sexta-feira, abril 22, 2016

Algumas impressões sobre "Madame Bovary", de Flaubert

Ler Madame Bovary era um projeto existente desde o final do ensino médio. Recordo-me das aulas de literatura. Das onipresentes citações sobre a importância da obra monumental de Flaubert. Cheguei a comprar uma edição ordinária em um sebo. Esqueci-a no fundo da estante. Via o projeto como algo distante. Até que no mês de fevereiro deste ano fui à Livraria Cultura e comprei a excelente edição da Penguin/Companhia das Letras. Pensei comigo em tom profético e peremptório: 'Agora você não me escapa!"

Iniciei a leitura com um senso de reverência indescritível. Precisava me conectar a um mundo de idealismos. Era uma ação nobre aquela que estava a executar. As quase quinhentas páginas com tradução primorosa. O papel macio e resguardar em suas entranhas um cheiro lascivo. A grande expectativa em torno do que acharia pela frente. Emma Bovary era uma espécie de fada. Tentava erguer a curiosidade e construir, por meio de conjecturas, os caminhos determinantes da narrativa. Cheguei a assistir a um filme tentando entender os desdobramentos da história. O filme serviu apenas para recriar o cenário, a fotografia e o espaço romanesco. Foi ineficiente. A prosa de Flaubert é grande demais para caber em uma película. 

De fato, o romance é tudo aquilo que esperava que fosse: grandioso em todos os aspectos. Não poderia ser diferente. Flaubert é um minucioso estudioso dos costumes da sociedade do seu tempo. Difere de Balzac, por exemplo, que também era um cronista poderoso. Este parece ser mais caudaloso e recriador de consensos; aquele, por sua vez, é insubmisso, cortante, engenheiro habilidoso de uma prosa jornalística, que mais insinua do que afirma certezas. As frivolidades e fatuidades da burguesia são trabalhadas com hiperbólica ironia. A avareza de alguns personagens denuncia a transformação social por que passa a alma do homem sob a dinâmica sociedade capitalista. A crença profunda no cientificismo e no progresso da técnica são resultado da visão otimista de que o homem estava transformando a natureza naquele presente histórico, como fica expresso pelo personagem Homais. O diletantismo de alguns personagens como, por exemplo, Léon, um dos amantes de Ema Bovary. Ou ainda, o mundanismo de um Byron, o comportamento selvagem e inconsequente de um dândi como Rodolphe.

Gustave Flaubert (1821-1880)
A heroína Ema Bovary, casada com Charles Bovary, um modelo de sujeito passivo, mas de coração bondoso, construído para provocar no leitor uma fina e sensível compaixão, é estraçalhado pelos desejos incontidos e calculistas de Emma. A personagem Ema instila no leitor (pelo menos em mim foi assim) uma dupla sensação: (1) ela é culpada pela desgraça que acomete o destino de sua casa e o destino do seu marido Charles. É isso que Flaubert quer nos fazer crer em um primeiro momento. Ema é uma personagem complexa. Espera-se dela como mulher, pelo menos, um ordeiro respeito à figura do seu bom marido; o papel da boa mãe. (2) Emma é culpada. Parece-me que neste ponto, Flaubert constrói a tese de que reside no mundo feminino a susceptibilidade que impele à fantasia, ao desvario, à irracionalidade. Em suma, Emma é culpada. É traidora. É destruidora de si e da vida de seu marido. Como naquela passagem bíblica sexista de Provérbios: "Mulher virtuosa, quem a achará?" (31.10). A personagem destoa do modelo perfeito. Não é "virtuosa". É traidora. Alimenta-se de cálculos, de perfídias, de enganos; deixa-se levar por uma franqueza: busca encontrar nos amantes a segurança de que necessita. É forte por trair, mas, ao mesmo tempo, é fraca por ser romântica em excesso e deixar aflorar o sentimentalismo feminino.

A heroína soçobra ante o seus desejos. Fica cega. Ignora a presença de Charles. Fascina-se com a expectativa de uma vida de prazeres e luxos. Arruína-se no plano espiritual e no plano material. Contrai dívidas. Entendia-se da vida aldeã. Procura formas de ocultar a sua realidade e projeta o dinamismo da vida citadina. Mora em um vilarejo, mas é como se vivesse em Paris. Há uma insatisfação em sua existência. Ela busca fugir da sensação claustrofóbica em que havia se transformado o seu casamento. Emma anuncia a mulher insubmissa, não dada às convenções sociais. Suplanta o determinismo social que encurralava as mulheres, colocando-as numa posição servil. 

A prosa de Flaubert, nesse sentido, é revolucionária. Quando escreveu o livro ainda não era o gigante, o sujeito respeitado que se tornou depois. Possuía pouco mais de trinta anos. Morava com a mãe em um subúrbio. Era um sujeito de poucas posses. Não gozava de nenhum prestígio. Escrevia textos de valor incerto. Seu método de trabalho era de um estoicismo impressionante. Trabalhava um número exato de horas. Escrevia um número exato de páginas diariamente. Demorou mais de cinco anos para escrever a obra monumental. Flaubert anunciava o moderno. Emma personifica o descontentamento; o drama metafórico que anuncia uma sociedade veloz - a linha férrea, o jornal, a eletricidade. E Emma é esse ponto de inflexão que gera "desconforto", a visão do novo, de um novo que possui uma força atordoadora.




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