca da vida e da morte vão de encontro ao que acredito, na vida.

Abraço e meus sentimentos pelo seu avô.

Carlinus disse...

Carla, obrigado pelo seu comentário. A morte do meu avô me deixou bastante comovido. Verdade. É por isso que o texto saiu assim, em tom sentimental.

Abraços!