quinta-feira, maio 30, 2013

Algumas impressões sobre o filme "Somos tão jovens", que conta os anos iniciais da carreira de Renato Russo

O filme "Somos tão jovens", do diretor Antonio Carlos Fontoura, deixou-me impressionado com a atuação do ator Thiago Mendonça. Ficou claro que o ator estudou com bastante atenção os trejeitos, os cacoetes e todo o mundo existencial de Renato Russo, vocalista e principal nome da Legião Urbana. O longa mostra a cena política e cultural de Brasília no final dos anos 70 e início da década de 80. 

O filme foca a atenção no espaço do Plano Piloto, região da Capital Federal onde mora a burguesia da cidade - servidores públicos do auto-escalão do Estado, políticos, diplomatas etc. Renato Russo, por exemplo, era filho de um economista do Banco do Brasil. O jovem Renato morara nos Estados Unidos e, na Capital Federal, estudou no Colégio Marista, uma das escolas mais tradicionais e influentes, ainda hoje, aqui em Brasília.

A obra não busca mostrar toda a vida do líder da Legião Urbana. Foca no curto espaço de 16 aos 22 anos. E é, por isso, que deixa a impressão de obra inacabada. Quando menos se espera, o filme acaba. Mas, a produção de Antonio Carlos Fontoura é convicente.

De 1964 a 1985, o Brasil experimentou um dos períodos mais escuros da sua história. Esse período que ficou conhecido como Ditadura Militar, trouxe repressão e censura. Vale mencionar que no final da década de 1970 e início dos anos de 1980, o capitalismo vivia um período de crise. O movimento punk surgira na Inglaterra nos bairros operários e se espalhara pelo mundo. Bandas como The Sex Pistols ou The Clash haviam surgido na Inglaterra com uma atitude panfletária e rebelde. Nos Estados Unidos bandas como The New York Dolls e Ramones também marcaram o compasso. As roupas rasgadas, a música distorcida e gritada com poucos acordes, o visual provocativo e a atitude rebelde eram as principais marcas do movimento punk. O protesto tinha uma direção: a sociedade capitalista moralista e religiosa, geradora de desigualdade e de um projeto burguês que visava docilizar as ações do homem comum.

Nessa mesma época, outra banda importante, o Joy Division, de duração efêmera, também possui a sua relevância. O Joy Division, apesar de ser citado em "Somos tão jovens" de forma superficial, imprimiu uma nova linguagem ao rock, que pode ser chamada de pós-punk, posto que trazia influências do punk, mas amalgamada às influências de uma melancolia intensa, que desembocaria na new age.  O genial vocalista do Joy Division, Ian Curtis, que se matou ainda muito jovem, creio, foi uma influência para o líder da Legião Urbana. Músicas como Ainda é cedo mostra a influência do pós-punk e uma textura muito similar à banda de Curtis. Um importante filme sobre a vida do problemático Curtis é Control (aqui também) de 2008, do diretor Anton Corbijn. Mas o Renato era a mistura de muitas coisas.


Após a digressão, vale afirmar que tais características serviram de inspiração para os filhos da burguesia - os rebeldes sem causa. A expectativa de estabilidade gerada pelo mundo burguês e uma sociedade que vivia a realidade da Ditadura, levou essa juventude a protestar, a construir ideais. Curiosa é uma das passagens da música Química escrita pelo Renato Russo: "Ter carro do ano, TV a cores, pagar imposto, ter pistolão/ Ter filho na escola, férias na Europa, conta bancária, comprar feijão /Ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo, burguês padrão".

É nesse contexto que aparece a figura de Renato Russo, que ainda no final dos anos 70, forma o Aborto Elétrico e o nome já um escracho ou uma tentativa de cooptar a atenção. A banda do ponto de vista sonoro era péssima, mas havia um sujeito habilidoso com as palavras. As letras eram de alto nível. Era como se colocasse um diamante em um recipiente de palha. A banda consegue, com apresentações tacanhas, se firmar no cenário cultural da Capital.

É dessa época também o surgimento de duas outras bandas - a Plebe Rude e o Capital Inicial (esta última dos escombros do Aborto Elétrico). Outro músico indiretamente surge do cenário musical de Brasília, Herbert Vianna, líder e fundador de Os Paralamas do Sucesso.

Todavia, o que me chamou a atenção no filme foi a tentativa acertada de reproduzir a personalidade complexa de Renato Russo, que acreditava em astrologia e possuía uma sensibilidade poética incomum. E o quanto gostava de literatura. O nome Russo é uma homenagem, como mostra o filme, a Bertrand Russel, filósofo inglês, e o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau. Pouca coisa já era suficiente para mover-lhe as emoções. Uma cena em que isso fica patente é quando da morte de John Lennon. O filme mostra o quanto aquilo que mexeu com o Renato Russo. 

Tais complexidades foram responsáveis pelo fim do Aborto Elétrico. Os dois outros músicos Fê Lemos (baterista) e Flávio Lemos (baixista) - ambos fundadores, com Dinho Ouro Preto, do Capital Inicial - viviam às turras com o futuro líder da Legião. Após essa cisão, Renato muda a postura rebelde e investe num estilo mais folk. Deixa a barba crescer e faz apresentações solitários, auto-proclamando-se 'O trovador solitário'. E aos poucos essa expressividade vai crescendo até a formação da Legião Urbana, com os dois parceiros de toda a carreira - Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos. O filme termina justamente nesse ponto, quando os músicos após terem feito um show em Patos de Minas, são convidados a irem ao Rio de Janeiro. Como afirmei acima, o filme é bom. O ponto mais forte da obra é a atuação de Thiago Mendonça, que travestiu-se de Renato Russo. Thiago conseguiu transmitir o jeito teatralizante e performático do líder da Legião. As músicas cantadas também mostram uma qualidade positiva. 

Um dos principais objetivos que me levou a assistir ao filme foi entender um pouco mais sobre o cenário político e cultural da Brasília da época da Ditadura. E penso que o filme conseguiu me passar uma impressão positivo sobre este fato. Muito bom!

terça-feira, maio 28, 2013

Para se conhecer 'o que é o Brasil" - por Antonio Candido

Há alguns dias atrás me chegou este maravilhoso artigo. A pessoa que me indicou foi bem feliz. Fazia bastante tempo que desejava uma bibliografia com nomes imprescindíveis para compreender o Brasil, o meu país - sua história, suas tragédias, seus agravos. Alguns dos livros que aparecem na lista eu já possuo. A recomendação faz um escrutínio sistemático e meticuloso pelos vários períodos da história brasileira. O texto é do inominável Antonio Candido, um dos nomes mais profícuos da produção de ideias aqui no Brasil no século XX. Ele sabe do que fala. Vale a pena correr atrás das dicas, como eu já começo a fazer com aquelas obras que ainda não possuo.

É importante conhecer nossa história para que nos entendamos; para que compreendamos nosso jeitinho; nossa propensão à canalhice; nossos impulsos carnavalescos; nossas mancadas nacionalistas; nossa tendência a não nos levarmos a sério; nossas desigualdades; para que não sejamos vítimas de uma ignorância que nos impulsiona a fazer afirmações preconceituosas, numa construção parti pris que serve para consolidar uma visão deformada de nós mesmos - como todos os dias vemos a grande mídia fazer. Boa leitura!

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Quando nos pedem para indicar um número muito limitado de livros importantes para conhecer o Brasil, oscilamos entre dois extremos possíveis: de um lado, tentar uma lista dos melhores, os que no consenso geral se situam acima dos demais; de outro lado, indicar os que nos agradam e, por isso, dependem sobretudo do nosso arbítrio e das nossas limitações. Ficarei mais perto da segunda hipótese.
"Como sabemos, o efeito de um livro sobre nós, mesmo no que se refere à simples informação, depende de muita coisa além do valor que ele possa ter. Depende do momento da vida em que o lemos, do grau do nosso conhecimento, da finalidade que temos pela frente. Para quem pouco leu e pouco sabe, um compêndio de ginásio pode ser a fonte reveladora. Para quem sabe muito, um livro importante não passa de chuva no molhado. Além disso, há as afinidades profundas, que nos fazem afinar com certo autor (e portanto aproveitá-lo ao máximo) e não com outro, independente da valia de ambos.
Por isso, é sempre complicado propor listas reduzidas de leituras fundamentais. Na elaboração da que vou sugerir (a pedido) adotei um critério simples: já que é impossível enumerar todos os livros importantes no caso, e já que as avaliações variam muito, indicarei alguns que abordam pontos a meu ver fundamentais, segundo o meu limitado ângulo de visão. Imagino que esses pontos fundamentais correspondem à curiosidade de um jovem que pretende adquirir boa informação a fim de poder fazer reflexões pertinentes, mas sabendo que se trata de amostra e que, portanto, muita coisa boa fica de fora. 
São fundamentais tópicos como os seguintes: os europeus que fundaram o Brasil; os povos que encontraram aqui; os escravos importados sobre os quais recaiu o peso maior do trabalho; o tipo de sociedade que se organizou nos séculos de formação; a natureza da independência que nos separou da metrópole; o funcionamento do regime estabelecido pela independência; o isolamento de muitas populações, geralmente mestiças; o funcionamento da oligarquia republicana; a natureza da burguesia que domina o país. É claro que estes tópicos não esgotam a matéria, e basta enunciar um deles para ver surgirem ao seu lado muitos outros. Mas penso que, tomados no conjunto, servem para dar uma ideia básica.
Entre parênteses: desobedeço o limite de dez obras que me foi proposto para incluir de contrabando mais uma, porque acho indispensável uma introdução geral, que não se concentre em nenhum dos tópicos enumerados acima, mas abranja em síntese todos eles, ou quase. E como introdução geral não vejo nenhum melhor do que O povo brasileiro (1995), de Darcy Ribeiro, livro trepidante, cheio de ideias originais, que esclarece num estilo movimentado e atraente o objetivo expresso no subtítulo: “A formação e o sentido do Brasil”.
Quanto à caracterização do português, parece-me adequado o clássico Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, análise inspirada e profunda do que se poderia chamar a natureza do brasileiro e da sociedade brasileira a partir da herança portuguesa, indo desde o traçado das cidades e a atitude em face do trabalho até a organização política e o modo de ser. Nele, temos um estudo de transfusão social e cultural, mostrando como o colonizador esteve presente em nosso destino e não esquecendo a transformação que fez do Brasil contemporâneo uma realidade não mais luso-brasileira, mas, como diz ele, “americana”. 
Em relação às populações autóctones, ponho de lado qualquer clássico para indicar uma obra recente que me parece exemplar como concepção e execução:História dos índios do Brasil (1992), organizada por Manuela Carneiro da Cunha e redigida por numerosos especialistas, que nos iniciam no passado remoto por meio da arqueologia, discriminam os grupos linguísticos, mostram o índio ao longo da sua história e em nossos dias, resultando uma introdução sólida e abrangente.
Seria bom se houvesse obra semelhante sobre o negro, e espero que ela apareça quanto antes. Os estudos específicos sobre ele começaram pela etnografia e o folclore, o que é importante, mas limitado. Surgiram depois estudos de valor sobre a escravidão e seus vários aspectos, e só mais recentemente se vem destacando algo essencial: o estudo do negro como agente ativo do processo histórico, inclusive do ângulo da resistência e da rebeldia, ignorado quase sempre pela historiografia tradicional. Nesse tópico resisto à tentação de indicar o clássico O abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco, e deixo de lado alguns estudos contemporâneos, para ficar com a síntese penetrante e clara de Kátia de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil (1982), publicado originariamente em francês. Feito para público estrangeiro, é uma excelente visão geral desprovida de aparato erudito, que começa pela raiz africana, passa à escravização e ao tráfico para terminar pelas reações do escravo, desde as tentativas de alforria até a fuga e a rebelião. Naturalmente valeria a pena acrescentar estudos mais especializados, como A escravidão africana no Brasil (1949), de Maurício Goulart ou A integração do negro na sociedade de classes (1964), de Florestan Fernandes, que estuda em profundidade a exclusão social e econômica do antigo escravo depois da Abolição, o que constitui um dos maiores dramas da história brasileira e um fator permanente de desequilíbrio em nossa sociedade.
Esses três elementos formadores (português, índio, negro) aparecem inter-relacionados em obras que abordam o tópico seguinte, isto é, quais foram as características da sociedade que eles constituíram no Brasil, sob a liderança absoluta do português. A primeira que indicarei é Casa grande e senzala (1933), de Gilberto Freyre. O tempo passou (quase setenta anos), as críticas se acumularam, as pesquisas se renovaram e este livro continua vivíssimo, com os seus golpes de gênio e a sua escrita admirável – livre, sem vínculos acadêmicos, inspirada como a de um romance de alto voo. Verdadeiro acontecimento na história da cultura brasileira, ele veio revolucionar a visão predominante, completando a noção de raça (que vinha norteando até então os estudos sobre a nossa sociedade) pela de cultura; mostrando o papel do negro no tecido mais íntimo da vida familiar e do caráter do brasileiro; dissecando o relacionamento das três raças e dando ao fato da mestiçagem uma significação inédita. Cheio de pontos de vista originais, sugeriu entre outras coisas que o Brasil é uma espécie de prefiguração do mundo futuro, que será marcado pela fusão inevitável de raças e culturas.
Sobre o mesmo tópico (a sociedade colonial fundadora) é preciso ler tambémFormação do Brasil contemporâneo, Colônia (1942), de Caio Prado Júnior, que focaliza a realidade de um ângulo mais econômico do que cultural. É admirável, neste outro clássico, o estudo da expansão demográfica que foi configurando o perfil do território – estudo feito com percepção de geógrafo, que serve de base física para a análise das atividades econômicas (regidas pelo fornecimento de gêneros requeridos pela Europa), sobre as quais Caio Prado Júnior engasta a organização política e social, com articulação muito coerente, que privilegia a dimensão material. 
Caracterizada a sociedade colonial, o tema imediato é a independência política, que leva a pensar em dois livros de Oliveira Lima: D. João VI no Brasil (1909) eO movimento da Independência (1922), sendo que o primeiro é das maiores obras da nossa historiografia. No entanto, prefiro indicar um outro, aparentemente fora do assunto: A América Latina, Males de origem (1905), de Manuel Bonfim. Nele a independência é de fato o eixo, porque, depois de analisar a brutalidade das classes dominantes, parasitas do trabalho escravo, mostra como elas promoveram a separação política para conservar as coisas como eram e prolongar o seu domínio. Daí (é a maior contribuição do livro) decorre o conservadorismo, marca da política e do pensamento brasileiro, que se multiplica insidiosamente de várias formas e impede a marcha da justiça social. Manuel Bonfim não tinha a envergadura de Oliveira Lima, monarquista e conservador, mas tinha pendores socialistas que lhe permitiram desmascarar o panorama da desigualdade e da opressão no Brasil (e em toda a América Latina).
Instalada a monarquia pelos conservadores, desdobra-se o período imperial, que faz pensar no grande clássico de Joaquim Nabuco: Um estadista do Império(1897). No entanto, este livro gira demais em torno de um só personagem, o pai do autor, de maneira que prefiro indicar outro que tem inclusive a vantagem de traçar o caminho que levou à mudança de regime: Do Império à República(1972), de Sérgio Buarque de Holanda, volume que faz parte da História geral da civilização brasileira, dirigida por ele. Abrangendo a fase 1868-1889, expõe o funcionamento da administração e da vida política, com os dilemas do poder e a natureza peculiar do parlamentarismo brasileiro, regido pela figura-chave de Pedro II. 
A seguir, abre-se ante o leitor o período republicano, que tem sido estudado sob diversos aspectos, tornando mais difícil a escolha restrita. Mas penso que três livros são importantes no caso, inclusive como ponto de partida para alargar as leituras. 
Um tópico de grande relevo é o isolamento geográfico e cultural que segregava boa parte das populações sertanejas, separando-as da civilização urbana ao ponto de se poder falar em “dois Brasis”, quase alheios um ao outro. As consequências podiam ser dramáticas, traduzindo-se em exclusão econômico-social, com agravamento da miséria, podendo gerar a violência e o conflito. O estudo dessa situação lamentável foi feito a propósito do extermínio do arraial de Canudos por Euclides da Cunha n’Os sertões (1902), livro que se impôs desde a publicação e revelou ao homem das cidades um Brasil desconhecido, que Euclides tornou presente à consciência do leitor graças à ênfase do seu estilo e à imaginação ardente com que acentuou os traços da realidade, lendo-a, por assim dizer, na craveira da tragédia. Misturando observação e indignação social, ele deu um exemplo duradouro de estudo que não evita as avaliações morais e abre caminho para as reivindicações políticas. 
Da Proclamação da República até 1930 nas zonas adiantadas, e praticamente até hoje em algumas mais distantes, reinou a oligarquia dos proprietários rurais, assentada sobre a manipulação da política municipal de acordo com as diretrizes de um governo feito para atender aos seus interesses. A velha hipertrofia da ordem privada, de origem colonial, pesava sobre a esfera do interesse coletivo, definindo uma sociedade de privilégio e favor que tinha expressão nítida na atuação dos chefes políticos locais, os “coronéis”. Um livro que se recomenda por estudar esse estado de coisas (inclusive analisando o lado positivo da atuação dos líderes municipais, à luz do que era possível no estado do país) éCoronelismo, enxada e voto (1949), de Vitor Nunes Leal, análise e interpretação muito segura dos mecanismos políticos da chamada República Velha (1889-1930). 
O último tópico é decisivo para nós, hoje em dia, porque se refere à modernização do Brasil, mediante a transferência de liderança da oligarquia de base rural para a burguesia de base industrial, o que corresponde à industrialização e tem como eixo a Revolução de 1930. A partir desta viu-se o operariado assumir a iniciativa política em ritmo cada vez mais intenso (embora tutelado em grande parte pelo governo) e o empresário vir a primeiro plano, mas de modo especial, porque a sua ação se misturou à mentalidade e às práticas da oligarquia. A bibliografia a respeito é vasta e engloba o problema do populismo como mecanismo de ajustamento entre arcaísmo e modernidade. Mas já que é preciso fazer uma escolha, opto pelo livro fundamental de Florestan Fernandes,A revolução burguesa no Brasil (1974). É uma obra de escrita densa e raciocínio cerrado, construída sobre o cruzamento da dimensão histórica com os tipos sociais, para caracterizar uma nova modalidade de liderança econômica e política. 
Chegando aqui, verifico que essas sugestões sofrem a limitação das minhas limitações. E verifico, sobretudo, a ausência grave de um tópico: o imigrante. De fato, dei atenção aos três elementos formadores (português, índio, negro), mas não mencionei esse grande elemento transformador, responsável em grande parte pela inflexão que Sérgio Buarque de Holanda denominou “americana” da nossa história contemporânea. Mas não conheço obra geral sobre o assunto, se é que existe, e não as há sobre todos os contingentes. Seria possível mencionar, quanto a dois deles, A aculturação dos alemães no Brasil (1946), de Emílio Willems; Italianos no Brasil (1959), de Franco Cenni, ou Do outro lado do Atlântico (1989), de Ângelo Trento – mas isso ultrapassaria o limite que me foi dado.
No fim de tudo, fica o remorso, não apenas por ter excluído entre os autores do passado Oliveira Viana, Alcântara Machado, Fernando de Azevedo, Nestor Duarte e outros, mas também por não ter podido mencionar gente mais nova, como Raimundo Faoro, Celso Furtado, Fernando Novais, José Murilo de Carvalho, Evaldo Cabral de Melo etc. etc. etc. etc". 
* Artigo publicado na edição 41 da revista Teoria e Debate – em 30/09/2000
Extraído DAQUI

domingo, maio 26, 2013

"O vento será sua herança" e o fanatismo contra a razão

Terminei de assistir ao filme O vento será sua herança ("Inherit the wind"), de 1960. O filme retrata um dos casos mais emblemáticos da história do judiciário americano. Trata-se da acusação contra o jovem professor, de 25 anos de idade, John T. Cates. Tal fato ficou conhecido como o Julgamento do Macaco ("Monkey Trial") e teve repercussão mundial. Na pequena cidade de Dayton, em 1925, no estado do Tennessee, as leis eram derivadas dos ensinamentos bíblicos. Nessa cidade (no filme, Hillsboro), o professor Bertran Cates (que no filme tem o nome mudado para John T. Cates) ensina em uma escola pública as concepções do darwinismo, sem que professe como convicção pessoal a conhecida teoria de Darwin. 

O professor é preso e são convidados para o caso os polemistas Henry Drummond - defesa - e Matthew H. Brady) - acusação. A acusação contra o professor se baseava no fato de ter desobedecido uma lei estadual que proibia os funcionários públicos de negarem os princípios do criacionismo. Nas sessões do tribunal, a população da cidade fica contra o professor. Na verdade, é compreensivo tal fato, pois as tradições da comunidade estavam sendo questionadas. As crenças geram um conforto psicológico. Quando determinada crença é questionada, há necessariamente uma desestabilização, gerando um conflito consequente.

Acontecem quatro sessões. A terceira é a mais dramática. É aquela em que é o advogado de defesa convida de forma irônica o promotor para ser interrogado. Na sessão número 2, o advogado de defesa tivera negada a possibilidade de entrevistar importantes cientistas e professores eminentes. Na terceira, de forma irônica, mune-se de uma bíblia para julgar o promotor, considerado um perito no conhecimento das escrituras. Aqui percebemos um gracejo feito pelo advogado de defesa, já que às autoridades científicas havia ocorrido uma negativa.

Henry Drummond utiliza como estratégia questionar alguns pontos bem sensíveis do texto bíblico como, por exemplo, a história da criação, o mito de Jonas e narrativa que conta que Josué fez o sol ficar inerte no céu. Tais argumentos foram elaborados de tal forma que fizeram o promotor caí em contradição. Ao final da sessão, ele estava bastante abalado, desorientado. O que o faz ir para casa e escrever uma extensa prédica a favor do criacionismo. 

Na quarta e última sessão, na qual teria o veredicto proferido, o professor é condenado. Sua condenação resume-se a pagar uma multa de cem dólares. Matthew H. Brady, responsável pela acusação, protesta veementemente. Quando a sentença é proferida, inicia o seu discurso tresloucado. E no calor da saraivada raivosa e conservadora acaba tendo um enfarte e morre seis dias depois. Sua morte simboliza a morte dos valores retrógrados e ensejando o surgimento de novas concepções.

O filme do diretor Stanley Kramer deixa-nos uma relevante reflexão, posto que nos alerta contra os dogmatismos, sejam eles religiosos ou "a-religiosos" - este último é aquele tipo de dogmatismo que tenta divergir da religião, mas acaba se tornando outra religião. Em todas as épocas da história a intolerância sempre esteve presente. O direito à liberdade de pensamento fizeram com que Sócrates, Giordano Bruno, Galileu Galilei ou Charles Darwin fossem perseguidos por desferirem golpes filosóficos nas ideias estabelecidas.

A religião, talvez, seja uma das dimensões do ser humano mais geradoras de conflitos. O religioso crente em seu dogma é preconceituoso, possui visão curta e não está aberto a qualquer debate. Se a linguagem diverge contra a sua, aquele que profere esta sentença é digno de um tribunal. 

Como fica bem claro no filme, o que distingue o homem dos outros seres da natureza é justamente a sua capacidade de pensar. Se deus fez o homem conforme está escrito nos "poemas sagrados" não lhe seria negada a possibilidade de ousar com a razão. Como fala do advogado de defesa: "Que outro mérito nós temos? O elefante é maior, o cavalo é mais veloz e mais forte... a borboleta é mais bonita, o mosquito é mais prolífico... até mesmo uma esponja é mais duradoura". 

P.S. O nome do filme é baseado no texto de Provérbios 11.29: "Aquele que perturba sua casa herdará o vento...". 

Excelente filme!

domingo, maio 19, 2013

Resposta a uma pergunta...

Texto escrito como resposta elaborada por mim a uma pergunta feita por um colega de seminário (hoje pastor presbiteriano). Fiz algumas modificações para que a impessoalidade pudesse prevalecer:



"Xxxxx, paz e bem para você!

Desculpe por não tê-lo respondido antes. Não ignorei sua mensagem. Apenas quis achar um momento oportuno para tal. Com relação à igreja, de fato, não estou vinculado a nenhuma comunidade - apesar de, acredito, ainda está inserido no rol de membros da Igreja Presbiteriana do Cruzeiro. Não quero passar a ideia de que me tornei mais esclarecido, mais evoluído, mais sofisticado; de que descobri a pólvora da consciência cósmica e espiritual, mas muito daquilo que é pregado pela igreja não preenche mais as minhas necessidades. Atualmente, penso que a Igreja pregue uma dogmática que é mais linguagem do que verdadeira espiritualidade. A Igreja é uma comunidade que prega uma moralidade castrante e reacionária. Suas expressões estão balizadas em um conservadorismo que é resultado do antigo judaísmo. Na verdade, penso que defendamos cegamente aquilo que nos contaram. Nunca fizemos uma investigação verdadeira. Repetimos a história de uma sociedade que conseguiu perpetuar suas crenças. A espiritualidade é uma dimensão inegável do ser humano, mas ela não é privativa de determinado entendimento cultural ou religioso. Continuo desejoso da verdadeira espiritualidade, mas a espiritualidade dos monges medievais - São Boaventura, Santa Tereza de Ávila, Santo Agostinho, São Jerônimo, São João da Cruz... que para mim são modelos de uma verdadeira espiritualidade. Sinto-me desconfortável quando vou à Igreja e escuto discursos "grávidos" de uma moralidade que reivindica exclusividade da verdade. A verdade não é algo que alguns homens tenham e, outros, não. Muito pelo contrário, acredito que exista uma diversidade de compreensões, pois todas as verdades são verdades do Uno. Reivindicar a exclusividade da verdade é uma violência contra as leis que regem a natureza. Na natureza, não encontramos "o um", encontramos "o muito". A verdadeira espiritualidade é aquela que  liberta para viver aquilo que é típico e característico do ser humano: a capacidade de ser humano plenamente. A espiritualidade deve impulsionar o sujeito a viver uma humanização verdadeira na história. Penso que a Igreja só está aberta a dialogar com aquele sujeito que verbalize a mesma linguagem. O diferente não entra na Igreja. É necessário que ele se "converta". Conversão (essa palavra!) quer dizer um "modus operandi" que se coaduna com a récita da comunidade.

Peço perdão se fui agressivo com as palavras e agradeço as suas orações. Isso demonstra o quanto praticas uma espiritualidade diferenciada. Alguns podem me criticar. Você, pelo contrário, tenta me entender.

Abraço forte!

P.S. Se quiseres conversar, é só chamar".



sexta-feira, maio 17, 2013

Jethro Tull no Programa do Jô - 1990 - vídeo raro

Dando uma zapeada pelo Youtube e vendo alguns vídeos do Jethro Tull, eu acabei encontrando esse registro fantástico. Trata-se de uma entrevista realizada pelo Jô Soares com o Ian Anderson em 1990. Anderson mostra-se, na entrevista, o grande artista que é e sempre foi - inteligente e com um grande senso de humor. No final, os caras ainda tocam duas músicas. Muito bom!

domingo, maio 12, 2013

O absurdo de existir - O estrangeiro, de Albert Camus

Terminei a leitura de O estrangeiro, de Albert Camus, escritor existencialista franco-argelino e fiquei pensando nas cenas do último capítulo. O livro é uma narrativa curta. Fácil. De leitura de fluência prazerosa. O que impressiona no livro é a carga densa de filosofia instilada da existência da personagem Meursault. O Estrangeiro talvez seja a obra mais conhecida de Camus, juntamente com A peste e o Mito de Sísifo

O livro, ao meu modo de ver, é dividido em três momentos: (1) a descrição inicial da vida e da morte materna da personagem principal,  Meursault; sua vida de trabalhador de um escritório e suas preocupações burocráticas; e a atividade sexual com Marie. (2) o assassinato cometido por  Meursault, seu julgamento e a sentença de morte. (3) a consciência adquirida por  Meursault na cadeia. O último capítulo, por exemplo, é aquele que mais me chamou a atenção. 

Após ter sido condenado à morte pelo tribunal, Meursault é recolhido à prisão e passa a ruminar a existência. Rejeita a visita do capelão da prisão por diversas vezes. Até que certo dia, este aparece e tenta estabelecer um diálogo com uma finalidade bem óbvia: o arrependimento e a conversão à fé, como fica claro no diálogo estabelecido pelos dois. Todavia, Meursault se nega a este artifício.  O padre tenta derrogar a obstinação de Meursault, mas em vão. 

É curiosa essa citação do livro: "Mas todos sabem que a vida não vale a pena ser vivida. No fundo, não ignorava que tanto faz morrer aos 30 anos ou aos 70 anos, pois, em qualquer dos casos, outros homens e outras mulheres viverão, e isso durante milhares de anos". (p. 114). Impressiona o niilismo dessa afirmação e aqui chegamos, talvez, a um dos fundamentos básicos da filosofia de Camus: o absurdo. O que é viver? Para quê serve a vida? Em que ela deve se sustentar? 

Para explicar isso, é conhecido a alegoria criada pelo escritor em um ensaio de 1941, conhecido como O mito de Sísifo, para exemplificar em que a vida está estribada. Segundo ele, Sísifo, personagem da mitologia grega, foi condenado pelos deuses a rolar uma pedra de peso e proporções enormes por um aclive. O trágico da existência de Sísifo é que, todas as vezes que ele chegasse ao cume da montanha, a pedra rolaria monte abaixo. E Sísifo empreenderia a ação infinitamente, sempre de maneira infausta e deprimente. O seu esforço redundaria sempre em insucesso. 

Para Camus, a existência é esse jogo com o absurdo. Outro exemplo tirado de uma outra alegoria criada por ele, é a de alguém enfrentando um exército armado com metralhadores e canhões, apenas com uma espada. Tamanho quixotismo é a encenação que se dá no teatro da vida. Por mais que se busque um subterfúgio (a religião, os prazeres, o consumismo etc) para tampar o realismo desse sol devorador, tal tentativa não minora essa coisa assombrosa que é existir. Existir é estar nu diante de si e da consciência do mundo. Vive-se em um universo imparcial, sem Deus

Como um bom existencialista, Camus sabia que a única possibilidade é, de enquanto rolamos a pedra montanha acima, nos ocuparmos com um projeto que abra janelas de sentidos. É assim que surge a frase como um lampejo de luz nessa atmosfera agônica e trágica em O estrangeiro: "Mamãe costumava dizer que nunca se é completamente infeliz. Mesmo na prisão..." (p. 113). Ou seja, mesmo condenados a vivermos no absurdo podemos experimentar as cintilações de beleza do universo. Mas a pedra... ah! a pedra rolará, pois estamos condenados a isso...

P.S. Luchino Visconti, que adaptou belamente Morte em Veneza, de Thomas Mann, filmou em 1967 O Estrangeiro, de Camus. Vale a pena ver. Pode ser encontrado no Youtube. 

sexta-feira, maio 10, 2013

"As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras"

Diz Paulo Freire em sua Pedagogia do Oprimido que não é possível manter uma relação dialógica com quem não comungue com o seu projeto ideológico. Pensava que existia um certo radicalismo nessa assertiva, até que ontem percebi que o educador pernambucano estava correto. Nietszche diz também em um dos seus livros que "as convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras". 

Faço essa divagação, pois ontem tive o desprazer de tentar estabelecer um diálogo com um sujeito o qual estudei em um seminário teológico. Nos anos de seminários, notava o quanto o sujeito era "quadrado", radical; o quanto baseava seus argumentos em convicções extremadas. Ontem, pelo Facebook, fiz uma correção a uma afirmação sem fundamento histórico colocada por esse ex-colega e ele me respondeu com uma ironia despropositada. Além do que, enviou-me um texto que, quando li, dei grandes risadas.

O texto busca desqualificar o marxismo, fazendo uma mixórdia de afirmações desencontradas. Fiquei com a impressão irônica de que a principal função de Marx era perseguir o cristianismo e acabar com a religião de Paulo. Um verdadeiro desbunde. Imaginei, ainda, que (se eles - construtores de teologias alienígenas - leram os textos de Marx) eles haviam lido outros textos, que não aqueles escritos pelo autor de O Capital. O nome dado pelos adeptos desse radicalismo esquizofrênico é "marxismo cultural". Marxismo cultural seria o movimento de cunho cultural, alimentado por intelectuais e pelos meios de comunicação de massa para arruinar os valores judaico-cristãos. 

 O que me chamou atenção foi a incapacidade do sujeito ler os fatos por uma perspectiva crítico-dialética. Ele se diz professor de Filosofia no estado do Maranhão. Temi pelo que o sujeito anda ensinando para os sues alunos. Afinal, ele colocou o socialismo, o nazismo e o fascismo na mesma esteira de comparação. Ele ignora o fato de que foi a União Soviética que derrotou o nazismo. Não quero entrar no aspecto do socialismo real implementado pela União Soviética, já que sempre associam o socialismo às ditaduras variadas. Todavia, vivemos, também, uma ditadura muito bem-disfarçada sob a égide da democracia e da liberdade.

Indicou-me alguns escritores aos quais já tive a oportunidade de conhecer - Peter Kreeft, Olavo de Carvalho, Nancy Pearcey, Charles Colson, William Craig, John C. Lennox. A maioria deles, da direita ultra-conservadora dos Estados Unidos. Ou seja, defensores da política de Bush.

O que me deixa impressionado é saber como um sujeito que se arroga a ser formador de opinião se mostra tão míope. Sua preocupação mais intensa é o movimento homossexual. Desconhece o sujeito que os valores morais  seguem a lógica de cada momento da dialética da história. E que a própria sociedade judia possuía os seus valores e esses foram cristalizados no tempo pelo movimento religioso que dogmatizou os seus aspectos culturais. Impressiona-me como os valores culturais de uma determinada sociedade, no caso a judia, por meio dos valores ditos bíblicos, cegam um ser humano ao ponto de descaracterizar, distorcer a própria realidade em que vive. Impressiona-me perceber que, como no Mito da Caverna de Platão, alguém enxerga o mundo por meio de sombras. Assusta-me o nível de embrutecimento gerado pelas convicções da fé. Isso explica, por exemplo, a atitude de um homem-bomba ou a capacidade de ser implacável com os diferentes. 

Paulo Freire e Nietzsche me fizeram entender um pouco mais sobre a natureza do humana, demasiado humana.

quinta-feira, maio 02, 2013

Filme "Criação" - sobre a vida de Charles Darwin

Assisti, ontem à noite, ao filme Criação (2009), do diretor Jon Amiel, que trata sobre a vida de um dos homens mais comentados e polêmicos da história, Charles Darwin. A obra é boa sob vários aspectos. Todavia, percebemos outros elementos de cunho ficcional que foram inseridos para aumentar o drama sobre a vida do inglês. 

O filme possui uma fotografia belíssima. Passa-se na Inglaterra vitoriana, época em que a religião e o moralismo, baeado nas ideias divinas, possuíam uma força disciplinadora. Assim, a obra busca mostrar dramas físicos, espirituais e mentais enfrentados pelo inglês antes da divulgação de A origem das espécies, de 1859. O fato é que Darwin relutava consigo mesmo antes divulgar uma teoria que poria em xeque o ideal criacionista de que todas as coisas emanam da vontade de um criador bondoso e benovolente.

Darwin passa entender, por meio de suas observações, que existe um gládio na natureza. Sua grande viagem pelo mundo realizado no HMS Beagle (1831-1836), fê-lo compreender empiricamente que, na natureza, os romances são dispensáveis. O que prevalece é a força e a imparcialidade. O mais forte sobrevive e transmite aos seus descendentes as suas características. Para que uma espécie sobreviva é necessário, muitas vezes, que prevaleça sobre a mais fraca. Isso fica claro numa das cenas do filme, quando Annie diz para seus irmãos ao perceberem uma raposa matar um coelho indefeso: "A raposa tem que comer o coelho, se não os bebês da raposa morrerão. É o equlíbrio das coisas". 

Ou seja, Darwin não é a-religioso. Deve se entender que a existência filósofica do conceito de moral, amor ou compaixão é um elemento fincado no mundo humano. Na natureza não existem bondades. Apenas a luta de cada espécie para gerar descendentes férteis e sobreviver. A verdadeira luta de todas as lutas na natureza, é a luta pela vida. A grande questão em Darwin é que ele tirou a cabeça dos homens do mundo das ideias; das explicações religiosas e não sustentadas por uma base empírica, portanto, científica, e as colocou no mundo natural. É como se ele dissesse: "Escutem! Todas as explicações para compreendermos todas as coisas estão aqui". Os argumentos da religião atuam nas lacunas. Se não se pode entender ou explicar com argumentos plausíveis, fala-se: "Não podemos especular ou contradizer as escrituras ou as coisas de Deus".

No filme, o amigo de Darwin, Thomas Huxley, que foi um dos maiores defensores da teoria no século XIX, diz: "Você matou Deus". Penso que Darwin não matou Deus. Talvez, sim, do ponto de vista da logicidade e da desnecessidade de colocar Deus no cerne da teoria. Afinal, não há lugar para um criador em sua teoria. Deus pode continuar a existir na cabeça daqueles que acreditam em sua existência, sem que interfira nas coisas da ciência. Darwin lutava contra as consequências da divulgação de suas ideias, pois há muito que ele deixara de crer em um criador. Haveria uma desagregação generalizada, no seu entender. Como as pessoas, as sociedades ficariam? Pensava em sua mulher.

O filme é bom. Todavia, exarcerba no dramalhão envolvendo Darwin e a morte de sua filha, Annie. Em alguns momentos dá a entender que o vetor principal que atrapalhava Darwin para não pulblicação do livro foi a morte da filha. Ela parecia exercer, no filme, um fascínio fantasmático. Segundo seus biógrafos, a morte da filha em 1851, encorpou a sua não crença na religião. De qualquer forma, é uma excelente obra para conhecermos um pouco mais sobre a vida de um dos maiores cientistas de todos os tempos.

quarta-feira, maio 01, 2013

Rubem Braga - "um poeta espião da vida"

"Um escritor é um homem cuja matéria de trabalho é a palavra. Sua diginidade consiste em dizer a verdade, isto, reivindicar para cada palavra o seu valor".
Rubem Braga, in Retratos Parisienses, p. 126

Este ano, o nosso país comemora o centenário do nascimento do escritor capixaba Rubem Braga, um dos nomes mais importantes do jornalismo brasileiro no século. O que é singular em Braga é que ele se tornou uma referência literária apenas escrevendo crônicas. Escreveu mais de 15 mil. Um número bastante expressivo. Morreu em 1990.

O primeiro contato que tive com o escritor nascido em Cachoeiro do Itapemirim foi no livro "Ai de ti, Copacabana", que li em 1998. Revisitei-o outra vez alguns anos mais tarde. Trata-se de um dos livros mais belos que já li. É curioso perceber como alguém conseguiu dominar com tanta maestria esse estilo literário. Afonso Romano Sant'Anna, outro excelente cronista, diz que "o cronista é um escritor crônico". Mais que um jogo de palavras, a frase quer apontar a contumácia, teima, a produção pródiga do cronista. Para o cronista, tudo é motivo para se produzir - a mulher, o dia, a manhã, a criança que brinca no pátio, os problemas da política, os intelectuais, o ônibus lotado, a árvore, a mulher que espera o homem, o velho sentado na praça etc.

Com Rubem Braga esse fato tornou-se algo efetivo. Em "Ai de ti, Copacabana", Braga desfere golpes com pétalas de flores. Seu olhar é privilegia o instante. Observador preciso, Braga parece contar as palavras para exatificam esse instante. As crônicas mais belas do livro são aquelas que ele se voltou para um fragmento do tempo, como um observador que se atém em um pedaço de uma paisagem. 
Terminei a leitura de um livro recente, editado pela José Olympio. E, mais uma vez, pude recuperar a emoção de ler o Rubem. O livro, lançado este ano, se chama "Retratos Parisienses". Fiquei sabendo da existência do livro na edição de março da Revista Cult. Trata-se da compilação feita pelo professor de Literatura Brasileira e poeta Augusto Massi. O livro reúne crônicas inéditas, escritas em 12 meses em que Braga esteve em Paris - entre 1950 e 1951. 

O livro busca mostrar outra faceta do escritor - o de cronista cultural. No livro, Braga centra o foco sobre importantes personalidades artísticas e políticas da Europa do pós-guerra - Sartre, Thomas Mann, Picasso, Cocteau, Andre Bretton, Marc Chagall, Juliette Gréco, Louis-Ferdinand Céline entre outros. Braga, apesar de ter ido a Paris como jornalista, subverte, quando entrevista algumas dessas personalidades, a ideia jornalística de que uma eentrevista deve ser realizada com perguntas e respostas. 

É interessante notar a habilidade preservada de Braga, no livro, para descrever de forma incisiva e contundente, os traços de determinada pesonalidade. Ele consegue, com poucas palavras, fornecer uma imagem precisa do retratado. Por exemplo, quando descreve Cocteau, usa as seguintes palavras de uma precisão assustadora:

Não sei a idade de Cocteau; deve estar entre os cinquenta e os sessenta anos; os cabelos são grisalhos sobre a testa alma mas fina; há uma coroa, que os cabelos não chegam a dissimular bem, como se ele fosse um padre renegado. A cara magra, nervosa e triste, talhada de rugas; o nariz bem-traçado e firme; a boca pequena, as orelhas pontudas agarradas à cabeça. Tudo isso lhe dá um ar mesmo tempo de cansaço e de atividade; os olhos pequenos, as pálpebras fatigadas, são alternativamente vivos e sonhadores. Fala com rapidez e facilidade, e sua conversa prende, proque passa incessantemente de observações práticas e precisas para coisas de poesia e sonho. Sente-se que ele vive a um só tempo nesses dois mundos; confunde-os em só, a que chama realidade.

Percebe-se em Rubem a habilidade para o ofício de escrever. As palavras eram arranjadas de forma matemática. Ele garimpava a palavra. Burilava. Dispensava o superflúo. Como diz André Seffrin, Rubem Braga era "um poeta espião da vida".