sábado, novembro 15, 2014

Relatos Selvagens - a superioridade do cinema argentino e a natureza humana



[...] cada homem é um ser social, dotado de um papel e de um estatuto particular; mas cada homem é também “algo além” [...] Georg Simmel, pensador alemão.

Ontem à noite, saí do Espaço Itaú Cinema, aqui em Brasília, com uma certeza: o cinema argentino está a algumas galáxias à nossa frente. Ainda ficamos engatinhando em pastelões com roteiros ruins, do tipo besteirol; ou na estética da violência que vem da favela. É só analisar, por exemplo, a lista de filmes que encabeçou as grandes bilheterias aqui no país nos últimos dez anos. Nesta semana, eu tive a oportunidade de assistir a três longas argentinos: Elefante Blanco (2012), Kamchatka (2002) e o visceral Relatos Selvagens (2014), a qual pretendo fazer algumas considerações. Mas, o que dizer ainda de Tese sobre um homicídio (2013) ou O segredo dos seus olhos (2009)?

Com direção de Damían Szifrón e produção do espanhol Pedro Almódovar, Relatos Selvagens é construído por seis histórias curtas e independentes, reveladoras de absurdos ou situações extremas com as quais as personagens devem conviver - ou pelo menos arranjar uma solução. Curiosamente, as soluções revelam o lado primitivo e animalesco do mundo humano. A tese que fica é a de que os homens não se diferenciam dos outros bichos quando são colocados em situações que exigem uma iniciativa rápida. Pois há vingança, humor invertido, fúria, corrupção extrema e uma sensação profunda de que existimos entre o senso de civilização e barbárie, fazendo ecoar aquela sentença de Nietzsche de que o homem é uma corda atada entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre um abismo.

As seis histórias são surreais. A primeira (bastante curta) demonstra uma situação em um avião. O comissário de voo queria se vingar daqueles que zombaram dele. Por isso, consegue armar uma situação para tirar a limpo toda a humilhação sofrida no passado. Ou a história macabra de um restaurante de beira de estrada, em que a garçonete atende o sujeito mafioso que arruinara a sua família. E sente um desejo de vingança. A cozinheira gorda e ex-detenta rapidamente toma a iniciativa de arquitetar como seria morte do sujeito. As cenas que se seguem são de tirar o fôlego.

Ou ainda a história de um ricaço que segue em seu Audi em uma autoestrada e pede passagem para um sujeito que segue em um carro em péssimo estado. A despreocupação do ricaço e a lentidão do outro gera uma situação em que os piores sentimentos do ser humano acabam vindo à tona, como acontece tantas vezes nas grandes cidades. O motorista do Audi dá luz alta várias vezes. Irritado, o condutor do carro que estava à frente, sente-se molestado. O ricaço consegue a ultrapassagem, mas insulta o pobre. Mais à frente, o pneu do carro do Audi fura e a partir desse fato a barbárie se instala de forma completa. O desfecho é dos piores possíveis.

A história protagonizada pelo sempre presente nas produções argentinas - o excelente Ricardo Darín - é revestida de humor invertido e moral kafkafiana. Um engenheiro bem sucedido que trabalha com implosões se ver metido numa trama invísivel, com os requintes mais bizarros da impessoalidade da burocracia. Seu carro é guinchado, mesmo ele tendo estacionado em local apropriado. A partir daí começa a sua luta pessoal contra as garras morosas e asfixiantes do Estado, representado pelas figuras pachorrentas e arrogantes dos seus agentes. A quem se deve pedir satisfação, quando na sua individualidade, você tem os seus direitos atingidos? A quem reclamar? Ao presidente da República? À vaguidão da lei? O Estado com a sua máquina é o Leviatã hobbesiano, monstro que não se preocupa com os estertores do cidadão oprimido. Faz lembrar K., personagem de Kafka em O processo. Em meio à ciranda caótica e estressante das grandes cidades, sendo vitimado pela inércia, pela corrupção de uma sistema intangível, o cidadão se sente asfixiado e arruma saídas estapafúrdias, como fica demonstrado no desenlace da pequena história. Lembrei-me de Os contos da era de ouro.

Ou a história de uma família rica de Buenos Aires: o filho atropela uma mulher grávida após ter bebido e o pai tenta construir uma espiral corruptora com a ajuda do advogado da família. A situação é pagar 500 mil dólares ao caseiro da família para assumir o crime no lugar do filho. Mas o plano é descoberto pelo investigador (figura do estado), que aos poucos é cooptado pelo jogo sujo da advogado, que faz o papel de hiena - a se aproveitar do cadáver da situação. O desenlace também é de impressionar. 

A última história é aquela em que os aspectos mais profundos da psicologia humana são trabalhados. Retrata um casamento e o desfecho da cerimônia, que vai do tragicômico à reação intempestiva, quando o  inesperado se faz presente. Nesse espaço, convivem o cômico, o trágico, o forte tom farsesco e o demônios dostoievskianos.

Relatos Selvagens é construído de modo que os espectadores não tomem fôlego. Uma história é colada à outra de forma rápida, sem que haja tempo para respiração. A finalidade é fazer com que quem está do lado de cá experimente a diluição dos aspectos humanos das personagens, que se mostram como sujeitos normais, dentro de aconetcimentos normais, com as quais todos nós (que estamos do lado cá) experimentamos na cotidianidade individualizada da modernidade, mas que acabam se desdobrando em situações que fogem aos ditames da razão. Nesse sentido, o senso de massificação, exatidão, dinheiro, racionalização e anonimato, que são construtores da alma e do caráter do homem moderno, são desconstruídos pelo aspecto primitivo de nossa natureza. Curiosa é a cena que se segue logo após à primeira história do filme. À proporção que os créditos com o nome dos atores são anunciados, alguns animais são anunciados numa clara explicitação metalinguística - hienas, crocodilos, ursos, leopardos, águia etc - como se dentro nós morasse a personalidade de cada um deles. Vivendo em sociedade, o homem passa a ser fera. ("O Homem, que, nesta terra miserável,/ Mora, entre feras, sente inevitável/ Necessidade de também ser fera". - Augusto dos Anjos). 

Ainda estou pensando sobre o o filme. Excelente! 

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