quinta-feira, julho 30, 2015

Registro crônico VI - o Museu de Direitos Humanos

"Somos aquilo que lembramos... e aquilo que escolhemos esquecer" - Ivan Izquierdo, do documentário Utopia e Bárbarie, de Silvio Tendler
A entrada do Museu. Ao fundo, uma igreja e a imagem de Cristo cheio de cintilações simbólicas
No período da Guerra Fria, que vai do final da Segunda Grande Guerra até a derrocada da União Soviética, os direitos democráticos passaram por uma enorme crise na América Latina. Trabalhadores, estudantes, militantes dos mais variados matizes resistiram de forma heroica a essa ameaça materializada. Ditaduras se multiplicaram por todo continente, orquestradas pela Agência de Inteligência Americana (CIA) a fim de proteger os interesses do capital. O objetivo era romper com o avanço de forças progressistas, com as melhorias sociais e toda sorte de direitos que viessem acabar com os desníveis que existem no continente desde o processo de colonização. 

Por isso, é fácil de entender o porquê de tantos golpes perpetrados por militares. Se formos analisar a cronologia do continente, os golpes se sucederam numa espécie de efeito cascata: Guatemala e Paraguai (1954), Argentina (1962), Brasil (1964), Peru (1968), Uruguai e Chile (1973), Nicarágua (1979), Bolívia (1982). Em todos esses países, as ditaduras instaladas buscaram solapar os avanços sociais. Nesses locais, onde as fraturas da história ainda estão expostas, onde a colonização e imperialismo impediram que as desigualdades, que a divisão da terra, que as riquezas internas de cada país fossem repartidas, os nervos dos acúmulos negativos da história ainda estão abertos - e bem abertos. 

Em muitos desses países, após o início da redemocratização, foram montadas comissões que têm por finalidade colocar às claras esses anos de obscuridade política. Dezenas de milhares de pessoas morreram nesses países. Outras tantas foram torturadas. E muitos dos torturadores estão por aí, recebendo dinheiro do Estado. É o caso, por exemplo, do Brasil que conseguiu instalar a sua Comissão da Verdade somente em 2012. E mesmo tendo feito isso após tanto tempo, a sociedade ainda não entendeu a sua importância para o fortalecimento da própria identidade nacional, pois um país que não acerta contas com a sua história está fadado a repetir os mesmos desmandos, as mesmas injustiças do passado.

Minha esposa me pegou em um momento de introspecção
No último dia em que estive no Chile, 18/07, fui ao extraordinário Museu de Direitos Humanos (Museu de La Memoria y los Derechos Humanos), construído no primeiro mandato da administração de Michele Bachelett. Embora tenha ficado nele apenas 30 minutos (estava atrasado, pois o voo seria em pouco tempo), foi o suficiente para que eu me enchesse de emoção. O lugar é bastante amplo. Na entrada, escritos numa das paredes adjacentes ao prédio, estão os artigos da Declaração dos Direitos Humanos. No saguão de entrada, há a notícia fato de países em que os direitos humanos são violados e o que tem sido feito para investigar esses abusos. 

O prédio é constituído por três andares. Em cada andar se tem uma amostra de como as tiranias trazem violações e essas mesmas violações produzem uma sociedade em que a injustiça e o medo são agentes constantes, patológicos. Não visitei todos os andares. Fiquei apenas no primeiro. Lá eu pude vê como a Ditadura chilena foi terrível. Existem vários documentos - fotos, jornais, textos produzidos por crianças etc - que foram doados pelos próprios de familiares que ainda hoje choram os seus parentes sumidos. É possível colocar um fone e ouvir vários documentários que mostram imagens de época. As imagens retratam o Chile em setembro de 1973, o ano do golpe de Pinochet. Como os militares tomaram o poder e massacraram de forma impiedosa homens, mulheres e crianças; como o Palácio de la Moneda foi bombardeado - lá estava Salvador Allende, uma das mais representativas lideranças socialistas do continente. 

Numa sala contígua há um espaço reservado à memória de centenas de crianças que foram torturadas e mortas pelos militares. Vários desenhos retratam os sentimentos dessas crianças e como elas são marcadas de forma impiedosa. Mas, foi em um espaço desse mesmo andar que eu não pude conter as lágrimas. Há uma sala com velas simbólicas  - que nunca se apagam. E quando se entra nessa sala, olha-se direto para uma parede enorme com a milhares de fotos de pessoas que foram torturadas e mortas. Quando olhei aquela imagem, algo se contorceu dentro de mim. Não pude deixar de chorar. Ali estavam fisionomias diversas, que acreditavam em um mundo melhor. Seres anônimos. Não cheguei a conhecê-los nem eles a mim. Cada rosto expressava um grito. Um silêncio povoado por protestos. Um gesto de indignação. Um sonho. Um desejo. Um rugido de liberdade. Um brado inquietante por um mundo em que a liberdade não seja apenas uma palavra de dicionário ou um gesto esquecido, abandonado. Mas que se torne em credo, uma força capaz de mobilizar as pessoas para ações verdadeiramente solidárias. 

Pode se ver o bonito prédio ao fundo
Minha esposa se aproximou de mim e me abraçou. Uma torrente enorme inundou a minha alma. Lembrei as palavras de Cristo: "Bem-aventurados aqueles que têm fome e sede justiça, porque serão fartos"; "Bem-aventurados aqueles que choram, porque serão consolados"; "Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus". E pensei nas promessas de Cristo, alguém que morreu por causa da justiça; porque falou em igualdade e irmandade entre os homens. 

Penso que todo mundo deveria ter a oportunidade de visitar aquele museu. É um lugar fantástico. Se um dia voltar ao Chile, quero demorar mais tempo naquele espaço. Quero sentar no chão. Olhar, sentir, solidarizar-me com aqueles sofreram e morreram - e tantos que sofrem e morrem - por causa da justiça. O Chile é país que tem aprendido com a sua história. O simples fato do Governo Federal do país construir um lugar como aquele é um indício de um acerto inexpugnável com o seu passado.  

Quando se fala em direitos humanos, ainda há pessoas que abrem a boca contra essa ideia. Lutar pelos direitos humanos é lutar por um mundo em que ninguém seja punido por pensar diferente, por discordar das regras estabelecidas. Simplesmente, viver o processo de alteridade. E aí eu evoco a Cristo mais uma vez: "Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a lei e os profetas". 

sexta-feira, julho 24, 2015

Registro crônico V

Nos jardins de La Chascona
Hostis cordilheiras, 
céu duro, 
estrangeiros, esta é,
esta é a minha pátria,
aqui nasci e aqui vivem os meus sonhos
Pablo Neruda, in Navegações e Regressos


Como deixei claro na última postagem, tive a privilegiada oportunidade de visitar duas das casas em que viveu Pablo Neruda. A primeira delas fica na mítica cidade de Valparaíso, na costa chilena e se chama La Sebastiana. A residência fica no alto da empertigada cidade, que está assentada em seu trono de pedra, com o seu olhar repleto de cintilações crepusculares, contemplando o infinito mar. Em Valparaíso, como em Santiago, as casas foram transformadas em museus administrados pela Fundação Pablo Neruda. 

Na sexta-feira, dia 17 de julho, tive a chance de visitar a sua casa que fica em Santiago, chamada de La Chascona. Paga-se uma quantia módica de 3000 mil pesos chilenos, o equivalente a quinze reais e se pode visitar todos os cômodos da casa. O passeio dura em média uns trinta minutos. Todas as quinquilharias e artefatos que se ligam diretamente ao poeta ainda estão conservados na sala. A sala, os quartos, parte da biblioteca, a escadaria, o bar; os talheres, pratos, quadros, móveis, ainda estão conservados graças ao excelente trabalho que a Fundação realiza. 

La Chascona foi construída para esconder o caso de amor entre Pablo e Matilde Urrutia. Quando o poeta a conheceu ainda era casado com sua primeira mulher. Pablo e Matilde precisaram de bastante discrição. Buscaram encontrar um lugar afastado e que despertasse o mínimo de curiosidade. Escolheram para isso um terreno longe do centro, próximo onde hoje funcionam o zoológico de Santigo e o Cerro de São Cristovão, uma das vistas mais privilegiadas da cidade. Em La Chascona, Pablo erigiu um espaço que fugia das convencionalidades. Como era propenso a "pequenas extravagâncias e excentricidades", por causa de seu ar de colecionador, mandou trazer mesas de cafés franceses; quadros com aquarelas chinesas; prataria inglesa. A tampa da mesa do bar foi feita a partir de uma peça de navio. A forma dessa mesa busca repetir as ondas do mar, por quem nutria profunda e existencial paixão. Em La Chascona está a medalha que ganhou em 1971, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, dois anos antes de sua morte eivada por contradições.

Quando o Golpe Militar trouxe anos de escuridão para o Chile, em 1973, a casa foi depredada - claro, além das outras. Mudaram o curso de um rio que passa pelas proximidades para inundar a La Chascona. Queriam apagar a memória referente ao poeta. Pablo era um comunista militante. Sua presença no Chile traria problemas para o regime fascista de Pinochet. Graças à persistência e perseverança destemida de Matilde, conseguiu-se preservar a memória do poeta.

Na última quarta-feira, fui ver Neruda - Fugitivo, no Espaço Itaú Cinema, aqui em Brasília. O filme é bonito por mostrar a relação telúrica do poeta com a sua terra. Foi a partir da fuga e de sua viagem pelos Andes, que ele escreveu o seu famoso Canto Geral (que já comprei pela Estante). O livro é um verdadeiro mergulho poético, uma exaltação ao continente americano e sua latinidade. Nesse livro, Neruda descortina a sua visão para as questões sociais. Sua linguagem poética se tonifica, ganha profundidade. Deixa os hermetismos da juventude e busca como um rio cristalino e profundo o mar da justiça e da equidade.  

E após a viagem que fiz, após conhecer um pouco da cultura e o simpático povo chileno, penso que não somente Neruda, mas Salvador Allende e Victor Jara, sejam vozes de uma pujante liberdade, de uma força indômita como o silêncio que se espraia da Cordilheira; da densidade bruta dos minerais que fermentam riquezas e exaltam a orgânica pureza e majestade da natureza. Neruda representa a beleza profunda do povo chileno - sua solidadriedade, sua alegria, seu humor fino; seu desejo pela dignidade, seu mistério intransigente, como as brumas teimosas que escondem a cabeça branca das montanhas, tornando-as apaixonantes.

Lendo algumas poesias do seu livro Navegações e Regressos, encontrei um poema que me deixou boquiaberto pela relação que estabelece com esse espaço entre o silêncio e a palavra; e, após a tempestade, um outro silêncio, pois, em Neruda, passamos a entender que os silêncios têm natureza, gosto, cores, personalidades e uma mística que transfigura o momento em que vivemos e o lança em direção às infinitas significações do existir. 

Tempestade com silêncio

Troveja sobre os pinheiros
A nuvem espessa debulhou suas uvas,
caiu a água de todo o céu vago,
o vento dispersou sua transparência
encheram-se as árvores de anéis,
de colares, de lágrimas errantes.

Gota a gota
a chuva se reúne
outra vez na terra.

Um só trovão voa
sobre o mar e os pinheiros,
um movimento surdo:
um trovão opaco, escuro,
são os móveis do céu
arrastados.

De nuvem em nuvem caem 
os pianos da altura,
os armários azuis,
as cadeiras e as camas cristalinas.

Tudo o vento arrasta.
Canta e conta a chuva.

As letras de água caem,
rompendo as vogais
contra os tetos. Tudo
foi crônica perdida,
sonata dispersa gota a gota:
o coração da água e sua escritura.

Terminou a tormenta.
Mas o silêncio é outro. 

terça-feira, julho 21, 2015

Registro Crônico IV

No quintal da casa de Pablo Neruda
Valparaíso, en cambio, abre sus puertas al infinito mar, a los gritos de las calles, a los ojos de los ninõs. 
Pablo Neruda

Um dos momentos mais especiais da viagem que realizei ao Chile foi a chance de visitar duas importantes cidades - Viña del Mar, a cidade jardim, e a velha e mítica Valparaíso, lugar que como diz Neruda na ode que escreveu para a cidade é um "puerto loco/ qué cabeza/ con cerros/ desgreñada". Viña del Mar é a moça jovem, formosa, povoada por prédios modernos e recantos para os ricos; lugar de flores, de praias convidativas durante o verão. Valparaíso, por sua vez, é uma senhora "louca", com suas encostas vestidas por casas; suas ladeiras íngremes escondem segredos e proporcionam uma visão indelével para "o infinito mar". 

A visita foi bastante prazerosa - e repleta de ensinamentos. A começar pelo divertido e competente guia: um senhor chileno que havia lido praticamente toda a obra em prosa de Machado de Assis; conhecia as literaturas inglesa, estadunidense e francesa; que conhecia o cinema produzido nas décadas de 30, 40 e 50 e citava com uma desenvoltura impressionável os nomes dos principais atores e atrizes que brilharam àquela época. Havia viajado por boa parte dos países da América do Sul e vivera quatro anos no Rio de Janeiro. Sabia falar francês e inglês, além de arranhar o português. Conversamos bastante. Seu nome era Alejandro. 

Conseguia narrar a história dos prédios públicos, dos espaços importantes e simbólicos, ligando-os à história social, militar e política do Chile. Acredito que o passeio tenha se tornado, em parte, repleto de encantos por sua presença. 

O Pacífico em Viña del Mar
Em Viña del Mar visitamos o famoso relógio de flores, que fica a poucos minutos da entrada da cidade. Fomos ao cassino, à praia e foi de lá que avistei o imenso Pacífico. Suas águas geladas a esconder mistérios. Os pássaros a voarem, os pelicanos com seus papos enfunados a delimitarem as superfícies pedregosas. Fiquei olhando a imensidão de um verde que oscilava para o escuro. Sua água gelada, influenciada pelas correntes glaciais vindas do extremo Sul do Planeta. 

Como afirmei acima, Viña del Mar é uma moça de corpo jovem a exalar as fragrâncias de mocidade moderna. Já Valparaíso, a cidade ao lado, é mais velha. Ao se chegar a Valparaíso é possível enxergar de longe as casas humildes e como dizia Neruda: "Valparaíso... en los cerros se derrama la pobretería como una escada". Sim! Debaixo é possível enxergar construções mais suburbanas. Valparaíso é uma cidade que foi se empoleirando pelas encostas para enxergar a distância do imenso mar. 

Ela é a porta de entrada para a vida econômica do Chile. Seu porto possui uma importância fundamental para o país. No passado, foi um dos locais por onde mais passavam riquezas no hemisfério sul. Os navios que vinham do Oriente ou do oeste americano, tinham que passar por lá para chegar ao Atlântico, passando pelo Estreito de Magalhães. É possível que o biólogo inglês Charles Darwin tenha passado por lá. Com a construção do Canal do Panamá, na primeira metade do século XX, sua importância foi empalidecendo. Todavia, ainda é o local por onde entram as mercadorias que abastecem todo Chile. Além desse aspecto econômico, Valparaíso é uma das primeiras cidades a serem fundadas no Chile. Estima-se que ela tenha surgido na década de 50 do século XVI. Suas lojas podem ser notadas próximas aos prédios antigos. Outra curiosidade sobre a cidade é o fato de o Legislativo do Chile funcionar lá, desde a Ditadura de Pinochet. O sádico ditador buscou descentralizar o poder, construindo a sede da casa que faz as leis no litoral do país. Por ser uma cidade muito importante para o país, a presença de militares é bastante satisfatória. É comum encontrar estátuas de militares pelas praças.
O porto de Valparaíso e suas casas esparramadas pelos cerros

Em Valparaíso tive a oportunidade de visitar uma das casas de Pablo Neruda. O poeta tinha cinco casas no território chileno. Quatro foram transformadas em museus e uma foi doada ao Partido Comunista do Chile. Fica em um local privilegiado. A casa tem uma vista privilegiada para o mar, para o porto e o restante da cidade que se derrama pelos cerros. Sobre isso, vou escrever depois.

Enquanto voltava para Santiago, que está situada a pouco mais de cento e dez quilômetros de Valparaíso, atravessava os vales frios e pedregosos e tinha a minha visão mesclada pela névoa que escondia a cabeça gelada da Cordilheira e  avistava as vinícolas, pensava nos elementos míticos que tornam Valparaíso uma cidade repleta de encantos e mistérios. Pensei como é importante conhecer e refletir sobre o feitiço que as novidades que se abrem para cada um nós no mundo. E aí pensei em Neruda e o tecido fino e transparente de sua poesia. E entendi aquilo que ele afirma sobre Valparaíso, dizendo que ela tem 'uma estrela' e que essa estrela 'possui um pulso magnético que nos atrai'. 

segunda-feira, julho 20, 2015

Registro Crônico III

Santiago e seu inseparável cobertor de gases ao fundo
Na terça-feira, dia 14 de julho, por volta de meia noite e meia, cheguei à cidade de Santiago. Enquanto o motorista, um senhor de pouco mais de sessenta anos, conduzia-me para o lugar onde eu ficaria, tentei recolher de forma superficial, no meio do tecido escuro da noite, as primeiras impressões da cidade. Enxerguei alguns prédios com feições clássicas na distância. Tentei dialogar com o motorista, fazendo uma exaltação à cidade. Recolhi da fala simples e amistosa uma lição.

- Não existem cidades feias. Existem cidades distintas! - externou peremptório. 

Fiquei pensando sobre aquela fala. A maior parte dos nossos juízos tentam se adequar àquilo que estabelecemos como certo, belo ou coerente. Temos uma grande dificuldade em aceitar o novo, o diferente e suas possibilidades convidativas. O problema não está necessariamente na coisa, mas naquele que julga afoita ou relaxadamente a coisa. Perguntou ainda de onde eu era. Disse que era do Brasil, ao que ele mencionou personagens e lugares - São Paulo, Rio de Janeiro, Romário etc.

A "distinção" de Santiago se define pela sua história. Ela está situada em um vale. Pablo Neruda, um dos maiores poetas do século XX - chileno - em um dos seus livros afirma construindo uma imagem dramaticamente bela: "Santiago es una ciudad prisionera, cercada por sus muros de nieve". De fato, Santiago geograficamente está presa, cercada por muros altos, a Cordilheira dos Andes, que ora a admira, ora a arrosta com seu hálito gelado. Ainda seguindo essa imagem de Neruda, podemos dizer que ela está sitiada por um exército de pedras, que a espreita vinte quatro horas por dia. É justamente esse fenômeno que torna Santiago uma das cidades mais cinzentas das Américas. Os gases produzidos pelas fábricas e pelos automóveis ficam retidos, criam uma espécie de cobertor cinza que cobre a cidade com uma gaze de monóxido de carbono. 

Em frente ao Palacio de la Moneda
Quando deixei Buenos Aires, fiquei com uma impressão singular. Mas, ao chegar à capital chilena, a afirmação do motorista me salvou dos juízos apressados. Buenos Aires é uma cidade de avenidas amplas; de prédios com aspectos modernos e europeizados. Santiago, pelo contrário, mostrou-se com um aspecto mais antigo. Sua arquitetura fornida por belos prédios, por igrejas suntuosas; por avenidas apinhadas por carros e pessoas nas calçadas estreitas. Nos momentos mais movimentados do dia, as rodovias ficam paradas. O trânsito é intenso e torna Santiago uma cidade complicada para se locomover de carro. 

O que funciona muito bem é o seu metropolitano. As primeiras estações foram construídas nos anos 70. E, de lá para cá, eles não deixaram de ampliar esse eficiente serviço. Existem pelos menos cinco linhas de metrô. Olhando o mapa, fica-se com a ideia de que estamos diante de um cipoal de cores (cada linha possui uma cor - vermelha, azul, verde, roxa etc). Nas estações, os trens passam de dois em dois minutos. É possível se locomover por toda a cidade andando de metrô. 

A cidade é repleta de museus (escreverei sobre eles em outro momento) e praças. Uma das mais famosas é a Plaza das Armas. É um lugar amplo, povoado por artistas de rua e construções belas. Próximo dali fica o Palacio de la Moneda, sede do governo chileno. É um lugar histórico. Foi construído primeiramente para ser a casa da moeda do Chile. Por isso, não tem o nome "de palácio do governo". Durante o golpe militar, ocorrido em 1973, foi bombardeado pelos militares, a mando de Augusto Pinochet, um dos algozes mais terríveis da ditadura daquela país. A intenção dos militares golpistas era fazer com que o governo socialista e popular de Salvador Allende viesse abaixo. Como aconteceu no restante dos países da América Latina, que sofreram golpes, esses arranjos totalitários foram orquestrados pelo governo americano. 

Os Andes, simplesmente
Um aspecto positivo da cidade é a educação do povo. São prestativos e simpáticos. Não se olvidam em ajudar, em oferecer préstimos quando solicitados. É possível enxergar o quão diferentes são fisicamente dos argentinos, revelando o quanto a presença indígena foi importante para a formação do país. Não encontrei tantos leitores quanto em Buenos Aires, embora no metrô tenha visto pessoas lendo. Há ainda em algumas estações, bibliotecas públicas. Quem quiser é só se cadastrar e pegar os livros. O preço dos livros segue a mesma tendência argentina. Namorei vários. Trouxe apenas dois - Confieso que he vivido e Odas Elementales, ambos de Pablo Neruda. 

Fui a três ou quatro livrarias chilenas. E sempre que visitava, como se deu também na Argentina, tentava perceber a presença de escritores brasileiros. Na Argentina, não tive muito sucesso. Vi apenas dois - Jorge Amado e Paulo Coelho. No Chile, o acintoso Paulo Coelho ainda se fazia presente, todavia, a coisa ganhou contornos mais favoráveis quando enxerguei Chico Buarque (O irmão alemão), Jorge Amado (Tenda dos milagres) e Erico Veríssimo (O tempo e o vento). 

Uma experiência que me deixou bastante satisfeito foi a possibilidade visitar a Cordilheira. Não me recordo a última vez que vi algo tão desconcertante e belo como a imagem de uma montanha gelada. Apesar de Santiago está cercado por montanhas, a cinza brumosa cria o efeito de uma cortina e acaba privando a possibilidade de se avistar o cume branco. O caminho até o cimo da montanha é amedrontador. É serpenteante, coleante pelo corpo da montanha; a subida vai se construindo pouco a pouco. As curvas do caminho são desafiadoras. Ao olhar para os abismos, ficamos com uma noção de imprevisibilidade. Mas à medida que subia, lembrava de uma afirmação de Nietzsche. O filósofo alemão disse certa vez, que há sujeitos que têm a oportunidade de subir o monte e contemplar o vale profundo com toda a sua constelação de belezas, mas desistem em saber que lá, também, há um vulcão que pode entrar em atividade. Não havia vulcão lá no alto, mas havia um perigo em cada curva como um aviso medonho que se desenhava em cada cotovelo da estrada. Apesar do medo, à medida que se sobe, a beleza se irradia como a luminosidade embasbacante. 

No próximo post, vou escrever sobre duas importantes cidades chilenas - Viña del Mar e Valparaiso. 

domingo, julho 19, 2015

Leonardo Padura no Roda Viva

Entrevista com um dos escritores latino-americanos mais expressivos e famosos da atualidade - Leonardo Padura. Ele escreveu uma infinidade de livros. É um mestre do romance policial. Escreveu ainda um dos livros mais sensacionais o qual eu já tive a oportunidade de ler - O homem que amava cachorros, romance este que narra a fuga de Trotski da União Soviética, até a sua morte a mando de Stalin, na cidade do México. Um livro imprescindível a todo amante de uma boa narrativa. Nesta entrevista, Padura fala de seus romances, sobre O homem que amava cachorros e sobre Cuba. O sujeito é muito sensato e coerente. Ponto alto da entrevista é a sua resposta à jornalista da Revista Veja, após esta ter feito uma pergunta indigente, típica do jornalismo mambembe, subserviente, pelego e que está a serviço dos interesses das elites caducas deste país. 


quinta-feira, julho 16, 2015

Registro Crônico II

Livraria El Ateneo
Os argentinos à semelhança de muitos brasileiros nutrem uma relação prazerosa com a leitura. Estando em terras portenhas não deixei de perceber a relação que eles têm com os livros. Em praças públicas, em transportes coletivos, os argentinos lêem. Pude perceber uma quantidade satisfatória de livrarias. Não tive tempo, nos dois dias em que fiquei na cidade, de fazer uma investigação mais satisfatória nesse sentido. Havia outras ocupações. Mas, sempre que podia eu tentava visualizar uma loja de livros. Na verdade, ficava à cata delas. 

Os argentinos são respeitados por serem um povo culto. O número de intelectuais e escritores que colocaram o nome entre os mestres da literatura universal é bastante expressivo: Borges, Cortázar, Sabato, Bioy Casares, Juan José Saer, Manuel Puig; e, outros que ainda estão vivos como, por exemplo, Ricardo Piglia e César Aira. Com uma constelação tão grandiosa de nomes respeitáveis, é importante dizer que antes de ser escritor, era-se um leitor. Onde há bons leitores, existe a possibilidade de bons escritores. 

Caminhando pela Avenida Mayo, que liga o Centro à Casa Rosada, pude perceber alguns sebos. Visitei apenas um deles. Eu e minha esposa estávamos apressaados. Pude perceber sua impaciência. Esse estado de espírito acabou por lançar por terra minha relação promíscua com os livros da loja. Perscrutei apenas a sessão de literatura latino-americana, enquanto estava por lá. Acabei por comprar um exemplar – Anatomía Humana, de Carlos Chernov. 

Se os argentinos estão bem de livrarias, não estão tão bem com os preços. Assustei-me com os valores. Ás vezes, penso que os brasileiros depreciam o seu país em excesso. Se há uma crise ela ainda não é colapsante como querem nos fazer crer. Ainda estamos em uma situação confortável. Um real, hoje, é equivalente a três pesos. É uma relação 1/0,35. Ou seja, se eu tenho um real, compro apenas 35 centavos de peso. O dinheiro argentino está desvalorizado e a inflação tem solapado o poder de compra. Os livros estão numa esteira terrível. Alguns pockets (Leonardo Padura, Piglia, Borges etc) que olhei no Aeroporto de Ezeiza custavam em média 160 pesos – ou mais de cinqüenta reais. Observe: estou a falar de edições de bolso. 

O choque veio quando fui à Livraria El Ateneo, uma das mais famosas e visitadas da Argentina. Não somente por causa de seu tamanho, mas também pelo lugar que ocupa. O prédio onde está a livraria foi um teatro no passado. Aquelas galerias indicando o lugar do público permaneceram. Só que agora as galerias são povoadas por livros. Um verdadeiro deleite para os olhos. Encontrei lá algumas preciosidades. Quis comprar. Fui detido pela monta absurda. Explico: encontrei alguns livros. Peguei um Sabato (como não!), um livro de Mario Vargas Llosa, um estudo sobre a obra de Ghershwin e uma biografia de Mozart. Fui ao caixa. Pedi para efetuarem a soma. O estapafúrdio valor apareceu como uma mureta de contenção – quase novecentos pesos, ou seja, quase trezentos reais por quatro livros, que no Brasil custariam no máximo uns cento e vinte reais. Senti-me besta! Pensei imediatamente: “Se os argentinos lêem tanto assim com a prática de preços absurdos, eles, verdadeiramente, são heróis; amantes incansáveis do saber”. 

Ao final, abortei a intenção. Trouxe apenas dois livros – o Sabato (que deve ser uma sensação lê-lo em sua própria língua) e o estudo sobre a música de Gershwin. Tudo isso pela bagatela de Ar$ 450,00 (quatrocentos e cinqüenta pesos), cerca de R$ 150,00 – claro, sem o IOF da transação bancária. Alguém poderia inquirir: “Mas o livros não seriam grossos?, ao que responda: “Não!” Eram edições de pouco mais de duzentas páginas.

Algumas coisas não possuem respostas imediatas: nós temos livros mais baratos e não lemos tanto; eles têm livros mais caros e leem mais que a gente.

Aeroporto de Ezeiza, Buenos Aires – 13 de julho de 2015.

quarta-feira, julho 15, 2015

Registro Crônico I

Faculdade de Direito, Bairro da Recoleta
Fiz a minha primeira viagem internacional. Não foi para tão longe – Laos, Sibéria, Austrália, Alaska... Minha esposa e eu rumamos para terras argentinas e chilenas. Ela foi à frente. Saiu daqui no dia cinco; eu, dia dez, pela madrugada. Fiquei no aeroporto Internacional de Brasília até por volta de duas e vinte da madrugada. Viajei pela Aerolíneas Argentinas. A primeira impressão que ficou do avião da companhia foi curiosa. O avião, um modelo da Embraer, fez-me pensar em multilateralidade, já que os dois países fazem parte do Mercosul e a Embraer é uma empresa brasileira. 

O voo foi tranquilo. Dormi a maior parte do tempo. Cheguei ao Aeroporto de Ezeiza por volta das cinco e meia da manhã. Passei pela imigração (Polícia Federal Argentina). Peguei as malas. Fui ao Banco de La Nacion comprar os famosos pesos argentinos e me aboletei para o hotel em um ônibus bastante confortável. A cabeça parecia ter um buraco enorme por causa da noite mal dormida. No dia anterior eu acordara cinco e meia da manhã; trabalhara o dia todo. Não descasara um só instante. Havia uma confusão interna por causa da novidade. Um sorvedouro nervoso a engolir e dissipar minha capacidade de concentração. 

Enquanto organizava as primeiras imagens das terras argentinas, olhando pelos vidros embaçados do ônibus, eu parecia ter um pedaço enorme de chumbo sobre as minhas pálpebras. A cabeça estava um desvario. Todavia, a escuridão às sete horas de uma fria manhã, deixou-me com uma visão positiva de Buenos Aires. Árvores desnudas e retorcidas pareciam dar "um boas vindas" espectral, com feições fantasmagóricas. O trânsito não possui muita relação com o trânsito de Brasília. Na Capital brasileira, assumi uma visão bastante crítica do modo de condução do brasiliense, pois esta é uma extensão do individualismo pequeno-burguês da cidade. O processo de desumanização chegou às ruas das capitais brasileiras. Em Brasília, lugar conhecido pela frieza das pessoas, o privatismo da vida do sujeito médio ganha dimensões eloquentes quando se sai aos espaços públicos. Estes espaços são encurtados para que prevaleça a moral individualista do sujeito, que entende que o espaço público existe para sua satisfação pessoal. 

Avenida Mayo, próximo à Casa Rosada
Pois ao olhar para as ruas ocupadas por carros velozes, percebi a existência de uma cultura muito diferente daquela do brasileiro. Aqui parece que buzinar, parar fora da faixa (ou ocupando duas ao mesmo tempo); tomar a frente; não dar a preferência parece ser parte valores argentinos. Com hábitos tão singulares, o argentino faz da rua um espaço para aventuras e protestos. É comum se ver alguém colocando o braço para fora, após um buzinaço nervoso, em sinal de reclamação. Mesmo com essa característica bastante peculiar, o trânsito flui de forma significativa. Sua infraestrutura de trânsito e o sistema de transporte está bem à frente daquele encontrado nas cidades brasileiras.

Outro aspecto bastante curioso está relacionado com a receptividade do povo argentino. Muitos brasileiros foram acostumados a julgar a realidade a partir dos signos midiáticos. E se existe algo que a mídia hegemônica construiu foi ideia de que os argentinos são antipáticos, indivíduos faltos de generosidade e bom humor. Trabalha-se uma perspectiva tendenciosa de uma rivalidade futebolística, que acaba por ser trazida para o campo das relações do mundo fático. 

Quando pedi informações, percebi uma boa vontade para ajudar, para indicar as direções requisitadas. Enquanto caminhava pela rua, um sujeito me parou e perguntou se eu era colombiano. Disse que era brasileiro e aí ele externou exclamativamente: “Maravilha!!”. Empolgou-se em elogios ao Brasil. Falou das grandes cidades brasileiras. Apenas assenti com a cabeça e ri de forma tímida. Ofereceu-se para tirar fotografias – e fê-lo. 

Casa Rosada, palácio presidencial argentino
A simpática e charmosa Buenos Aires é uma cidade repleta de parques. Eles estão por toda parte. Não estou acostumado com essa visão. Os parques e praças são espaços para encontros da coletividade. Para conversas; prática esportiva; convívio social. A existência desses espaços cria a possibilidade de uma cidade mais humana. Brasília é uma cidade em que não se vislumbra tais espaços – os que existem são usados por determinada parcela da população. Um desses exemplos é o Parque da Cidade, que fica distante das cidades satélites e, portanto, mais afastado das pessoas mais humildes da Capital Federal. É usado “privativamente” pelos sujeitos “engomados” da cidade.

Algo que me impressionou na cidade foi a quantidade de fumantes. Por aqui, em sentido hiperbólico até os cachorros fumam. Claro, trata-se de um gracejo. Mas, é natural ver adolescentes, jovens e pessoas mais velhas soltando baforadas despudoradas pelas ruas. Quando se está dentro de um espaço fechado e se sai à rua, sente-se o cheiro enauseante da nicotina. Tal costume não é tão comum em Brasília ou em algumas cidades brasileiras. Existe, pelo menos nesse sentido, uma política de desincentivo de pretensão pelo tabagismo. 

Os quatro dias em que fiquei em Buenos Aires foram entusiasmantes. Saí com uma percepção animada, em sentido apreciativo, dos argentinos e da bela cidade. Se tiver oportunidade, voltarei sem titubeios. 

Buenos Aires/Santiago

quarta-feira, julho 01, 2015

"Ressurreição", de Machado de Assis

Comecei um projeto que há muito eu pretendia realizar: ler toda a obra em prosa de Machado de Assis, com destaque para os romances. Li já praticamente toda ela de forma aleatória em outros tempos - Dom Casmurro, Quincas Borba, Esaú e Jacó, Memórias Póstumas, Papéis Avulsos, A mão e a luva, Helena. Revisitar alguns desses livros gera uma sensação de ansiedade e, ao mesmo tempo, de curiosidade. A curiosidade é estimulada, pois ainda não li Iaiá Garcia, Memorial de Aires e Casa Velha

Na semana que passou, li Ressurreição. Confesso brandamente que as minhas defesas já estão minadas com relação a alguns livros da literatura brasileira do século XIX. Em outros tempos li com maior entusiasmo José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, Bernardo Guimarães etc. Atualmente, lê livros com aquele artificialismo de vivências burguesas de imitação da nobreza europeia é bastante cansativo. Há algumas semanas assisti ao excelente Barry Lindon, de Stanley Kubrick. Fiquei a observar como se davam as relações nas cortes europeias - o parasitismo social, a necessidade de bajulações, os títulos que exalavam ostentação despudorada, a hipocrisia dos barões, condes, viscondes e etc. Ao ler Ressurreição veio todo aquele quadro genialmente retratado por Kubrick, ficou a certeza de que a obra escrita por Machado de Assis era uma história tropical, mas com todo o requinte da burguês das cortes europeias. 

Ressurreição é o primeiro romance de Machado de Assis, de 1872. Ao lê-lo, restou-me a consequente visão ácida das oligarquias brasileiras. Em alguns momentos senti o desejo de largar a leitura. Mas, não sou de fazer isso. Se inicio um livro, por mais que ele tenha uma história sofrível, vou até o fim. Ressurreição não é uma obra imponente. Suas características estão postas em outros romances escritos no século XIX aqui no Brasil. Se Machado de Assis tivesse escrito unicamente esta obra, hoje, ele seria um escritor "menor" e insignificante, colocado na periferia da história da literatura. 

Mas, enquanto lemos a obra, percebemos algumas características que passaram a ser marcas registradas e indeléveis do autor de Memórias Póstumas: a ironia fina, as construções sintáticas simples e eloquentes; o diálogo do narrador com o leitor; a citação de nomes importantes das artes (música, literatura) ou da mitologia. Machado já desfere golpes na sociedade com suas conduções forçadas e sua moral fingida e hipócrita. E essa é uma característica marcante no romance Ressurreição. O final do livro é machadiano por excelência. É como um filme de Woody Allen: o destino sempre prega uma peça descontínua nas personagens, o que nos conduz a um final bastante imprevisível.

Quando escreveu Ressurreição, Machado de Assis tinha pouco mais de 31 anos de idade. Não era o gigante que, nove anos mais tarde, soltaria para o mundo uma das obras mais belas e emblemáticas da literatura brasileira - Memórias Póstumas de Brás Cubas. Parece-me que Ressurreição seja um espécie de treino que antecede uma grande realização. 

Sendo assim, pulemos para o próximo exercício, que é A mão e a luva.