sábado, julho 18, 2009

Um texto inacabado

EXPOSIÇÃO LIVRE SOBRE A SEXTA SINFONIA PASTORAL DE BEETHOVEN


1. INTRODUÇÃO

Recordo-me que certa vez fui à cidade mineira de Palmital e fiquei alojado numa fazenda, cerca de 5 quilômetros da cidade propriamente dita. Numa manhã de domingo em que havia chovido à noite eu resolvi acordar mais cedo. Deliberei por fazer uma caminhada pelas imediações. A fazenda ficava localizada numa área mais baixa e era circundada por grandes elevações. Eu saí bem cedo e me pus a caminhar. Subi numa daquelas elevações e pude olhar em todas as direções. O espetáculo que presencie foi divino. Eu vi grandes tufos de neblina que engoliam as casas distantes e pequeninas. Uma vegetação verde e molhada pelo orvalho exalava um cheiro que se misturava à terra molhada pela chuva da noite. Eu abri os braços e imaginei estar em outro espaço, em outro plano, que não o material. O vento era misterioso, uma carícia terna. Os pássaros adejavam com alegria. E eu ali a contemplar extasiado aquela cena magnífica em que as coisas do céu parecem vir passear aqui na terra. De modo que nunca mais esqueci aquela experiência tão cheia de beleza e encantamento.
Naquela época eu ainda não conhecia A Sexta Sinfonia de Beethoven. Quando a ouvi pela primeira vez, simplesmente, a visão que tivera reapareceu com todas as suas cores mágicas. Daí para frente surgiu o interesse em escrever algumas considerações sobre a Sexta Sinfonia em Fá Maior, Opus 68, mais solenemente conhecida como A Pastoral. Antes de discorrer sobre a peça musical farei algumas digressões sobre a vida do grande mestre.

2. ASPECTOS GERAIS DA VIDA DO GÊNIO


Beethoven é o que podemos denominar de personalidade incontida. Nasceu ao dia 16 de dezembro do ano de 1770, em Bonn, Alemanha. Começou a revelar talento com bastante precocidade. O seu avó Ludwig van Beethoven havia sido dono de um talento respeitável. O pai de Beethoven, por nome Johann, não herdou o talento do pai e quando este morreu passou a se entregar à bebida, o que veio a trazer penosas conseqüências. Beethoven herdou, assim, o nome do seu avó. O van não emanava diretamente de um título nobiliárquico dos alemães (von). O grande compositor possui uma ascendência flamenga. A família de Beethoven era belga. Havia migrado para a Alemanha.
Johann encaminhou Beethoven para música, mas o fez com austeridade. Talvez por tentar fazer de Beethoven aquilo que ele não conseguira ser. O pai do jovem Ludwig era um medíocre compositor; ou quiçá ainda por ver em Beethoven uma possibilidade de ascensão e reconhecimento social como havia sido com Mozart. À época da infância do compositor vienense, Leopoldo Mozart expunha para os reis e rainhas o gênio do filho. O pai de Beethoven o punia severamente. Obrigava-o ao estudo por horas e horas a fio. A sua alma foi dobrada insensivelmente pelo pai. Diz Romain Rolland que “pouco faltou para que ele se desgostasse para sempre da arte”. A violência e o estupro da vontade foram usados como mecanismos de educação para que Beethoven aprendesse a música. Desde muito cedo era obrigado a ficar horas e horas no seu quarto aprendendo cravo e violino. Essa disciplina espartana deixou marcas em Beethoven.
A agudeza da situação do pai obrigou o adolescente Beethoven a ajudar com as despesas da casa. Tratava-se de um adolescente tímido, retraído, introspectivo, metido em distrações e devaneios constantes. Beethoven era uma figura que não estava acostumado com a alegria. A sua obra oscila entre os aspectos solares e noturnos (dia e noite), resultado das variações de sua alma.
Essa condição permitiu a Beethoven desenvolver uma personalidade grave e silenciosa. Sai do ciclo formal da escola aos 11 anos por causa dessas necessidades acentuadas. Mais tarde quando conhece o conde de Waldstein é permitido a Beethoven retomar os estudos. Estuda literatura e estabelece contato com os ideais iluministas. Os ideais humanizantes da Revolução vão está presente em sua obra. Beethoven é um poeta que canta à humanidade. Isso fica claro, por exemplo, no segundo movimento (A Marcha Fúnebre) da Terceira Sinfonia, intitulada como Heróica. Trata-se de uma exaltação, mas ao mesmo tempo um profundo e revelador sentimento de compaixão para com a humanidade. Uma espécie de hino composto para cantar a grandeza e as dores humanas. Um réquiem de profundas e graves sentimentações. O contato de Beethoven com a literatura se faz sentir em sua obra. Shakespeare, Goethe, Schiller, aspectos profundos da mitologia grega vão está presentes na obra do compositor alemão.
No período de 1796 a 1800, o jovem Beethoven a partir dos 26 anos passou a experimentar os primeiros fantasmas da perda da audição. O compositor revela ao doutor e amigo Wegeler:

... Eu levo uma vida miserável. Desde há dois anos evito toda convivência, pois não me é possível conversar com qualquer pessoa: sou surdo. Se fossem outros os meus misteres, aquilo seria ainda possível; mas no meu caso, é uma situação terrível. Que diriam disso meus inimigos, cujo número não me é pequeno!... Ao teatro devo colocar-me muito junto à orquestra, para compreender o ator. Se fico um pouco longe, não escuto os sons altos, dos instrumentos e das vozes... Quando me falam suavemente, eu mal escuto... e, por outro lado, quando gritam, isso me é intolerável... Bem comumente, maldigo a minha existência... Plutarco conduziu-me à resignação. Desejo, todavia, se isso é possível, afrontar o meu destino; há momentos em minha vida que me considero a mais miserável criatura de Deus... Resignação! Que triste refúgio! Não obstante, é o que me resta .

Percebe-se nas palavras do compositor o infortúnio, a angústia de não poder apreciar o som que criava. Era como dar à luz a beleza e não poder apreciá-la. Essa condição crivou neste período na alma de Beethoven um conteúdo tal que permitiu que viesse ao mundo a Sonata Patética [opus 13], no ano de 1799. Há correntes dentro das artes que é pouco amistosa ao fato de se ler a obra do autor por meio da biografia do mesmo artista. É inegável que haja um importante mérito nessa tese, mas não se pode deixar de lado a consideração existencial que surge diretamente das vivências e experiências do artista. O artista ao produzir não o faz desjungindo dos elementos psico-existenciais acumulados durante a sua história. Com isso é importante ressaltar, por exemplo, que o quadro Campo de Trigos com Corvos de Van Gogh não teria vindo para o mundo se o pintor não estivesse mergulhado num caos existencial. A arte não existe apenas como uma entidade em si. O seu poder é infinito, suas possibilidades, imensuráveis. Todavia, o artista não atua numa atmosfera externa do mundo, pois as suas relações se dão no mundo humano, numa contingência material. Com relação ao quadro de Vincent é perceptível a pressão extrema da tristeza e da solidão. Van Gogh retrata com precisão a modelação da angústia que o acometia nos campos solitários repletos de corvos, “com caminhos que não levam a lugar nenhum, céus sombrios e mares de trigo que parecem uma onda que não se pode atravessar. Enfim, a impotência diante da imensidão” .
Nietzsche diz que o artista é um decifrador de mistérios como criatura humana que é. “(...) E todo o meu sonho e intento juntar num só todo o que é fragmento e enigma e horrível acaso. Como suportaria eu ser homem, se o homem não fosse também poeta e decifrador de enigmas e redentor do acaso?” A arte redime o acaso, sugere as intenções da existência. Ela surge como uma voz incontida na interioridade do artista. Todavia, existe uma provocação relacional entre o mundo e o ser do artista. A arte é a expressão de um modo de sentir do artista . Ela é pulsante de organicidade e vida. “A obra de arte resulta de um gesto humano, é, por isso, expressiva, orgânica, viva” .
A grande questão é se um chinês da Idade Média comporia um poema à semelhança de Brecht. Ou se outro qualquer dinamarquês escreveria uma filosofia análoga à de Kierkegaard. Ou ainda se qualquer outro compositor tão bom quanto Beethoven poderia criar peças como as de Beethoven. A resposta é não. Por quê? Porque a subjetividade é única. A percepção de mundo é única. Além do que ainda existe o fator ambiental e histórico que infunde outras referências no artista. Daí podemos chegar à dedução de que analisar os aspectos da obra pelos elementos biográficos não é de todo equivocado. Beethoven não teria composto a Patética ou a Sonata ao Luar se não houvesse uma força emuladora saltando de fora para dentro, criando assim condições para que o parto da arte viesse à luz.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque