segunda-feira, julho 15, 2013

"Febre do Rato", de Claudio Assis, a poesia 'esperneante' que vem debaixo

"É a coletividade que vai dar uma lapada nas leis e uma bicuda no ovo da ordem" - Zizo, in Febre do Rato

Fazia um certo tempo que eu não assistia a um filme que me perturbava tanto. O último, talvez, que me vem à memória é o Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, que vi em 2011. Fiquei dias ruminando os efeitos filosóficos e teológicos da película de Bergman. Dessa vez, o filme que me deixou em transe foi Febre do Rato, do brasileiro Claudio Assis. O cineasta pernambucano, fugindo das preocupações do mainstream, tem produzido obras significativas, o que já o coloca como um dos grandes do cinema nacional. Assis produziu pouco. Três filmes apenas - Amarelo Manga (2002), Baixio das Bestas (2006) e o febricitante Febre do Rato (2011). Antes dos filmes, Assis produziu alguns documentários e curtas.

Não cheguei a fazer uma pesquisa, mas acredito que o termo 'febre do rato' esteja circunscrito ao mundo linguístico pernambucano. Cresci ouvindo o meu pai dizer (sou pernambucano e de família pernambucana): "Ele não está com a febre do rato", quando queria dizer que alguém não deveria exceder o bom senso, extrapolar a realidade e se fiar pelo mundo da loucura. Assim, 'febre do rato" é a realidade daquilo que não é comum, que está fora do padrão; que assume uma natureza para além do corriqueiro.

E talvez não exista nome mais adequado do que este para a película de Cláudio Assis. Como os outros dois filmes, a história se passa em Pernambuco - especificamente Amarelo Manga se passa em Recife e Baixio das Bestas centra a sua temática na zona rural pernambucana. Febre do Rato em sua exposição crua, em sua visceralidade extasiante, é o foco sendo dado ao submundo dos centros urbanos. As palavras iniciais do narrador (o poeta Zizo) aturdem, mescladas ao mundo insalubre dos cortiços à beira do mangue: "Logo ali por trás do mangue, descansa insone a faca, o serrote, o trabalho, o sexo e o sangue. Abismo, mundo escuro, profundo buraco; lateja o fardo de tuas ruas, lateja o grito ruminante, gritos de não. Não de abismo".

O filme é uma poesia desvestida. A começar pela película em preto e branco, que confere à obra uma aspecto atemporal, sublime e de funda envergadura metafísica. Não há uma fotografia corriqueira, daquelas produzidas para agradar. Tudo é feito para contrariar a estética do belo e realçar a estética do "cuspe" e do "escarro" de Augusto dos Anjos. O que existe é o movimento. O movimento da poesia, que é embriagada e embriagante como o personagem principal da obra - Zizo (Irandhir Santos, que está impecável na obra!).

A obra de Assis foge ao convencional. O grupo de amigos, que está sempre junto do poeta, composto por traficantes, vagabundos, travesti, coveiro, embriagados, parece constituir os habitantes de Sodoma e Gomorra. Ou seja, as personagens suprimem a lógica burguesa. Poeta e obra buscam pregar uma atitude anárquica ante as coisas. Não se trata diretamente ou meramente da supressão do Estado ou da ordem burguesa instituída. O filme busca fazer com que o homem médio saia de sua letargia, de seu sono profundo. Que se posicione diante do descalabro da irgonorância e do ventriloquismo a que é submetido. Em certa altura do filme, Zizo diz: "As pessoas ficam falando em futuro, em mudança, mas não estão nem aí para as coisas que estão realmente mudando. Perderam a capacidade de espernear". ( o destaque é meu)



É justamente essa capacidade "de espernear" a que o filme faz alusão. Zizo é o porta-voz, o profeta sem deus, cuja religião é a poesia. O Antônio Conselheiro, o Sandino, o Zumbi, o messias do gueto, do submundo, do mundo-abismo da periferia, obumbrado pela inferno da indiferença burguesa. Zizo é a poesia esperneante que chama os homens a trazerem vasilhas para encherem de liberdade; a que tragam as vasilhas para que encham de cumplicidade; que tragam as vasilhas para encherem de força.


Claudio Assis se aproximou dos grandes nomes ao dirigir Febre do Rato. Talvez, tenha se aproximado de um Glauber Rocha em sua capacidade dançante de construir enredos eivados de força ou de um aludido Bergman capaz de fazer grandes discursos por meio das imagens. Febre do rato é a extrapolação de qualquer consideração metódica . Fez-me refletir como a palavra pode ser utilizada como libelo que constroi realidades desestabilizadoras; que suprime as névoas do olhar; que emancipa o sujeito; que traz os atores (vítimas da omissão) a serem protagonistas de uma nova verdade dialógica. 

Penso que Claudio de Assis tenha conseguido fazer um dos filmes mais belos e delirantes da história do cinema brasileiro. Que bom saber que estamos chegando a esse nível de maturidade. 

É possível assistir ao filme no Youtube

P.S. Aviso: os moralistas burgueses e religiosos podem se chocar com algumas cenas. Afinal, é preciso ser louco para ser livre. Desculpem a afirmação que soa a clichê. Mas acredito que Zizo gostaria dessa frase.

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