sábado, novembro 17, 2012

Germinal, de Émile Zola, algumas reflexões

"A alegria de viver desaparece quando não há mais esperança"
Émile Zola, Germinal, p. 371
 

Pode se afirmar que o século XIX é a idade de ouro do liberalismo. A premissa básica do liberalismo estava fundada na seguinte ideia: "A iniciativa individual é o motor, a mola de toda a atividade válida". Esse entendimento era derivado dos movimentos pró-burguesia fecundados no século XVIII, principalmente com a Revolução Francesa. E o liberalismo (surgido no século XVII) como sistema filósofico representou o sonho de consumação dos intentos da burguesia. Na corrida pela efetivação da "iniciativa individual", havia aqueles que podiam competir, por possuírem os meios de produção, e aqueles que possuíam apenas a força braçal e os instintos de sobrevivência. 

 O Estado como organizador do sistema social como sonhado pelos Iluministas, principalmente por Hobbes, deveria ter a sua presença minimizada. A Segunda Revolução Industrial estava a pleno curso. A invenção da máquina a vapor, as várias ideologias - positivismo, o socialismo, o existencialismo, o darwinismo, o monismo, por exmplo - estavam assentadas num ideal materialista. Ou seja, a ideia de que o mundo e a natureza eram os pontos determinantes a serem conhecidos pelo homem. 

Mas e a literatura possui alguma relação com isso? E respondemos de forma peremptória que sim. A literatura é a transfiguração do mundo. Ela por si se constitui a mistura do mundo real e o mundo possível. Quando o sujeito da literatura cria, não deixa de coniderar a realidade. Mas ele o faz criando uma imitação que gera tensionamentos. Essa imitação é um fundamental para compreender determinados momentos históricos. É por isso que Marx disse em certo momento que aprendeu mais sobre a sociedade francesa do século XIX com Balzac do que com livros técnicos de historiadores e economistas. 

Sendo assim, a complexa e ebuliente sociedade do século XIX pode ser compreendido de maneira "transfigurada" pela literatura. É importante mencionar que além de Zola, outros escritores também se preocuparam em retratar materialmente as desigualdades gestadas pelo capitalismo naquele século. Na Inglaterra, Charles Dickens, foi um importante cronista da vida citadina da Inglaterra industrializada. As ruas repletas de lama; os prostíbulos; a exploração; a infância perdida. Na França, Victor Hugo com Os Miseráveis, pintou um quadro fantástico das relações dos pobres numa sociedade dominada pelos interesses da burguesia. Em Portugal, Eça de Queirós, não se preocupou em retratar o mundo material como Dickens ou Hugo. Preferiu mostrar a hipocrisia que habitava o seio do mundo burguês. E aqui no Brasil, Aluísio Azevedo escreveu dois livros fundamentais,  inspirado por esse movimento vivo então na Europa - O mulato e O cortiço. Ambos os livros são extraordinários. O primeiro por mostrar como o preconceito se constituía em modo de navegação social numa sociedade escravocrata como a nossa; e, o segundo, retratava as condições sub-humanas na qual vivia o povo pobre do Brasil, com todas aquelas doses naturalistas: a promiscuidade, a ausência de educação, os instintos aflorados, a exploração econômica, a dança do corpo. O cortiço está mais próximo de Germinal.

Após essa divagação, queria afirmar que Germinal cuja leitura se concretiza de forma elétrica, é um grande tratado, um documento social. Um libelo contra a sociedade burguesa, assentada na desigualdade. Após ter lido a obra, resolvi assitir ao filme homônimo, lançado em 1993, por Claude Berri. Achei-o convicente. Todavia, o jogo linguístico e a fluência literária como de um cientista de Zola torna Germinal uma leitura indispensável. Em alguns momentos de leitura, eu me vi passeando ao lado de Etienne Lantier, personagem central da obra, pelas ruas feias e cobertas de lama de Montsou.

Germinal foi escrito em 1885 e tornou Émile Zola numa das personalidades mais importantes da literatura universal. De família pobre, Zola passou por muitas dificuldades antes de se estabelecer como um habilidoso cronista. Para escrever Germinal, Zola morou numa comunidade de mineiros durante quase três meses, tempo este em que pode experimentar todas as vicissitudes do triste cotidiano nas regiões interioranas da França. Comeu a comida pobre daqueles homens que viviam como bichos; bebeu água contaminda; percebeu a promiscuidade dos jovens como um apelo ao instinto; dormiu nas casas desadornadas de conforto e sem calefação; desceu aos buracos infames a centenas de metros de profundidade para trabalhar na semi-escudridão, em um ambiente insalubre, pegajoso e que deteriorava a saúde e a vida do trabalhador, como é retratado, por exemplo, na pessoa da personagem Boa-Morte, que vivera cinquenta anos no trabalho inglório. O resultado foi vomitar uma substância preta e a imobilidade demente no final da vida.
Zola ao viver na comunidade dos mineiros colocou em voga o pressuposto básico do naturalista - viver próximo ao fato para narrá-lo com insenção e imparcialidade. Sua função era retratar anatomicamente os eventos sem qualquer moralismo. Era é importante realçar os instintos. Adelgaçar a necessidade da funcionalidade da vida. 

As condições materiais de existência dos mineiros era degradante. Por conta disso, iniciam um movimento grevista sob a liderança de Etienne Lantier. Apoiam-se numa resistência grossa. Organizam-se. Falam na Internacional que era naquele momento uma importante organização internaicional de trabalhadores. Desconhecem as teorias socialistas. O único intento e o desejo de justiça. Queriam fugir da degradação e da opressão. Queriam apenas comer dignamente. Todavia, esse anseio é ocultado pela resistência em atender às aspirações dos mineiros por parte do dono da mina. Zola parece querer mostrar que existem instâncias no sistema. Que todos estão presos, enredados, na teia medonha que aprisiona os envolvidos - dominador e dominados - no jogo de interesse. 

Outro importante recurso utilizado por Zola é colocar em paralelo a burguesia, representado pela comida fácil, o riso mole, a futilidade dos grandes saraus e a situação de desespero do mineiro. Cabe a este viver em condição de penúria. Esse paralelo pode ser verificado na reflexão feita por Etienne: "[...] por que havia tanta miséria de um lado e tanta riqueza de outro? Por que estes [os mineiros] tinham de viver escravizados àqueles [os burgueses], sem a menor esperança de um dia mudar de posição?".

De certa forma essa tese, segue no triste curso da narrativa. A greve iniciada pelos mineiros naufraga. Eles são forçados a voltarem ao trabalho. As necessidades vitais os premem. Submentem-se voluntariamente à tirania. Não conseguem resistir, apesar do ódio. As várias mortes perpetradas pela polícia, braço direito daqueles que estão no poder, desmancha o movimento. A polícia que em sua essência é também formada por homens pobres e comuns, existe para proteger o patrimônio do capitalista. Ou seja, o capitalista, segundo Zola, é cruel em sua sanha, pois alimenta-se do sangue do povo quando explora e blinda-se com o aparelho formado pelo Estado Liberal que protege a propriedade. Todavia, essa proteção é feita pelo povo. 

Etienne vai embora de Montsou. Os mineiros são obrigados a se resignarem com as condições vis de trabalho. E aí não deixei de perceber a tese niilista do livro. Por mais que se tente lutar contra o monstro da opressão, ele possui tentáculos asfixiantes, capazes de dilacerar com sua força qualquer resistência. Resta ao homem pequeno, de existência sofrida resignar-se à indigência até que chegue a morte. O sonho de igualdade é um vislumbre utópico. A ignorância dos pequenos é a arma do ricos. Embora essa tese esteja na obra, o final do livro nos traz uam mensagem de esperança. Enquanto Etienne caminhava pela planície de Montsou, Zola despeja sua pena literária: "Do flanco nutriz brotava a vida, os rebentos desabrochavam em folhas verdes, os campos estremeciam com o brotar da relva. Por todos os lados as sementes cresciam, alongavam-se, furavam a planície, em seu caminho para o calor e a luz. Um transbordamento de seiva escorria sussurrante, o ruído dos germes expandia-se num grane beijo. E ainda, cada vez mais distintamente, como se estivesse mais próximos da superfície, os caompanheiros cavavam. [...] Homens brotavam, um exército negro, vingador, que germinava lentamente nos sulcos da terra, crescendo para as colheitas do século futuro, cuja germinação não tardaria em fazer rebentar a terra".

Fica clara a construção de uma belíssima metáfora, já que o nome germinal estava associado ao calendário da primavera na Revolução Francesa, quando a semente das plantas germinavam. Em um sentido mais lato, germinal é a fecundação, o rebentar de uma transformação social que estava em curso. Zola parece prever os conflitos que estavam sendo fecundados no seio do capitalismo. As desigualdades sociais trariam resultados claros, numa espécie de salto dialético.

O fato é que Germinal é um dos mais importantes livros a tratar de questões sociais. Sua temática ainda está viva. Nas periferias das grandes cidades brasileiras, por exemplo, é possível encontrar famílias como a dos Maheau. Pessoas pobres. Sem instrução; não contempladas por políticas públicas efetivas. Cerceadas do jogo do poder. Iludidas com o ideial de democracia. Democracia e liberdade são termos que aquecem o espírito e geram consolo no Estado burguês. Cria uma ideia de povo que participa das decisões do Estado no suposto jogo democrático. As sementes nunca tiveram tão adormecidas e estéreis.

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