segunda-feira, julho 20, 2015

Registro Crônico III

Santiago e seu inseparável cobertor de gases ao fundo
Na terça-feira, dia 14 de julho, por volta de meia noite e meia, cheguei à cidade de Santiago. Enquanto o motorista, um senhor de pouco mais de sessenta anos, conduzia-me para o lugar onde eu ficaria, tentei recolher de forma superficial, no meio do tecido escuro da noite, as primeiras impressões da cidade. Enxerguei alguns prédios com feições clássicas na distância. Tentei dialogar com o motorista, fazendo uma exaltação à cidade. Recolhi da fala simples e amistosa uma lição.

- Não existem cidades feias. Existem cidades distintas! - externou peremptório. 

Fiquei pensando sobre aquela fala. A maior parte dos nossos juízos tentam se adequar àquilo que estabelecemos como certo, belo ou coerente. Temos uma grande dificuldade em aceitar o novo, o diferente e suas possibilidades convidativas. O problema não está necessariamente na coisa, mas naquele que julga afoita ou relaxadamente a coisa. Perguntou ainda de onde eu era. Disse que era do Brasil, ao que ele mencionou personagens e lugares - São Paulo, Rio de Janeiro, Romário etc.

A "distinção" de Santiago se define pela sua história. Ela está situada em um vale. Pablo Neruda, um dos maiores poetas do século XX - chileno - em um dos seus livros afirma construindo uma imagem dramaticamente bela: "Santiago es una ciudad prisionera, cercada por sus muros de nieve". De fato, Santiago geograficamente está presa, cercada por muros altos, a Cordilheira dos Andes, que ora a admira, ora a arrosta com seu hálito gelado. Ainda seguindo essa imagem de Neruda, podemos dizer que ela está sitiada por um exército de pedras, que a espreita vinte quatro horas por dia. É justamente esse fenômeno que torna Santiago uma das cidades mais cinzentas das Américas. Os gases produzidos pelas fábricas e pelos automóveis ficam retidos, criam uma espécie de cobertor cinza que cobre a cidade com uma gaze de monóxido de carbono. 

Em frente ao Palacio de la Moneda
Quando deixei Buenos Aires, fiquei com uma impressão singular. Mas, ao chegar à capital chilena, a afirmação do motorista me salvou dos juízos apressados. Buenos Aires é uma cidade de avenidas amplas; de prédios com aspectos modernos e europeizados. Santiago, pelo contrário, mostrou-se com um aspecto mais antigo. Sua arquitetura fornida por belos prédios, por igrejas suntuosas; por avenidas apinhadas por carros e pessoas nas calçadas estreitas. Nos momentos mais movimentados do dia, as rodovias ficam paradas. O trânsito é intenso e torna Santiago uma cidade complicada para se locomover de carro. 

O que funciona muito bem é o seu metropolitano. As primeiras estações foram construídas nos anos 70. E, de lá para cá, eles não deixaram de ampliar esse eficiente serviço. Existem pelos menos cinco linhas de metrô. Olhando o mapa, fica-se com a ideia de que estamos diante de um cipoal de cores (cada linha possui uma cor - vermelha, azul, verde, roxa etc). Nas estações, os trens passam de dois em dois minutos. É possível se locomover por toda a cidade andando de metrô. 

A cidade é repleta de museus (escreverei sobre eles em outro momento) e praças. Uma das mais famosas é a Plaza das Armas. É um lugar amplo, povoado por artistas de rua e construções belas. Próximo dali fica o Palacio de la Moneda, sede do governo chileno. É um lugar histórico. Foi construído primeiramente para ser a casa da moeda do Chile. Por isso, não tem o nome "de palácio do governo". Durante o golpe militar, ocorrido em 1973, foi bombardeado pelos militares, a mando de Augusto Pinochet, um dos algozes mais terríveis da ditadura daquela país. A intenção dos militares golpistas era fazer com que o governo socialista e popular de Salvador Allende viesse abaixo. Como aconteceu no restante dos países da América Latina, que sofreram golpes, esses arranjos totalitários foram orquestrados pelo governo americano. 

Os Andes, simplesmente
Um aspecto positivo da cidade é a educação do povo. São prestativos e simpáticos. Não se olvidam em ajudar, em oferecer préstimos quando solicitados. É possível enxergar o quão diferentes são fisicamente dos argentinos, revelando o quanto a presença indígena foi importante para a formação do país. Não encontrei tantos leitores quanto em Buenos Aires, embora no metrô tenha visto pessoas lendo. Há ainda em algumas estações, bibliotecas públicas. Quem quiser é só se cadastrar e pegar os livros. O preço dos livros segue a mesma tendência argentina. Namorei vários. Trouxe apenas dois - Confieso que he vivido e Odas Elementales, ambos de Pablo Neruda. 

Fui a três ou quatro livrarias chilenas. E sempre que visitava, como se deu também na Argentina, tentava perceber a presença de escritores brasileiros. Na Argentina, não tive muito sucesso. Vi apenas dois - Jorge Amado e Paulo Coelho. No Chile, o acintoso Paulo Coelho ainda se fazia presente, todavia, a coisa ganhou contornos mais favoráveis quando enxerguei Chico Buarque (O irmão alemão), Jorge Amado (Tenda dos milagres) e Erico Veríssimo (O tempo e o vento). 

Uma experiência que me deixou bastante satisfeito foi a possibilidade visitar a Cordilheira. Não me recordo a última vez que vi algo tão desconcertante e belo como a imagem de uma montanha gelada. Apesar de Santiago está cercado por montanhas, a cinza brumosa cria o efeito de uma cortina e acaba privando a possibilidade de se avistar o cume branco. O caminho até o cimo da montanha é amedrontador. É serpenteante, coleante pelo corpo da montanha; a subida vai se construindo pouco a pouco. As curvas do caminho são desafiadoras. Ao olhar para os abismos, ficamos com uma noção de imprevisibilidade. Mas à medida que subia, lembrava de uma afirmação de Nietzsche. O filósofo alemão disse certa vez, que há sujeitos que têm a oportunidade de subir o monte e contemplar o vale profundo com toda a sua constelação de belezas, mas desistem em saber que lá, também, há um vulcão que pode entrar em atividade. Não havia vulcão lá no alto, mas havia um perigo em cada curva como um aviso medonho que se desenhava em cada cotovelo da estrada. Apesar do medo, à medida que se sobe, a beleza se irradia como a luminosidade embasbacante. 

No próximo post, vou escrever sobre duas importantes cidades chilenas - Viña del Mar e Valparaiso. 

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