segunda-feira, dezembro 11, 2023

Inadequação

 

“Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia”

Trecho da música "Não vou me adaptar", do grupo Titãs. Letra de Arnaldo Antunes

 

No sábado, após alguns anos, estive em um culto protestante. Visitei a Igreja Presbiteriana Nacional (IPN). Seria o dia da colação de grau do meu cunhado. Ele bacharelou-se em teologia. Sendo assim, fui à IPN por causa desse fato. Meu cunhado estudou teologia por quatro anos no Seminário Presbiteriano de Brasília, onde também estudei entre os anos de 2002 e 2005.

                Desejei ir para resgatar da memória a experiência que lá vivi. Encontrar algumas fisionomias. Perceber como a vida nos apresenta paisagens diversas. E, por fim, praticar a bonomia com alguns sorrisos. A pergunta mais intrigante da noite foi feita a mim por um colega chamado Wesley, que estudou no período em que lá estive:

                - Que bom te ver! Onde você está? – Para quem é de fora do mundo protestante, quiçá, não perceba a força semântica da inquirição. A indagação é feita para interpelar o interlocutor a respeito da igreja que ele frequenta. Ele queria saber a respeito do meu nível de envolvimento com o mundo eclesiástico. Respondi a sua indagação entre um esgar e a consciência de que aquele tipo de pergunta era comum.  Certamente, minha resposta o surpreendeu, gerando decepção.

                Observei toda condução do ritual tentando encontrar em mim mesmo uma dimensão que me conectasse com o seu sentido. Eu frequentei os cultos presbiterianos. Estudei na mesma instituição que estava declarando publicamente o curso de teologia do meu cunhado.  No dia 10 de dezembro de 2005, eu também recebi o mesmo título. Fui responsável por fazer o voto para a minha turma. Havia gestos apaixonados e uma motivação sincera em minha credulidade. Passados dezoito anos, julguei-me anômalo, indiferente a tudo o que aconteceu.

                A pregação de um reverendo chamado Marcelo, foi uma verdadeira declaração de chauvinismos e sensaborias egoicas. Prontificou-se a falar do texto do livro de Atos, que trata sobre Estevão, considerado pela tradição cristã como o primeiro mártir. Seu discurso foi pouco claro. Houve enormes digressões. Um discurso gabola típico dos líderes cristãos, criando dicotomias entre o mundo que se diz cristão e aquele que não é. Segundo ele, o mundo persegue os cristãos. Isso aconteceu em toda a história e acontece ainda hoje. Mencionou países africanos; falou a respeito da China. Para ele e sua mente colonizada, os Estados Unidos são um tipo de modelo missionário, pois os cristãos pioneiros que foram responsáveis pela formação da Igreja daquele país, foram fortes e sonharam com uma terra que seguisse, no dizer do pregador, “um país que segue o evangelho”. Ou seja, velhos bordões para arregimentar engajamento.

                É curioso como os presbiterianos valorizam aquilo que Rubem Alves chamou de “protestantismo da reta doutrina”. Por intermédio dessa fórmula, é possível perceber o quanto o desejo pelo saber teológico sedimenta ostentação. As falas no culto presbiteriano manifestam duas questões:

 (1) Há uma enorme preocupação com a teologia. A compreensão de deus passa, necessariamente, pelo rigor teológico. O saber teológico dessa forma é a régua de medir a divindade. Caso, haja uma compreensão que não se harmoniza com a teologia, questiona-se essa compreensão. A teologia é a chave de interpretação dos fenômenos religiosos. Somente indivíduos treinados e moldados pelo saber teológico são capazes de adquirirem uma plausível respeitabilidade. O desejo de distinção e reconhecimento talvez explique o porquê desse fenômeno nos púlpitos e na prática dos condutores da denominação.  

(2) E, a segunda, que talvez, seja um desdobramento da primeira é a exaltação a uma fé pautada na construção de um discurso que se estrutura na fala. O discurso deve ser pomposo. Isso pôde ser verificado na fala do paraninfo da turma. Seu texto pareceu-me demasiado pernóstico. A estrutura sintática primou pela escolha de palavras pouco usuais. Havia ainda um enfeito pouco natural na leitura. Nota-se, assim, que há uma evidente preocupação com “a forma”. Pode-se dizer que, caso fosse enviar uma carta, os presbiterianos teriam mais preocupação com a aparência do envelope do que com o conteúdo que a carta abriga.

                Quando deixei o espaço, fiquei pensando no quanto o ser humano se preocupa em erguer muros discursivos para se sentir protegido. Todo aquele ritual somente confirmou o quanto nesses espaços de manifestação religiosa, a antropologia fale com tanta força. As manifestações trazem mais conteúdos sobre aqueles que o fazem do que sobre aquilo que eles alegam pregar. Há mais a respeito dos homens no pretenso discurso sobre deus, do que deus no discurso erguido pelos homens.


3 comentários:

Frazec (vulgo Jean-Philipe Rameau) disse...

Carlinus,

Que beleza de texto, o seu! Parabéns pela conclusão, com a qual concordo inteiramente. Minha experiência religiosa me ensinou algo bem parecido com o que você comunica da sua aqui: o discurso religioso há muito (e muito!) tempo perdeu seu frescor.
E, independentemente de isso ser lamentável, é sobretudo revelador de quem o profere.
Ao que entendi, você se sente mais autêntico e feliz como está agora.
Posso garantir-lhe que eu (que sou mais velho que você) também, e agnóstico que me tornei, sinto-me em paz com o distanciamento (auto)crítico que conquistei.
Sim, desde Feuerbach, sabemos: o que os humanos escrevem sobre o divino é (provavelmente quase todo) sobre a humanidade.

Carlinus disse...

Oi, Frazec, obrigado pela partilha.

Sim. Sinto-me mais "autêntico". Passei alguns anos de minha vida em uma igreja. Afastei-me por perceber que o discurso religioso carrega enormes contradições e, se isso acontece, é por que ele é demasiado humano.

Após leituras, conversas; e após ouvir outras pessoas mais sabidas do que eu, pude entender o que o Feuerbach queria dizer com a ideia de religião como fenômeno antropológico. É indubitável que a religião seja uma dimensão dos desejos mais intricados da interioridade do ser humano. Ela se manifesta como um desejo de perenidade, de estabilidade. O fenômeno religioso é uma tentativa do ser humano lhe dar com aquilo que ele não consegue explicar nem controlar - a morte, o medo, as doenças, as perdas inexplicáveis da vida etc.

O problema que enxergo é a institucionalização da religião. É a militância. É a arrogância com que se reveste aquele que se diz protestante, católico ou que quer que seja, buscando determinar para aqueles que estão fora do seu grupo, sua chave de compreensão do mundo.

Também me considero agnóstico. Não rechaço completamente a religião. Olho com respeito para os fenômenos e penso como Pascal: "Esses espaços infinitos me apavora". Ser ateu é um gesto de coragem radical.

Um abraço!

Frazec (vulgo Jean-Philipe Rameau) disse...

Carlinus,

Obrigado por responder a meu comentário. É sempre muito bom encontrar uma mente aberta, inteligente e próxima às nossas ideias.
Com o humor da nossa conversa, desejo-lhe, desde já, um Natal bom (isto é, bem agnosticamente contemplativo)!
E, claro, obrigado por sustentar este blog maravilhoso, assim como "O Ser da Música", que visito to-dos os dias, porque continuamente me enriquecem musical e intelectualmente!
Outro abraço!