sexta-feira, outubro 21, 2011

Memórias - os itinerários do tempo (I)

A treva se enchia de mistérios, as labaredas fumacentas do fogão viviam, acompanhavam a dança das bruxas. Ali, porém, na claridade forte do sol, os terrores se dissipavam.

Graciliano Ramos, in
Infância, p.169


Cresci num ambiente profundamente rústico. Meus dias eram cheios. Dormia cedo e acordava com a alvorada. Parecia as aves do quintal. De manhã, cozinhava-se o cuscuz numa tigela de barro feita para esta finalidade. Um fumaceiro cobria a casa. A cozinha era um local negro. As paredes de barro estavam pintadas pelo pretume da fumaça fuliginosa. As panelas eram objetos bojudos feitos de barro completamente envernizados pela fumaça, resultado da combustão da madeira seca. A casa onde morava era uma tapera. Um local acanhado feito de madeira trazida da mata. Paus tortos que resultavam numa casa torta. Com o passar dos anos foram ruídos pelos cupins. Víamos pelos cantos das paredes o farelo da decomposição dos bichos miúdos que eram operários silenciosos. Na frente, uma porta mal dimensionada e uma janela escandalosamente mal projetada. Do lado direito, um oco ridículo. Dentro de casa, três cômodos estreitos e despidos de qualquer conforto. As paredes em alguns locais pareciam adquirir formas arredondadas. Quem teria sido o arquiteto daquela casinhola? Talvez matutos tivessem se ajuntado num final de semana, e, no meio da cachaça, e da conversa capenga, tivessem construído sem muitos cuidados, como era costume na região.

Dormia numa rede. A rede ficava na sala tosca. Durante o dia era enrolada e trepada na parede. Quando a noite chegava, a luz do candeeiro ajudava a nos desembaraçar do negrume. A luz mortiça do candeeiro balançava à brisa da noite. Uma fumaça escura se erguia da queima do pavio embebido no querosene. Tratava-se de uma lata com um bico feito para abrigar o pavio que, mergulhado no combustível contido no seu interior, proporcionava uma chama frouxa que alumiava a noite. Os vizinhos ficavam distantes: Mané Ivo, Zé Pequeno, João Severo, Seu Bastião, eram os mais próximos. Os mais afastados eram o meu avô Jeremias, que logo à frente contarei a importância dele para a minha educação, Bil Jorge, Vevé, Antônio Fragoso. Enxergava ao longe luzes anêmicas produzidas pelos candeeiros. Pequenos olhos acesos duelando contra o cobertor escuro da noite. As bananeiras que cercavam a minha casa produziam vozes na noite escura. Dentro de casa, criaturas – eu, minha mãe, meu pai e meu irmã. Geralmente, dormíamos cedo. Meu pai às vezes delongava-se na taverna do Seu Bastião em conversas e divertimentos com os amigos. À noite a rede era armada. Durante muitos anos dormi em redes. Quando estava na rede achava-me protegido dos entes fantasmagóricos que colhia nas conversas e que à noite trazia à minha imaginação. Cobria-me dos pés à cabeça e entedia que com este gesto estava totalmente isento de qualquer surpresa. Entedia que o pano que me cobria, proteger-me-ia do mundo, dos caiporas, das comadres fulosinhas e de todos os entes mal intencionados que surgissem. Arregalava os olhos tentava enxergar na treva medonha que me cercava.


Não me recordo bem da ocasião, mas certa vez minha mãe adquiriu um calendário com uma fotografia da Nossa Senhora Aparecida. O calendário foi afixado na parede da sala. A imagem da santa perturbava-me profundamente. A fisionomia negra da santa grudava-se na minha mente como matéria pegajosa. As vestes negras causavam-me pânico. O rosto duro, minúsculo, sumido no meio dos trajes quais plumagens de graúna, infundiam medo à noite quando os candeeiros se apagavam. Reclamava para a minha mãe.


- Deixa de se besta, menino! – dizia a minha querida mãe.


Não conseguia compreender como é que uma santa poderia provocar medo. A celestialidade dos santos estava coberta de luz, com ornamentos esbranquiçados, com faces angélicas; mas aquela santa era diferente. Era negra, de trajos negros, de fisionomia que me provocava sensações negras. Por causa disso, desde pequeno a cor preta está associada a fatos desagradáveis, a situações cavernosas na minha mente.


Quando ia para a casa do meu avô e tinha que voltar sozinho, uma apreensão grossa, graúda, abraçava-me. Por todos os lados eu estava cercado por canaviais. Mangueiras de troncos grossos, de folhagens enormes como um cogumelo gigante, que se tornavam imperceptíveis na noite escura. Embaixo delas, nos troncos, almas pelintras poderiam confabular como atacariam os humanos. Corria. Faltava-me o fôlego. Eriçava-me todo. Sentia uma mão fria pousar nas minhas costas. Espantava-me. Não tinha ânimo em olhar para trás. Com certeza havia no meu encalço seres de outro mundo. Corpos feitos de fumaça que voejavam na noite escura. Apreensão. Coração aos pulos. Tonto, não distinguia muito bem o caminho. Era guiado pelo instinto. Quando deitava, embrulhava-me embaixo da rede e me punha a pensar o que as criaturas espectrais estariam com suas legiões a fomentar contra a vida dos humanos. Mas por que tais criaturas tinham que ter raiva dos seres humanos? Não conseguia compreender.


Quando sentávamos à roda da fogueira na noite escura – eu meus colegas - , via as nossas sombras se mexerem misteriosamente na ramagem das plantas. Imaginava confabulações sendo feitas ali próximo de nós. Invisibilidade camuflada, mostrada unicamente por meio de nossas próprias figuras deformadas. Ali estavam seres de olhos de brasas, de corporatura indistinta, que se arrastavam à semelhança de vermes gigantes na treva noturna. A agonia me paralisava.


Com isto quero dizer que este cenário fantástico construiu em mim a capacidade para interpretar o mundo de modo fantasioso. De modo que hoje, ainda guardo em mim o poder da contemplação e da fantasia. Aquelas experiências amendrontadoras não incutiram medo em mim, mas a crença involuntária de que existe um outro além deste mundo. Hoje, por exemplo, quando leio uma poesia ou uma história mitológica sou remetido diretamente, sem dificuldades, ao mundo descrito no texto. Imagino realidades fantásticas com muita facilidade. Acredito, assim, que isto seja resultado dos anos mais incríveis da minha infância quando fui iniciado na arte da imaginação.


*Escrito em 2006, para uma pequena biografia que comecei a tecer. Postarei outros capítulos da pequena análise feita por mim.

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