domingo, julho 28, 2013

Ceilândia "confronta" Brasília - e vice-versa

Foto da Caixa d´Água, Ceilândia Centro
Ontem, consegui correr 15 quilômetros. Foi um momento de bastante satisfação. Já estava há certo tempo querendo atingir essa meta. Coloquei a seguinte frase no Facebook: "15 quilômetros de corrida pelas ruas de Ceilândia. Que beleza! Sigamos..." Entre os vários comentários que surgiram, um me chamou a atenção, talvez, pelo nível de crítica contra a escolha de correr pelas ruas de Ceilândia, uma das cidades-satélites mais violentas do Distrito Federal: "fala sério pela ceilândia meu deus" (ipsis litteris), disse um dos comentaristas, professor e colega de trabalho da escola onde leciono.

Não que esteja criticando o meu colega, mas fiquei pensando sobre as posturas que tomamos a respeito de alguns fatos. Respondi para o meu colega da seguinte forma: 

"Minha mãe mora lá. Fui visitá-la e, como sempre faço, aproveitei para correr. Fui da Ceilândia Sul à BR-070. Fiz alguns volteios pelo Setor-"O" e retornei à Ceilândia Sul, chegando até à Via Estádio. É uma delícia! A administração construiu aquelas pistas para ciclistas e a coisa ficou "simpática". É bom correr por lá. Além do quê, eu fui criado em Ceilândia. Conheço bem a cidade. Saiba que Ceilândia já foi matéria de poema para Carlos Drummond de Andrade. O nome do poema é "Confronto". A exata expressão crítica drummondiana que expressa o orgulho da "suntuosa Brasília", com o seu pasto verdejante de empáfia marmórea e a ressequida e "esquálida Ceilândia", todavia com muita gente séria e trabalhadora, a se mirarem num conflito social muito sério: Olhe que beleza o poema do Drummond: 

"A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia
contemplam-se.
Qual delas falará primeiro?
Que tem a dizer ou a esconder uma em face da outra?
Que mágoas, que ressentimentos prestes a saltar
da goela coletiva e não se exprimem?
Por que Ceilândia fere o majestoso orgulho da flórea Capital?
Por que Brasília resplandece
ante a pobreza exposta dos casebres de Ceilândia,
filhos da majestade de Brasília?
E pensam-se, remiram-se em silêncio
as gêmeas criações do gênio brasileiro"
Foto do Centro de Ceilândia, ainda na década de 1970. Ao fundo, o barracão onde hoje é Feira Central

Esse fato me levou refletir como os conceitos enviesados são formados. Algo assim está lá na Bíblia. Diz um dos evangelhos que quando Jesus chegou a Jerusalém e começou a ensinar às multidões, os líderes religiosos, que constituíam a elite da época, passaram a questionar o lugar de nascimento de Jesus. Quando souberam que ele era do Norte de Israel (Galileia), pergutaram: "E por acaso daquele lugar pode sair algumas coisa boa?". Ou seja, uma afirmação que atrela o lugar de nascimento ao fato de ser "bom" ou "mal"; como se uma metafísica se estabelecesse como código moral formador do sujeito.

Como diz o poema do Drummond, Brasília é uma cidade em "confronto". É uma cidade na qual a sua delimitação cria uma cinturão de antagonismos. A arquitetura moderna é contrastante em relação às muitas cidades-cidades. Ceilândia é uma dessas cidades. Formada na década de 70, recebeu o nome augural de "Centro de erradicação de invasões" (daí o epíteto "CI" e o posterior nome "Ceilândia, que nos passa a ideia daquilo que o próprio nome preconiza - "terra das invasões"). A cidade é constituída por migrantes e filhos de migrantes vindos de muitos locais do Brasil para construir e ser construído pelo "sonho" chamado Brasília, sendo os nordestinos sua massa motriz. Essa influência nordestina está na fala, nas músicas, nos comportamentos, nas vestimentas e, principalmente, na Feira Central de Ceilândia, que ainda conserva a tradição gastronômica - buchada, mocotó, dobradinha, etc. É, atualmente, a cidade mais populosa do Distrito Federal e uma daquelas que apresenta o maior número necessitados da Capital Federal.

Foto da atual Ceilândia a partir de Ceilândia Sul
Ceilândia é um desses casos de nosso país, como diz o poema do Drummond, em que mostra a capacidade do "gênio brasileiro" de criar paradoxos. Encontramos o suntuoso, o nababesco, o babélico, mas ao mesmo tempo, retrato de nossos abismos sociais, criamos voluntariamente o inesoto, o esquálido.

Fui criado em Ceilândia. Morei lá boa parte da minha vida. Gosto da cidade. Quando passo pelos locais onde fui criado, onde brinquei, uma porta dimensional se abre no tempo e me vejo ainda criança. Impossível esquecer. Ou seja, um pouco de minha ontologia está lá colocada, plasmada, tatuada.

Então, o fato de correr em Ceilândia se estabelece como algo poético e revitalizador. O sujeito nascido no centro de Brasília corre no Parque da Cidade, lugar feito para a fauna aburguesada exercitar-se, e julga isso como sendo natural. Ou seja, naturalizamos algumas coisas e estranhamos aquelas para as quais não estamos acostumados, sem percebermos que tudo é parte de um jogo de discursos. 

sexta-feira, julho 26, 2013

Livros - mais livros... II

Parece ser um evento novelístico ou quem sabe a atestação do mito de sísifo; ou ainda uma ciranda louca e contumaz de um rio que deságua no mesmo oceano infindo de prazer marginal. A promessa não cumprida. O desafio feito como evento para apaziguar o fetiche brutal que habita as listas e as linhas da agenda. O rabiscar. O "ok" que é dado diligentemente quando o objeto é conquistado como a liberdade desejada pelo cativo. A sensação de meta realizada. De mais um plano alcançado. De mais um exercício consumado.

Fiz uma promessa no início da semana, mas ela não se sustentou por muito tempo. Simplesmente, vacilei em minha pusilanimidade de vontade, em minha indisciplina. A sensação de culpa. A consciência cônscia do desatino.

Afirmo tais coisas, pois hoje fui à Livraria Cultura aqui em Brasília. Saí do trabalho às quatro da tarde e fui com a minha esposa àquela loja capaz de criar mitologias. De fazer escancarar uma planície de ânsias indomáveis. Fizera a promessa de que não iria a espaços onde houvesse livrarias. Minha esposa procurava algum tipo de literatura que fosse ou que tratasse do filósofo Antonio Gramsci. Inconscientemente, eu sabia da potencialização do pecado. Mas fui. Acabei sendo fisgado, inevitavelmente, pela disposição da necessidade. Voltei da loja com cinco livros. Eis as materializações dos meus pecados: 

Tratava-se de um projeto de compra antigo. Ganhou corpo depois que li o texto que pode ser encontrado aqui. O livro, conforme se pode ler na nota explicativa, foi publicado em 1859. É o livro que marcou a volta de Dostoiésvki ao mundo da literatura após quase dez anos de exílio na Sibéria. Obra da Editora 34 e traduzido por Lucas Simone, direto do russo.
 O outro livro que, na verdade, é um conto, foi escrito em 1873. É um texto que surge com o espírito sardônico, por exemplo, como O alienista, de Machado de Assis, criando cintilações ácidas em torno dos costumes aristocráticos viciosos da Rússia do final do século XIX. Outro livro da magistral Editora 34 com tradução de Paulo Bezerra.











Já o livro O duplo eu conheci quando fazia o curso de Letras. Não cheguei a lê-lo. Apenas li referências à obra. É a segunda obra escrita pelo russo. No ano de 1846, Dostoiévski publicou Gente Pobre e, duas semanas depois, soltaria O Duplo. A obra vai revelar ao mundo a viagem dostoievskiana ao abismo escuro e caótico da consciência humana. Nesta obra está o gérmen para os personagens complexos e multifacetados como Raskolnikov ou o príncipe Michkin. Essa abordagem acontece com aquela mestria típica do russo, que sempre mergulha nas profundezas da alma humana, com finalidades perscrutatórias. Novamente, a excelente Editora 34 e tradução de Paulo Bezerra.
 O primeiro livro do escritor norueguês, Karl Ove Knausgärd, a aparecer por aqui - Minha Luta 1 - A morte do Pai - eu conheci pelo blog do Charlles. Ao entrar na Livraria Cultura, pude ver na sessão de lançamentos o livro de Knausgärd e, imediatamente, fui fisgado. A começar pela capa que traz uma bela e evocativa paisagem de uma estepe. As estepes sempre foram uma espécie de porta dimensional que me leva a mundos inóspitos e carregados de mistério. Leio a seguinte informação na orelha do livro: "No presente da narrativa, com 39 anos e três filhos, Knausgärd deve se ajustar à rotina da família, trocar fraldas e apartar brigas, tudo isso enquanto tenta escrever seu novo romance, numa luta diária. É esse homem que busca se haver com a morte do pai e com o próprio passado, lançando-se em uma investigação minuciosa que resulta nesta obra aliciante híbrido de ficção e memória. Não é à toa, entre variadas referências literárias a Proust aparece como a inspiração mais evidente de seu ousado projeto, que se estende por mais de 3 mil páginas e seis volumes, sem abandonar a matéria autobiográfica".

 A temática desse livro eu vi na entrevista que Mário Vargas-Llosa, um dos mais eminentes escritores latino-americanos da atualidade, deu ao programa Roda Viva no mês de maio. Llosa é um liberal franco, profundo e de fala fácil. É bom ouvi-lo. Em A civilização do espetáculo (uma evocação do livro homônimo de Guy Debord?), o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura do ano de 2010, desfere golpes contra "a banalização das artes e da literatura". Trata-se de um livro que se coloca no campo da crítica cultural. O escritor peruano entende, neste livro, que a cultura não deve se esquivar da realidade, gerando inclinações unicamente para a diversão e o entretenimento. O livro gerou algumas críticas a Vargas-Llosa como, por exemplo, a de que ele faz a defesa de uma cultura "eurocêntrica". Penso em minha simplicidade que a sua crítica seja contundente e séria.

quarta-feira, julho 24, 2013

Memórias Póstumas de Brás Cubas e a genialidade de Machado de Assis

"Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados" - Brás Cubas

Durante muito tempo alimentei dentro de mim uma oposição branda à genialidade de Machado de Assis. Questionava os laudatórios ufanistas que se faziam ao escritor carioca. Achava aquilo demasiado. Passei mais de dez anos sem lê-lo. Infelizmente. Essa negligência, creio, foi um prejuízo sem igual. Machado é daqueles escritores que precisam ser lidos de forma incansável, religiosamente. O autor de Memórias Póstumas não deve nada aos chamados grandes escritores do

mundo. Lê-lo com atenção é encontrar tesouros velados; ironias finas; críticas geniais à sociedade; impudências variadas; humor ríspido, bufônico; tiradas sensacionais; originalidade e ousadia.

Meus conceitos mudaram completamente em relação ao escritor este ano após ler dois de seus livros. Ainda bem. Em janeiro, enquanto estava de férias em João Pessoa-PB, li Quincas Borba, obra cujo nível de domínio da técnica do romance e dos personagens impressiona; sem falar na crítica terrível que desfere contra a sociedade hipócrita de sua época. E, agora, no mês julho, no meu recesso, tive a oportunidade de revisitar Memórias Póstumas de Brás Cubas. Passei dois dias - 13 e 14 - na cidade de Pontalina, município goiano, situado a 130 Km da capital. Sentado no banco da frente da casa da avô da minha esposa, eu pude constatar na leitura frenética que fiz das Memórias, que o livro é uma das coisas mais sensacionais que já foram produzidas. Pude captar dessa vez, boa parte daquele paisagem infinda que se espraia nos seus romances. E como diz muito acertadamente Roberto Schwarz em seu Um mestre na periferia do capitalismo, "a prosa narrativa machadiana é das raríssimas que pelo mero movimento constituem um espetáculo histórico-social complexo (...) Neste aspecto caberiam comparações com a prosa de Chateubriand, Henry James, Marcel Proust ou Thomas Mann".

Memórias Póstumas, escrito em 1881, inicia aquela grande fase que traria livros como, por exemplo, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Quincas Borba e Memorial de Aires; sem falar no conjunto de contos contidos em Papéis Avulsos. Especificamente em Memórias Póstumas, Machado firma um tipo de "impudência narrativa" que consegue dá um ritmo peculiar à obra. A epígrafe em forma de saudação já é um grande disparate literário: "ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver", deixa de forma clara a mensagem que ali não existe um narrador comum. Somente alguém com muita ousadia e domínio da forma para encetar algo assim. 

O narrador-personagem mostra-se como um clown, uma espécie de pândego. Todavia, essa perspectiva é construída a partir daquilo que foi. Mas tudo aquilo que diz busca construir um humor infame, como se a sua vida tivesse sido uma sucessão de quadros quixotescos, a qual o herói surge espoliado das qualidades  reluzentes necessárias à sua condição. Brás Cubas é um narrador cara-de-pau; é um basbaque; um piadista. Mas, um crítico severo. Seu humor é mordaz. Nesse sentido, as palavras de Machado ganham em grandeza, posto que cada palavra deve ser deslocada de seu sentido. Schwarz vai dizer que em Machado "não há frase que não tenha segunda intenção ou propósito espirituoso".

Aspecto curioso de Brás Cubas é o veio enciclopédico. Ele utiliza variadas citações e referências. Começa pelo Pentateuco, conjunto de cinco livros Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) considerados como sagrados pela religião judaico-cristã. Todavia, essas menções intertextuais se expandem dos tempos bíblicos à literatura clássica; dos romanos à Idade Média; da Reforma ao Renascimento; da Guerra Civil Inglesa às unificações alemã e italiana; de Stendhal a Lawrence Stern; de Verdi à esposa de João Caetano. Não são simplesmente alusões frias, pedantes, desnecessárias, empoladas. Não. O narrador o faz com tanta graça e leveza que, uma vez que fossem extraídas, traria prejuízo para o texto. 

Cada capítulo é construído com uma liberdade de forma que põe Memórias Póstumas na esteira do moderno. Machado inova com isso. Temos assim uma obra com muitas polifonias. É isso que torna essa obra algo perene e inesgotável para as análises. Um exemplo da genialidade de Machado está, por exemplo, no capítulo 68, denominado "Vergalho". Transcrevo-o abaixo: 

"Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: — “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.

— Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!

— Meu senhor! gemia o outro.

— Cala a boca, besta! replicava o vergalho.

Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.

— É, sim, nhonhô.

— Fez-te alguma coisa?

— É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.

— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.

— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, — transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!"

O capítulo acima atesta o quanto o autor sabia construir crítica social com humor. É curioso que aquele que fora castigado na infância de Brás Cubas, havia se tornado em carrasco. Uma ironia terrível. Machado aqui posiciona a sua crítica contra a sociedade escravista e contra os dilemas da natureza humana quando exposta à ganância e ao poder. 

Machado tem aumentado o seu prestígio internacional. É lamentável que isso não tenha ocorrido há mais tempo. Penso que ele não fique abaixo de qualquer outro grande romancista francês, russo, americano ou inglês como dito acima. Machado passou a ser reverenciado por nomes como Salman Rushdie, Martin Amis, Paul Auster e Woody Allen. Manguel - ainda vivo - e Carlos Fuentes - já falecido - elaboraram estudos sofisticados sobre o Bruxo do Cosme Velho. Susan Sontag elogia Machado em Questão de ênfase, colocando-o como o maior autor da América Latina. E Harold Bloom o coloca naquele rol dos cem maiores escritores da história.

Ou seja, Machado de Assis é um caso de gênio com uma galáxia de inesgotabilidade literária. Sua originalidade coloca-o entre os grandes. Entre os imortais.

P.S. Depois tentarei escrever sobre a parte final de Memórias Póstumas.

domingo, julho 21, 2013

Livros - mais livros...

É uma vocação para a megalomania. Para a necessidade criada a partir da pulsão de "mais ter". O fator castrante é o tempo e sua força aterradora que tudo reduz e limita. Eu, mais um elemento reduzido e limitado nessa jornada tortuosa de comprar e ler mais livros. Nestas minhas duas últimas semanas, a aquisição foi considerável. Ouvi muitas reclamações de minha esposa. O apartamento pequeno. As necessidades de organização de minha companheira. Do outro lado, e a minha compulsão inevitável. Cheguei ao plano arrazoado de comprar somente dois livros por mês - isso até o final do ano. 

Não vejo o momento em que poderei comprar um lugar maior para que eu possa fazer uma biblioteca. Atualmente, coloco os livros em uma grande estante que fizemos quando casamos. Os livros já passaram da casa dos mil. A estante não mais os comporta. Já fiz filas duplas. Todavia, quando visito sites como o da Saraiva, da Livraria Cultura, Livronauta ou Estante Virtual, sempre cometo o pecado da bibliomania. 

Já há algum tempo eu evito visitar shoppings, posto que todas as vezes que vou a algum desses locais reservados ao fetichismo da mercadoria, infrinjo mais códigos e sentenças e acabo voltando com uma quantidade inúmera de pockets e coisas variadas. Abaixo, uma pequena lista dos livros que comprei nas duas últimas semanas: 

01. Marxismo e alienção, Leandro Konder;
02. Marighella - o guerrilheiro que incendiou o mundo, Mário Magalhães;
03. A deserticação neoliberal, Ricardo Antunes;
04. Bachelard, Elyana Barbosa & Marly Bulcão;
05. Como funciona o ficção, James Wood;
06. A imaginação dialética,  Martin Jay;
07. Che Guevara: a vida em vermelho, Jorge G. Castañeda;
08. Nós e o marxismo, Florestan Fernandes;
09. A sagrada família, Marx e Engels;
10. Os anéis de Saturno, W. G. Sebald;
11. História do Brasil, Boris Fausto;
12. 1565 - Enquanto o Brasil nascia, Pedro Doria;
13. Bandidos, Eric Hobsbawn;
14. Histórias íntimas, Mary del Priore;
15. Dialética da colonização, Alfredo Bosi;
16. Orientalismo - o Oriente como invenção do Ocidente, Edward W. Said;
17. O amante da China do Norte, Marguerite Duras;
18 Uma história de Deus, Karen Armstrong;
19. Sociedade de classes e subdesenvolvimento, Florestan Fernandes;
20. A derrota da dialética, Leandro Konder;
21. Da guerrilha ao socialismo, Florestan Fernandes;
22. Marx, Engels, Lênin, Florestan Fernandes;
23. Florestan Fernandes - sociologia crítica e militante, Octavio Ianni;
24. Os sofrimentos do "homem burguês", Leandro Konder;
25. Escuta Só,  Alex Ross;
26. As ideias estéticas de Marx, Adolfo Sánchez Vázquez;
27. O homem sem qualidades - Robert Musil; 
28. Dialética do conhecimento - Caio Prado Júnior; 
29. Dia de Finados - Cees Nooteboom;
30. São Paulo - a fundação do universalismo - Alain Badiou.


segunda-feira, julho 15, 2013

"Febre do Rato", de Claudio Assis, a poesia 'esperneante' que vem debaixo

"É a coletividade que vai dar uma lapada nas leis e uma bicuda no ovo da ordem" - Zizo, in Febre do Rato

Fazia um certo tempo que eu não assistia a um filme que me perturbava tanto. O último, talvez, que me vem à memória é o Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, que vi em 2011. Fiquei dias ruminando os efeitos filosóficos e teológicos da película de Bergman. Dessa vez, o filme que me deixou em transe foi Febre do Rato, do brasileiro Claudio Assis. O cineasta pernambucano, fugindo das preocupações do mainstream, tem produzido obras significativas, o que já o coloca como um dos grandes do cinema nacional. Assis produziu pouco. Três filmes apenas - Amarelo Manga (2002), Baixio das Bestas (2006) e o febricitante Febre do Rato (2011). Antes dos filmes, Assis produziu alguns documentários e curtas.

Não cheguei a fazer uma pesquisa, mas acredito que o termo 'febre do rato' esteja circunscrito ao mundo linguístico pernambucano. Cresci ouvindo o meu pai dizer (sou pernambucano e de família pernambucana): "Ele não está com a febre do rato", quando queria dizer que alguém não deveria exceder o bom senso, extrapolar a realidade e se fiar pelo mundo da loucura. Assim, 'febre do rato" é a realidade daquilo que não é comum, que está fora do padrão; que assume uma natureza para além do corriqueiro.

E talvez não exista nome mais adequado do que este para a película de Cláudio Assis. Como os outros dois filmes, a história se passa em Pernambuco - especificamente Amarelo Manga se passa em Recife e Baixio das Bestas centra a sua temática na zona rural pernambucana. Febre do Rato em sua exposição crua, em sua visceralidade extasiante, é o foco sendo dado ao submundo dos centros urbanos. As palavras iniciais do narrador (o poeta Zizo) aturdem, mescladas ao mundo insalubre dos cortiços à beira do mangue: "Logo ali por trás do mangue, descansa insone a faca, o serrote, o trabalho, o sexo e o sangue. Abismo, mundo escuro, profundo buraco; lateja o fardo de tuas ruas, lateja o grito ruminante, gritos de não. Não de abismo".

O filme é uma poesia desvestida. A começar pela película em preto e branco, que confere à obra uma aspecto atemporal, sublime e de funda envergadura metafísica. Não há uma fotografia corriqueira, daquelas produzidas para agradar. Tudo é feito para contrariar a estética do belo e realçar a estética do "cuspe" e do "escarro" de Augusto dos Anjos. O que existe é o movimento. O movimento da poesia, que é embriagada e embriagante como o personagem principal da obra - Zizo (Irandhir Santos, que está impecável na obra!).

A obra de Assis foge ao convencional. O grupo de amigos, que está sempre junto do poeta, composto por traficantes, vagabundos, travesti, coveiro, embriagados, parece constituir os habitantes de Sodoma e Gomorra. Ou seja, as personagens suprimem a lógica burguesa. Poeta e obra buscam pregar uma atitude anárquica ante as coisas. Não se trata diretamente ou meramente da supressão do Estado ou da ordem burguesa instituída. O filme busca fazer com que o homem médio saia de sua letargia, de seu sono profundo. Que se posicione diante do descalabro da irgonorância e do ventriloquismo a que é submetido. Em certa altura do filme, Zizo diz: "As pessoas ficam falando em futuro, em mudança, mas não estão nem aí para as coisas que estão realmente mudando. Perderam a capacidade de espernear". ( o destaque é meu)



É justamente essa capacidade "de espernear" a que o filme faz alusão. Zizo é o porta-voz, o profeta sem deus, cuja religião é a poesia. O Antônio Conselheiro, o Sandino, o Zumbi, o messias do gueto, do submundo, do mundo-abismo da periferia, obumbrado pela inferno da indiferença burguesa. Zizo é a poesia esperneante que chama os homens a trazerem vasilhas para encherem de liberdade; a que tragam as vasilhas para que encham de cumplicidade; que tragam as vasilhas para encherem de força.


Claudio Assis se aproximou dos grandes nomes ao dirigir Febre do Rato. Talvez, tenha se aproximado de um Glauber Rocha em sua capacidade dançante de construir enredos eivados de força ou de um aludido Bergman capaz de fazer grandes discursos por meio das imagens. Febre do rato é a extrapolação de qualquer consideração metódica . Fez-me refletir como a palavra pode ser utilizada como libelo que constroi realidades desestabilizadoras; que suprime as névoas do olhar; que emancipa o sujeito; que traz os atores (vítimas da omissão) a serem protagonistas de uma nova verdade dialógica. 

Penso que Claudio de Assis tenha conseguido fazer um dos filmes mais belos e delirantes da história do cinema brasileiro. Que bom saber que estamos chegando a esse nível de maturidade. 

É possível assistir ao filme no Youtube

P.S. Aviso: os moralistas burgueses e religiosos podem se chocar com algumas cenas. Afinal, é preciso ser louco para ser livre. Desculpem a afirmação que soa a clichê. Mas acredito que Zizo gostaria dessa frase.

quinta-feira, julho 11, 2013

Incidente em Antares, algumas impressões

"Eu quisera acreditar em Deus e na vida eterna. Mas não posso. Nunca pude. Mas acredito na vida. E como! Tenho esperança num futuro melhor para nossa terra, para o mundo. Quero que meu filho nasça, cresça e viva para participar desse mundo"  
Érico Veríssimo, in Incidente em Antares

Incidente em Antares foi o último romance escrito pelo gaúcho Érico Veríssimo. Dos cinco ou seis romances que li de Érico, com certeza, Incidente em Antares é aquele que provocou um efeito maior pelo nível de maturidade, profundidade e elegância. O livro está dentro daquele ciclo de romances com foco universal, que ainda podem ser colocados O prisioneiro, O senhor embaixador, construindo um paralelo ao lado de dois outros grupos - os romances urbanos (Clarissa, Olhai os lírios do campo, Caminhos cruzados etc) e os romances épicos (na qual se encaixa a monumental trilogia O tempo e o vento, que remonta boa parte da história do Rio Grande do Sul).

Érico Veríssimo sabia contar uma história como ninguém. Possuía uma simplicidade para construir um enredo como somente os grandes escritores possuem. Era um sujeito baixo, de fala mansa e de grande sensibilidade. Foi com essa característica que o gaúcho de Cruz Alta, construiu uma das mais importantes obras da história da literatura brasileira. 

Em Incidente em Antares, Veríssimo constrói um romance em que o Realismo Fantástico dita a tônica da história. E é, sob vários aspectos, uma história a qual percebermos uma forte crítica às oligarquias, ao conservadorismo burguês e (por quê não?) uma "cutucada" no Governo Militar - já que o livro é de 1971. 

A obra é dividida em duas partes:

Érico Veríssimo
Na primeira parte, Érico preocupa-se em remontar o cenário histórico de onde surge Antares; a luta hercúlea entre o clã dos Vacarianos e dos Campolargos, que se digladiarão com golpes, ódio mortal e atrocidades inimagináveis em mais de setenta anos. Aos poucos Érico nos insere no século XX e mostra  quanto Antares passa a fazer parte do cenário político brasileiro. O escritor, como isso, coloca o leitor a par do que acontece a partir do Governo Vargas. As vicissitudes e as habilidades políticas do gaúcho de São Borja. Figuras reais são colocadas na história - João Goulart, Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda. A a partir da descrição dessas personagens históricas reais, o enredo assume um forte tom político, o que faz com que a história ganhe em realismo e verdade. Os acontecimentos políticos, do suicídio de Getúlio à renúncia de Jânio Quadros e o drama que envolveu a posse do seu vice João Goulart, tudo é acompanhado com máxima atenção pelos antarenses - principalmente pelos Campolargos e Vacarianos, senhores da cidade, que essa altura da história já fizeram as pazes.

Na segunda parte do livro, Veríssimo se preocupa em narrar o "incidente" aludido no título da história. A cidade de Antares, também invadida pelo forte clamor trabalhista e progressista que tomava conta do país, é vitimada por uma greve geral. Os coveiros também aderem à greve e a confusão se alastra. Com isso, sete pessoas morrem. O fato de serem sete pessoas, talvez, seja resultado das intenções de Érico, posto que o número "sete" é considerado o número da perfeição. E como os defuntos são impedidos de serem sepultados, acabam acordando de seu "sono mortal" e vão tirar "satisfações" com os vivos. Os sete constituem um exemplo do tecido social. Tem-se um advogado, uma religiosa, um comerciante anarquista, um líder sindical, um artista, uma prostituta e um beberrão. Tais personagens ajustam as contas com a sociedade e denunciam os desatinos, a hiprocrisia e toda sordidez dos setores mais nobres de Antares. Tal evento se dá numa sexta-feira, 13 de dezembro de 1963. 
Personagens da minissérie exibida pela Rede Globo em 1994

A história, na segunda parte, centra a atenção na sociedade de Antares, fazendo dos eventos um microcosmos da sociedade brasileira. Notamos como as estruturas corrompidas da sociedade são constituídas pelos conchavos entre as forças políticas. Érico também insere a Igreja Católica na história. Temos assim, duas representações da história: a primeira realizada pelo padre Gerôncio, mais velho, preocupado com a instituição, representando uma velha ordem; e o padre Pedro-Paulo, que possui o nome de dois dos principais apóstolos de Cristo, representando o lado mais progressista da Igreja. Este último representa a Igreja atenta as movimentos da história. Padre-Paulo questiona os principais dogmas da Igreja e está ao lado dos grevistas e dos pobres.

É importante frisar que o livro possui uma tendência para firmar oposições, o que realça o forte tom político. Por exemplo, tem-se duas famílias rivais, dois clubes de futebol, dois padres (sendo que um Pedro-Paulo) que revelam forças contrárias dentro de uma mesma instituição, forças conservadoras da sociedade e forças progressistas; a oposição entre os homens e as mulheres (que à exceção de Dona Quitéria Campolargo) são submissas aos seus maridos; o submundo da favela Babilônia e o centro requintado representado pela aristocracia de Antares. Toda essa trama de teias de poder que leva o médico ser vendido ao prefeito, que é vendido ao coronel, que é vendido ao advogado em um efeito dominó, é descrito por um narrador que conta a história em terceira pessoa e que está presente oniscientemente em todos os fatos.
Érico, o extraordinário escritor!

Érico se utiliza da ironia e do sarcasmo. Em alguns momentos, certos excertos me fizeram lembrar de Machado de Assis, mestre neste quesito. O livro é denso e comporta uma abordagem mais profunda do painel sócio-político da sociedade gaúcha e a bem dizer brasileira. E nesse sentido, é interessante notar a habilidade do escritor para remontar o cenário político brasileiro e construir uma ficção da mais lata distinção.

Incidente em Antares é daqueles livros que terminda a leitura, ficamos a pensar em sua teia complexa. Pensamos na sociedade de aparências; no jogo de poder; na força irracional das oligarquias que se perpetuam; no desejo por melhores dias; na práxis que leva à luta e à aspiração por justiça e verdade. Pensamos, finalmente, no Brasil que é e no Brasil que sonhamos. Viva Érico Veríssimo!

quarta-feira, julho 10, 2013

Um excerto e uma constatação

O excerto abaixo foi extraído de uma postagem feita pelo "cavalo" do Charlles Campos. Claro, "cavalo" em acepção positiva. Não o conheço pessoalmente, mas o sujeito é uma das mentes mais eruditas que já tive oportunidade de me deparar. Deixemos o puxa-saquismo para lá. O post (um dos melhores dos últimos tempos produzidos por ele) entre as muitas ideias e reflexões levantadas traz um trecho que muito me chamou a atenção pela acidez cética e esquerdista de quem percebe com desconfiança a ditadura da mediocridade. O texto toca numa questão que me incomoda bastante: a ditadura dos celulares de última geração. Sempre vi o uso excessivo desses aparelhos de última geração como uma compulsão adolescente. Lido com esse público todos os dias e já consigo diagnosticar alguns comportamentos previsíveis. Aonde quer que eu vá, lá está o burguês médio com seu vício irreprimível, conectado a uma rede social a "curtir" sensaborias. A ignomínia de tal comportamento me leva a crer que vivemos o deserto do real. A barbárie do vício digital por bestuntices. 

(...) Minha irmã tem um ótimo rendimento mensal, não é esse o propósito da vida? Não é esse o objetivo esperado? Na televisão, um apresentador pergunta em qual país as vacas são tidas como seres sagrados, e minha irmã desvia os olhos por um momento do i-phone (com o qual chama atenção para um jogo estúpido de estourar balões que enebria meus filhos) e pergunta "qual país é mesmo?", ela que sempre foi uma aluna notável, monitora de química e física, de uma disciplina espartana para os estudos, qualidades as quais não obtive nem um quarto da distinção dela. Ela precisa saber de uma inutilidade completa dessas, que serve agora para programas insossos de tardes de domingo? Uma vez, levei ela e um antigo namorado dela para um pesque-pague, e na estrada eles viram uma vaca com um chifre imenso, e se surpreenderam com o fato de que não só o boi tem chifre, mas a fêmea do boi também, e me perguntaram, com um desalento infantil, como chifres tão grandes passavam pelo canal da vagina durante o parto. Eu levei tempo para perceber que eles não estavam brincando, esses exemplares bem sucedidos do homo-urbanus moderno. Mas logo me vi pensando em Sherlock Holmes, ao revelar para um atordoado dr. Watson, em Um estudo em vermelho, que ele desconhecia a rotação da Terra e várias outra informações inúteis, e só ocupava sua mente com coisas que lhe interessavam para sua vida prática. E assim é a maioria, para quem as sutilezas da leitura e de constatações não mais tão naturalmente óbvias sobre a paisagem cercante não representam nada em sua progressão para um posto bem localizado e remunerado na grande fauna citadina. E o quanto as armas de poder de sua rede de conhecimentos faz com que minha irmã esteja anos à frente de mim, muito mais preparada darwinianamente para enfrentar o mundo, quando ela, como um mágico vaidoso, pede para que eu coloque no som a música mais inacessível e desconhecida que eu tenho, aponta em seguida o i-phone para o estéreo, e na tela líquida aparece a foto do álbum, o nome da banda e a música inteira para ser ouvida.

Mas me mantenho teimoso e fiel a intuições arraigadas. Mês passado levei meu carro para a retífica, e eles me devolveram um carro tão potente e novo tal qual quando ele saíra da concessionária, em 1997. Minha irmã vendeu seu carro 2010 e comprou um modelo zero quilômetro, financiando um valor alto em 36 meses. Ainda penso que a alegria é muito superior à felicidade, que aliás essa última não existe, e passar pelo mundo engolindo toda espécie de entregas superfaturadas e falsas para meramente atender a uma necessidade de pertencimento é trair a complexidade que nos é dada no início e sobre a qual, o mínimo que devemos fazer em retribuição, é nos mantermos sempre em um suave, ingênuo e ativo deslumbramento. A leitura sempre me ofereceu esse tipo de inferno: a da consciência do outro, da responsabilidade de não estar-se sozinho no tempo e no espaço. E se tudo correr bem, as derivações pelo caminho não sendo muito sinuosas, meu filhos continuarão recebendo esse presente" (...).

segunda-feira, julho 08, 2013

"O amante", de Marguerite Duras, algumas impressões

Marguerite Duras
"Muito cedo na minha vida ficou tarde demais" 
Marguerite Duras

O único livro que li de Marguerite Duras, O amante, passou-me uma impressão positiva sobre essa escritora. O amante é um dos seus livros mais conhecidos. Segue uma "tendência" muito recorrente em sua obra que é a abordagem auto-biográfica. O livro é do ano de 1984 e se tornou uma das suas principais obras - se não a maior.  Duras escreveu aos 70 anos esse relato sobre sua juventude. Estreara na escrita em 1943. Mas o livro de 1984 é uma obra de grande importância para a sua carreira. Foi com O amante que a escritora chegou ao ápice da produção, sendo que ele foi traduzido para mais de 40 idiomas. Vale mencionar que O amante da China do norte - que retoma o mesmo tema -  também possui uma importância fundamental para a sua obra. 

Outro trunfo da escritora é a aventura cinematográfica. Ela escreveu bons roteiros para o cinema. Entre esses roteiros se destaca Hiroshima, meu amor, indicado ao Oscar na década de 60. O amante, por sua vez, é permeado pelos temas oriundos do seus nascimento em Saigon, antiga capital do Vietnã, quando este era uma colônia francesa. 

Duras nos coloca diante de um estilo que é uma espécie de junção dos excertos para um primeiro romance. O livro possui uma narrativa fragmentária, explorando o viés da jovem subvertida pela paixão. Ora nos coloca diante das relações de uma sociedade pobre na qual a mãe da personagem não possui os privilégios de alguém da metrópole europeia e tem que lutar pela sobrevivência junto com os nativos; ora os ecos de uma sociedade que é um misto de ruralização e subdesenvolvimento. O estilo da francesa é uma dança de avanços e digressões. Em alguns momentos ela usa a terceira pessoa se distanciando da narrativa; em outros, usa a primeira pessoa e se coloca como personagem da obra. Outro aspecto é o avanço e o recuo no tempo, fazendo digressões inusitadas. O leitor pouco afeito a livros assim sente dificuldades com relação à manutenção do eixo temático da obra. 

Duras ainda insere as dificuldades relacionais dos irmãos, tão antagônicos. A força bruta e a irracionalidade castrante do irmão mais velho. E a delicadeza do irmão novo. A escritora é dona de um estilo que prima pela concisão, pela economia nas explicações. Ela é frugal. Não coloca o excessivo. Extrai tudo aquilo que torna o texto enviesado. Existe uma crueza em sua forma de narrar. Ao mesmo tempo em que busca a concisão, expõe, com nudez, o realismo de uma paixão que não era apenas física com o chinês Cholen. A relação desenvolvida era existencial. 

Nesse sentido, Duras alarga as dimensões do seu romance e abrange também um debate social, já que naquela sociedade era inadmissível uma branca europeia se envolver com alguém rico a não ser pelo prisma do preconceito. aqui nota-se o debate inter-racial estabelecido pela obra. Assim, mesmo com essa forma tão peculiar e "seca" de narrar, como se o uso do adjetivo e de toda caracterização fosse um gesto inaceitável, Duras deixa-nos vislumbrar pelas frestas de sua narrativa as relações sociais de uma sociedade oriental tão diversa do mundo europeu. 

Comprei, hoje, na livraria da Saraiva, pela internet, o livro O amante da China do norte, pois me bateu uma curiosidade maior pelo seu estilo. O que me atraiu em Duras não foi a história em si, mas a forma de narrar da escritora. 

Blumenau-SC

quinta-feira, julho 04, 2013

Nota de uma leitura não iniciada - "O amante", de Marguerite Duras

No início do mês junho, ainda sob o paroxismo das atividades profissionais, fui à biblioteca pública de Ceilândia, que ainda insisto em permanecer como membro, e peguei dois livros: O amante, de Marguerite Duras e Sidarta, de Hermann Hesse - (curioso é que tenho esses dois livros em minha biblioteca. Peguei as obras - como sempre faço -, pois isso me força a ler; cria um imperativo). Infelizmente não pude ler os dois livros durante todo o mês. Muitas obrigações. Eu a me arrastar em leituras menores. O cansaço a me vergar os olhos. O sono a me espreitar quando chegava depois de um dia de labuta. E as exigências atrabiliárias do trabalho a criar obstáculos. Agora, nestes 20 dias de recesso de que disponho, resolvi lê os dois livros. Amanhã, eu e a minha esposa viajaremos para Florianópolis e de lá iremos para Blumenau-SC. Pretendo encetar toda a leitura do livro de Duras nas duas horas de viagem de avião. Afinal, trata-se de uma obra concisa. São apenas 127 páginas na edição que está comigo. Andei lendo algumas coisas sobre o livro. É um romance autobiográfico dessa escritora francesa nascida no Vietnã, quando este país ainda era colônia do país europeu. Abaixo, um vídeo bem interessante com uma apresentação convincente sobre o livro em português lusitano.

segunda-feira, julho 01, 2013

Sobre deuses e rezas - por Rubem Alves

Li a crônica abaixo há pouco e me pus a pensar sobre ela. Resolvi, então, compartilhá-la. Está em um dos livros do Rubem Alves cuja leitura estou terminando de realizar - Teologia do Cotidiano - meditações sobre o momento e a eternidade). Como nos bons textos desse mineiro sensível e poeta, a provocação emulada por penas filosóficas suaves, sempre nos cutuca, colocando-nos
numa posição reflexiva.


Sobre deuses e rezas


Perdida no meio dos viajantes que enchiam o aeroporto, ela era uma figura destoante. A roupa largada, os passos pesados, uma sacola de plástico pendurada numa das mãos – esses sinais diziam que ela já não mais ligava para a sua condição de mulher: não se importava em ser bonita. Pensei mesmo que se tratava de uma freira. Seu comportamento era curioso: dirigia-se às pessoas, falava por alguns momentos, e como não lhe prestassem atenção procurava outras com quem falar. Quando vi que ela tinha uma Bíblia na mão compreendi tudo: ela se imaginava possuidora de conhecimentos sobre Deus que os outros não possuíam e tratava de salvar a alma deles.

Meu caminho me obrigou a passar perto dela – e quando olhei para o seu rosto de perto levei um susto: eu o reconheci de outros tempos, quando ela era uma moça bonita que ria e brincava e para quem olhávamos com olhares de cobiça.

Não resisti e chamei alto o seu nome. Ela se espantou, olhou-me com um olhar interrogativo, não me reconheceu. Com razão. Os muitos anos deixam suas marcas no rosto.

– Eu sou o Rubem!

Seu rosto se iluminou pela lembrança, sorriu, e pensei que poderíamos nos assentar e conversar sobre as nossas vidas. Mas sua preocupação com a minha alma não permitia essas perdas de tempo com conversa fiada. E ela tratou de verificar se o meu passaporte para a eternidade estava em ordem:

– Você continua firme na fé!?

– Mas de jeito nenhum. Então você deixou de ler a Bíblia? Pois lá está dito que Deus é espírito, vento impetuoso que sopra em todo lugar, o mesmo vento que ele soprou dentro da gente para que respirássemos, fôssemos leves e pudéssemos voar. Quem está no vento não pode estar firme. Firmes são as pedras, as tartarugas, as âncoras. Você já viu um papagaio firme? Papagaio firme é papagaio no chão, não voa. Pois eu estou mais é como urubu, lá nas alturas, flutuando ao sabor do imprevisível Vento Sagrado, sem firmeza alguma, rodando em largos círculos.

Ela ficou perdida, acho que nunca havia ouvido resposta tão estranha, mudou de tática e tentou pegar a minha alma do outro lado, desatou a falar de Deus, informou-me que ele é maravilhoso etc., etc., etc., como se estivesse no púlpito em celebração de domingo.

Refuguei e disse:

– Acho que quem não está firme em Deus é você. Olha, passei a noite toda respirando, estou respirando desde que acordei, e juro que agora é a primeira vez que penso no ar. Não pensei nem falei no ar porque somos bons amigos. Ele entra e sai do meu corpo quando quer, sem pedir licença. Mas a história seria outra se eu estivesse com asma, os brônquios apertados, o ar sem jeito de entrar, ou, como naquele anúncio antigo do xarope Bromil, o coitado do homem sufocado por uma mordaça, gritando pelo ar que lhe faltava. Por via das dúvidas até andaria com uma garrafa de oxigênio na bagagem, para qualquer emergência.

E continuei:

– Pois Deus é como o ar. Quando a gente está em boas relações com ele não é preciso falar. Mas quando a gente está atacado de asma, então é preciso ficar gritando pelo nome dele. Do jeito como o asmático invoca o ar. Quem fala com Deus o tempo todo é asmático espiritual. E é por isso que andam sempre com Deus engarrafado na Bíblia e outros livros e coisas de função parecida. Só que o vento não pode ser engarrafado...

Aí ela viu que minha alma estava perdida mesmo e, como consolo, fez um sinal de adeus e disse que iria orar muito por mim. Aí eu protestei, implorei que não o fizesse. Disse-lhe que eu tinha medo de que Deus ficasse ofendido. Pois há rezas e orações que são ofensas. É óbvio: se vou lá, bater às portas de Deus, pedindo que ele tenha dó de alguém, eu lhe estou imputando duas imperfeições que, se fosse comigo, me deixariam muito bravo.

Primeiro, estou dizendo que não acredito no amor dele, deve ser meio fraquinho, sem iniciativa, preguiçoso, à espera do meu cutucão. Se eu não der a minha cutucada, Deus não se mexe. E isso não é coisa de ofender Deus? Segundo, estou sugerindo que Ele deve andar meio esquecido, desmemoriado, necessitado de um secretário que lhe lembre suas obrigações. E trato de, diariamente, apresentar-lhe a sua agenda de trabalho. Mas está lá nos salmos e nos evangelhos que Deus sabe tudo antes que a gente fale qualquer coisa. Ora, se a gente fica no falatório é porque não acredita nisso. Não acredito em oração em que a gente fala e Deus escuta. Acredito mesmo é na oração em que a gente fica quieto para ouvir a voz que se faz ouvir no meio do silêncio.

Voltei à minha amiga:

– Veja você. Tive um filho que estudava longe. Eu gostava dele. Ele gostava de mim. De vez em quando a gente se falava ao telefone. E o dinheiro da mesada ia sempre, com telefonema ou sem telefonema. Agora imagine: de repente começo a perceber telefonemas dele três vezes por dia e mensagens por sedex, cartas e telegramas louvando o meu amor, agradecendo a minha generosidade... Você acha que isso me faria feliz? De jeito nenhum. Concluiria que o meu pobre filho havia endoidecido e estava acometido de um terrível medo de que eu o abandonasse. Pois é assim mesmo com Deus: quem fica o dia inteiro atrás dele, com falatório, é porque desconfia dele. Mas o pior é o gosto estético que assim se imputa a Deus. Uma pessoa que gosta de passar o dia inteiro ouvindo os outros repetindo as mesmas coisas, as mesmas palavras, as mesmas rezas, pela eternidade afora, não deve ser muito boa da cabeça. Para mim isso é o inferno. Quem reza demais acha que Deus não funciona bem da cabeça. Acho que ele ficaria mais feliz se, em vez do meu falatório, eu lhe oferecesse uma sonata de Mozart ou um poema da Adélia...

Mas aí o alto-falante chamou o meu vôo, tive de me despedir, e imagino que ela ficou aflita, temerosa de que Deus derrubasse meu avião com um raio. Mal sabia ela que Deus nem mesmo havia ouvido a nossa conversa pois, cansado das doidices dos adultos, ele foge sempre que vê dois deles conversando e se esconde deles, disfarçado de criança.

Extraído do livro Teologia do Cotidiano - meditações sobre o momento e a eternidade. Editora Olho D'Água.