quarta-feira, dezembro 31, 2014

Tempos de alegria - sobre dois livros de Eric J. Hobsbawm

Certamente que algumas das leituras mais interessantes que realizei neste ano de 2014 - que ainda resfolega os seus últimos estertores -, foram Tempos Interessantes - uma vida no século XX e História Social do Jazz, de Eric J. Hobsbawm. No início do ano, também li a nova edição para Bandidos, lançado pela Editora Paz Terra. Hobsbawn, falecido em 2012, era daquelas personalidades altas, que têm a chance de carregar em si o peso dos eventos históricos, por ter testemunhado e medido com os elementos exatos cada um desses fatos. Como de forma subentendida em Tempos Interessantes - sua autobiografia -, Hobsbawm foi testemunha de um século de fraturas, caos, transformações profundas em seus costumes e em sua base produtiva; um século de conflitos e de alastramento da cultura de massa.

Ao analisarmos sua vida em Tempos Interessantes, resta-nos uma conclusão: existem pelos menos três elementos que não poderiam ter sido extraídos de sua ontologia - (1) ele era comunista e assim verbaliza sobre sua crença na doutrina de Marx: "O sonho da Revolução de Outubro ainda está em algum lugar dentro de mim, assim como um texto apagado no computador lá permanece, à espera de que os técnicos o recuperem dos discos rígidos". (2002, p.73). (2) Hobsbawm era um historiador e foi por meio das ferramentas proporcionadas pela história e pelo materialismo dialético, chave com se destranca a porta do grande castelo da história, que ele olhou, pensou e analisou o mundo. ("Não se pode escapar do passado... Nossas vidas cotidianas, os países em que vivemos e os governos que nos dirigem, tudo isso está rodeado e inundado pelos produtos de minha profissão" (2002, p. 311). (3) e o grande pensador, intelectual e erudito era apaixonado por uma das maiores revoluções que marcaram a música popular - o jazz. O movimento cultural nascido nos Estados Unidos alcançou o historiador quando este tinha apenas 16 anos de idade; e surgiu como um supridor de carências emocionais e afetivas. Ele mesmo diz: "No meu caso, porém, o jazz praticamente substituiu o primeiro amor, pois envergonhado por minha aparência física e convencido de que era pouco atraente, reprimi deliberadamente a minha sensualidade e meus impulsos. O jazz trouxe a dimensão de uma emoção física sem palavras, sem questionamentos, para um vida quase completamente monopolizada por palavras e exercícios intelectuais". (2002, p. 99). 

Em outro trecho ele afirma sobre esse movimento, dizendo que o jazz não era apenas "um certo tipo de música", mas sim "um notável aspecto da sociedade em que vivemos". (2002, p. 252). Foi essa paixão pelo jazz que o levou a escrever História Social do Jazz, em 1959. Ao escrever o livro, Hobsbawm usou o pseudônimo de Francis Newton (em homenagem a Frankie Newton, nome de um trompetista que tocara com Billie Holiday, um dos poucos músicos de jazz sabidamente comunistas). A grande questão em torno do livro é o fato de ter sido escrito em 1959, deixando de levar em conta a transformação por que passou o movimento a partir dos anos de 1960 - principalmente com a ascensão do rock. Segundo o historiador o historiador diz em Tempos Interessantes, o rock "em poucos anos quase matou o jazz". A revolução foi insuperável. O fenômeno da nova música, reforçada pela energia jovem e contagiante, fez com que os músicos de jazz vivessem um período de ostracismo musical. Muitos deles migraram para a Europa. O movimento poderoso e avassalador vivido pelo jazz em 20 anos, principalmente entre 1940 e 1960, foi substituído pelo febricitante movimento de corpos estimulado pelo rock. No prefácio à edição de 1989 de a História Social do Jazz, Hobsbawm diz que: "as vendas de discos nos Estados Unidos, que tinham aumentado de US$ 227 milhões em 1955 para US$ 600 milhões em 1959, ultrapassaram os US$ 2 bilhões em 1973. Setenta e cinco a 80% dessas vendas representavam gravações de rock ou gênero afins". E esse fenômeno avassalador não deixou o jazz intacto. Como é típico dos processos dialéticos, os movimentos incorporaram os elementos do rock e o jazz acabou vivendo a sua fase experimentalista. O fusion é uma dessas manifestações, que acabou levando os puristas a aumentarem a quantidade de cabelos brancos por causa de suas preocupações em manter o movimento sem a influência, segundo eles, "perniciosa" desse movimento "maculador". 

Para Hobsbawm, entre os vários motivos que levaram a ascensão do rock, três eram os principais: (1) o tecnológico, que acabou possibilitando o grande avanço da música eletrônica. O rock foi um dos movimentos musicais a utilizar uma engenharia capaz de produzir para as grandes massas. (2) dizia respeito ao conceito de conjunto, pois o movimento não precisava de virtuoses como o jazz a exibir as suas habilidades. Estrutura do rock (baixo, bateria, guitarra, voz) possuía uma aspecto absurdamente simplificador. Nesse sentido, o rock era mais democrático, pois qualquer sujeito "amador" ou formalmente "analfabeto" para as convenções musicais poderia montar o seu conjunto e "gritar" para o mundo. (3) dizia respeito ao ritmo "insistente" e "palpitante". Tal fato, fez com uma multidão cada vez mais densa de jovens, principalmente adolescentes, visse no movimento a expressão do seu universo de desejos, instintos, sentimentos e aspirações. O jazz passou, a partir daí, a ser encarado como música de intelectuais ou de velhos. 

Mas de onde veio o jazz? E é para responder a essa pergunta que existe como substrato em toda a obra, que o grande historiador marxista gasta boa parte de seu tempo. Para ele, o jazz é uma manifestação social alijada a um herança africana. As melodias complexas. A energia vibrante. A estrutura harmônica. E a sua estrutura inconfundível atestam a sua essência revolucionária. Talvez, seja uma das manifestações mais revolucionárias da música ocidental, pois surgiu no seio da cultura negra, visto pela mainstream hegemônico como forma inferior. Sua força vem justamente do grito oprimido dos negros. Vem dos spirituals americanos. Dos cultos protestantes gritados, angustiados, no qual o pregador encarna a energia a serviço do fervor da palavra. O jazz é essa força, esse espírito carregado de energia esfuziante, capaz de revelar a intimidade daquele que externa a sua manifestação. Não é uma manifestação contida. O jazz assim como o blues, que é o seu parente mais próximo, são feitos para que o ouvinte sinta. 
Apesar de ter surgido nesse meio carregado de fervor religioso, o jazz estava carregado de uma energia antipuritana, secularizante, sensual ao extremo. E, talvez, tenha sido por isso que migrou para os bares de Chicago; para os cabarés de St. Louis; para os prostíbulos de New Orleans; para os guetos e passou a ser associado a música de negro. Nomes como Louis Armstrong, Thelonius Monk, Charlie  "Bird" Parker, Miles Davis, Eric Dolphy, Art Blakey, John Coltrane, Ornete Coleman, Dizzy Gillespie etc estão amarrados à história do movimento. São figuras icônicas, as quais não se pode desvencilhar a identidade do movimento. 

Resta apenas me aproximar do jazz com o máximo de reverência como um ser apaixonado que se aproxima de uma ninfa jovem, mas sendo sabedor do potencial de amor que ela guarda em si. Estou ouvindo Somethin' Else, de Miles Davis, em um disco que traz nomes como Cannonball Adderley, Art Blakey e o próprio Miles Davis e tenho certeza que Hobsbawm faria um sinal com a  cabeça em sinal de aprovação e balançaria a perna, gesto consequente quando ouvimos uma música como essa Somethin' Else. 

quarta-feira, dezembro 24, 2014

O Natal como (res)surgimento de um novo tempo

"Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra". 
Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas".

Os homens não poderiam viver sem fé, crença e esperança. A fé é um pressuposto necessário. Quando me refiro à fé, não quero deixar a ideia de que se trate apenas de fé convencional, institucional. Não há ou houve uma cultura em que algum tipo fé não estivesse presente. Existe aquela passagem emblemática do livro bíblico de Eclesiastes que diz que "Deus colocou a eternidade no coração do homem". Independente da relação que o homem tenha com a divindade - de crença ou não crença - parece existir um desejo por segurança no coração de todos nós. A fé gera, necessariamente, essa segurança. Ela cria uma sensação de pertencimento e conduz o sujeito a "descansar" de seus medos e infortúnios. 

É mais fácil caminhar quando se tem um destino determinado, uma estrada que conduz a um fim estabelecido. A religião, nesse sentido, é construtora de estradas. É uma bússola capaz de orientar a consciência daquele que crer. O sujeito religioso é aquele que cria âncoras psicológicas para navegar no oceano revolto da existência. Quando as dúvidas surgem; quando o medo da morte, da doença e os seus efeitos, das angústias variadas aparecem, o sujeito que tem uma crença, enfrenta com maior ousadia e determinação o seu obstáculo. Existe aquela passagem marcante do livro de Habacuque, profeta bíblico do antigo testamento, que diz mais ou menos assim: "Ainda que não haja gado no curral; ainda que o produto da oliveira minta; ainda que não haja fruto na vide, eu me alegro no Senhor". Essa passagem ilustra bem essa certeza do ente religioso. 

Por mais que a sociedade tecnologizada e afeita à técnica queira decretar o funeral de Deus, como bem havia observado Nietzsche no final do século XIX, a fome pelo sagrado continua viva. O sujeito pode até se afirmar ateu, agnóstico ou outra coisa; pode até negar a existência de qualquer discurso universal ou apelo absoluto; todavia, em algum momento esse sujeito coloca, ergue para si um altar que o alimenta existencialmente. Pode não seguir os parâmetros determinados pela religião convencional, mas existe algo, lá no fundo, que faz com que o sujeito oriente a sua vida. Como disse Ludwig Feuerbach, aquele amante inveterado desse mistério, no final do século XIX, no seu livro "A essência do cristianismo": "Religião, o solene desvelar dos segredos ocultos do homem, a revelação dos seus pensamentos mais íntimos, a confissão pública do seus segredos de amor".

Tenho minhas desconfianças para com a religião oficial. Vejo-a caricata, castradora, dogmática, mas essa é a sua essência. Quando se crer e se ama algo, rapidamente se arregimenta formas para proteger aquilo que se ama. É, por isso, que os homens colocam proteção em torno dos jardins. É para proteger sua beleza frágil. Por sua vez, quando se crer em algo, também, rapidamente, criam-se "fórmulas de certezas", os dogmas, que são declarações, afirmações irrefutáveis sobre determinado assunto. Um dogma existe para não ser questionado. Existe para ser obedecido. Ninguém em juízo pleno pode tentar questionar o dogma. Os conflitos por causa da religião surgem por causa desse fato. Aqueles que não dão a mínima para o dogma, acabam insultando aqueles que vivem para o dogma. 

Mas, por que escrevo essas garatujas errantes? Ora, pelo fato de hoje a cristandade oficial celebrar o nascimento de Cristo, que é o ponto fundante e miraculoso da experiência legitimadora da fé e, que, mais tarde, transformou-se em dogma. Ao pensar sobre isso, não posso deixar de entender que a fé é um evento circunstancial, pois se tivesse nascido no Japão, na Índia ou no interior da China, não estaria me preparando para esse evento. Faz lembrar aquela velha afirmação: "Se os cavalos pensassem como os homens, seus deuses teriam a forma de cavalo". E, nesse sentido, é impossível não voltar a pensar em Feuerbach. 

Não desprezo o momento. Já fui crítico da ocasião. Já achei em minha presunção que, aqueles que comemoravam o Natal, eram sujeitos alheios ao verdadeiro fato histórico que representa o Natal. Já alimentei o pensamento de que os homens fracos sempre criam a ideia de um deus forte; que os oprimidos, sempre erguem o papel de um deus vitorioso; que os feios constroem um deus que representa o belo. Não que, no fundo, tal compreensão não esteja grávida de uma certa coerência. Mas é preciso reconhecer a oportunidade que se tem, nesta data, o Natal, de se poder encontrar pessoas. Confraternizar com aqueles que não vemos a maior parte do ano. Existe um elemento simbólico-poético potencialmente grávido de despertamentos no Natal. É importante não deixar que ele murche.

É o momento de interiorização, de olhar para a consciência e julgá-la pelos fatos realizados. Acredito que precisemos mais desses rituais. Como dizia Durkheim, o homem é o único ser capaz de analisar o exterior e o interior de si mesmo, diferente dos outros animais, que vivem apenas o exterior. A modernidade açambarcou a capacidade do homem olhar para o seu interior. De fazer reflexões. De ler poesias. A capacidade de contemplar a natureza. De trabalhar a dimensão do numinoso existente em cada um de nós. A estesia vivida como resultado dos grandes momentos. 

O Natal, como a indústria capitalista quer nos fazer crer, não é uma corrida desvairada e caótica ao templo do consumo. Mas é um momento para fazer renascer a possibilidade de um recomeço em torno de todas as coisas. É o momento para abraços. Para confissões não enunciadas em outros momentos em decorrência do embrutecimento da vida. É o momento para que se abra o coração para que o cheiro jasminesco da solidariedade entre e faça morada, enfrentando aquela força chamada "desencantamento do mundo" por Max Weber. Natal é renascimento, despertar, caminhada, reinauguração daquilo que já existiu e estava adormecido na insensibilidade dos dias de aniquilamento da esperança. Comemoremos o Natal - nem que seja como uma metáfora de um novo tempo.

domingo, dezembro 21, 2014

Surpreendido mais uma vez

C.S. Lewis (1898-1963)
O tempo é uma entidade curiosa. Parece que hoje eu tenho uma noção de que ele se pulveriza bem mais rapidamente do que em outras épocas. Dormimos. Acordamos. Realizamos meia dúzia de atividades com completa desconexão, apenas seguindo aquela força maquinal do cotidiano e, de repente, temos que dormir novamente para acordar e reiniciar todo evento circular. 

Constato que tenho lido numa velocidade cada vez menor. Fazendo isso, sigo uma via paradoxal em relação à consciência que tenho do tempo. Estou lendo três livros ao mesmo tempo. No passado, eu já cheguei ler cinco ou seis. Era um frenesi constante. Chegava a vencer nove ou dez em um único mês. Atualmente, tenho lido muito pouco. E isso acaba gerando em mim uma indignação silenciosa, dessas que se alastram como fumaça e deixa a gente com os seus efeitos duradouros. A despeito disso, resolvi iniciar a leitura de um livro que há muito eu procurava. 

Enquanto eu era um estudante de teologia, lá pelos idos de 2003, li Surpreendido pela Alegria, de C.S. Lewis. E, a primeira vez que o li, fui como sugerido pelo título, "surpreendido" por uma estilo agradável e por uma narrativa autobiográfica de grande qualidade. Lewis diz no início da obra que não pretendia escrever um tipo de livro que se assemelhasse às Confissões de Santo Agostinho ou às Confissões de Rousseau. Penso que neste ponto resida uma humildade fingida da parte do inglês, posto que o livro possui uma leveza poética e uma qualidade que nos faz desconfiar que por trás daquelas letras do autor, há alguém saturado dos aromas da literatura. 

Já estava procurando o livro há uns seis anos. Entrei em contato com a Livraria Mundo Cristão, responsável pela publicação em 1998, mas eles me informaram que não havia nenhuma previsão de reimpressão da obra nos próximos anos. O exemplar que li pertencia à biblioteca do Seminário Presbiteriano de Brasília. 

Todavia, os ventos venturosos trazidos pelos deuses vieram até mim e eu o achei na rede. O livro inteiro em uma versão em PDF. Sei. Não é a mesma coisa que o objeto físico. Ler no computador não é uma das melhores coisas. Já li livros na tela, seguindo aquele fluxo de letras miúdas e luminosas - O crime do padre Amaro (Eça de Queirós), A peste (Camus), O Anticristo (Nietzsche) entre outros - e a experiência não é a mesma que ter em mãos o livro. Atualmente, ando lendo O homem desenraizado, de Todorov, também na tela do meu notebook. E tenho planos de ler O descobrimento da América do mesmo autor. É cacete ler no computador. Mas vamos lá...

Li, hoje à noite, as primeiras vinte páginas do livro de Lewis (assim que terminar pretendo fazer uma pequena resenha) e me detive nas palavras abaixo. Ao ler essas palavras, embarquei em uma viagem que me levou ao passado. Recordo-me de que quando li cada uma delas pela primeira vez, tomei as palavras como um valor quintessencial que me seguiria pela vida a fora.  Sempre desejei, desde o dia que li isso, tornar em uma verdade inseparável, inarredável. Ou seja, jurei nunca me afastar dos livros. E, hoje, lendo essas palavras, não deixo abrir os lábios em um sorriso de satisfação por algo que vivi, que descobri - e que foi bom. Ah! o tempo...

"[...] Meu pai comprava todos os livros que lia e jamais se livrou de nenhum deles. Havia livros no escritório, livros na sala de estar, livros no guarda-roupa, livros (duas fileiras) na grande estante ao pé da escada, livros num dos quartos, livros empilhados até a altura do meu ombro no sótão da caixa-d'água, livros de todos os tipos, que refletiam cada efêmero estágio dos interesses dos meus pais-legíveis ou não, uns apropriados para crianças e outros absolutamente não. Nada me era proibido. Nas tardes aparentemente intermináveis de chuva, eu tirava das estantes volume atrás de volume. Encontrar um livro novo era para mim tão certo quanto, para um homem que caminha num campo, é certo encontrar uma nova folha na relva.". (C.S. LEWIS, 1998, 20).


domingo, dezembro 14, 2014

Que tipo de educação queremos: aquela que defende o consenso ou aquela que enxerga a história como um palco de atuação e transformação?

Essa é a ideia de educação que as elites brasileiras ainda sustentam - e que o Estado propagandeia -, deixando clara a sua posição acerca de um conformismo; uma defesa explícita do consenso em torno de um tipo de educação alienada, tecnicista, fordista em sua concepção para as classes populares. 


Publicidade realizada pela Prefeitura do Rio de Janeiro, publicada no Jornal O Globo em 07/12 (o que coaduna com a alma ideológica do veículo publicizante) e que mostra crianças numa linha de produção. 


Faz lembrar isso:

sexta-feira, dezembro 12, 2014

A fala de Bolsonaro contra Maria do Rosário e a lógica da violência

Acabei de ler o texto Lógica do Estupro, da filósofa Márcia Tiburi e fiquei a pensar o quanto existe de dimensão psicológica em nossos comportamentos aprendidos - e o quanto isso é externalizado em nossos preconceitos e pré-compreensões que emulam os comportamentos sociais. Nesta semana que finaliza, um dos acontecimentos que geraram reações escandalizantes em todo o país foi a fala truculenta, massiva em seu nível mais profundo de primitividade do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) contra a deputada Maria do Rosário (PT-RS). A fala em si é condenável e digna de cominação legal. Mas o que me chama a atenção é o que está por trás da verbalização do parlamentar da bancada da bala. 

Lendo alguns comentários nas redes sociais sobre a repercussão da fala do truculento político, percebi a defesa implícita da atitude do deputado por parte de algumas pessoas. Algo assim: "Mas ela em outra situação o chamou de estuprador". Se a deputada havia agido dessa forma, que ele procurasse a justiça para reivindicar seu direito. A fala do deputado, enunciada do púlpito do plenário, não é justificável nem aqui no planeta terra, nem em qualquer outro lugar do universo. Outro sujeito chamou a deputada de "desgraçada". E fiquei a pensar sobre isso.

Na verdade, o que faz com que o deputado afirme: "Não a estupro porque você não merece" está centrado em duas realidades interpretativas, notadas até por um aluno de ensino fundamental: (1) ele é um estuprador; (2) a deputada não é digna de ser estuprada, mas há outras mulheres que são. Dita em um ato de desvario ou em sã consciência, a fala de Bolsonaro deixa latente, como diz Marcia Tiburi, citando o caso Gervais de Tilbury, personagem do livro Eva e os padres, de Georges Duby, grande medievalista, que o estuprador reivindica a lógica da força por ver na mulher um ser estuprável. Em entrevista ao Jornal Zero Hora, ele reitera o que disse, fazendo uma nova afirmação ("Ela não merece porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia. Não faz meu gênero. Jamais a estupraria"). Com isso, ele exalta a prerrogativa de que é "macho", homem, potente, que encerra em si força superior. Age assim por ser um autoritário, que não consegue enxergar no outro a dignidade ou um sujeito de direitos em sua humanidade singular. O estupro é uma das maiores violências encontradas nas relações anômalas ditadas no mundo social. Ela é antiga. Cruel. Violenta por subjugar o outro e desonrá-lo. Torná-lo em um ser abjeto, subserviente, que estar ali apenas para ser um brinquedo descartável que servirá ao jogo de diversões egoístas do valentão. 

No fundo, o estuprador é um sujeito fraco, que não conseguiu sair da animalização para a humanização. É misógino. Ver a mulher e qualquer realidade que externe a figura do feminino como algo frágil. É, por isso, que ele ver no homossexual um ser desprezível, porque deixou de ser homem. Se há sexo entre homens (relação homoafetiva), ele acha desprezível. Mas, se ao contrário, a mesma relação se der entre mulheres, ele julgará como sendo menos nociva. Ou seja, o que sustenta tal comportamento é a força legitimidadora do falo. Quem tem e usa é "homem de verdade".  Subutilizá-lo é ser visto como ser reprovável, pois tal subutilização caminha em direção ao feminino. Isso explica, por exemplo, porque existe a figura do homem predador que sai na noite e diz que "comeu" muitas mulheres. Quanto mais se "pega", mais forte e viril é o sujeito nessa espiral gradativa da infantilização. E, como diz a Marcia, quando isso acontece, fica a demonstração da 'miséria subjetiva, no narcisismo infantilóide (por que parece com uma caricatura infantil da época em que ele mostrava sua genitália aos coleguinhas no banheiro) que, arranjados na lógica do estupro definem a condição inumana na qual ele se compraz'. 

É essa relação que define, por exemplo, o tratamento do estado para com os pobres. Do valentão da escola. Do marido que bate na esposa. Da polícia que bate em negro, que violenta os pobres da periferia. Vez ou outra os sentimentos do valentão vem à tona pelo simples fato de o sujeito ter um pênis e uma impressão que pode fazer determinadas coisas por ser homem. Já ouvir algumas pessoas afirmarem: "Mas ele é homem. Ele pode fazer. Não vai acontecer com ele". A estrutura psicológica dessa frase foi construída histórica e socialmente. Quando isso acontece a lógica do estuprador se instalou.

quarta-feira, dezembro 10, 2014

O cinema em novembro

O mês de novembro acabou. Sei. É uma obviedade desnecessária. O fato é que não cheguei fazer alguns daqueles comentários magros que me dispus a realizar. É que passei a levar o cinema muito a sério. Acabei fazendo uma daquelas promessas bobas, que geram obrigações pequenas, mas necessárias. Desde o mês de agosto, tenho visto, em média, dez filmes por mês. Mês passado eu assisti a treze no total. E o destaque fica por conta das produções argentinas. Foram cinco no total. Comentarei três desses filmes mais à frente - Relatos Selvagens, Um conto chinês e Medianeras - Buenos Aires na era do amor virtual

O primeiro filme que vi no mês de novembro foi Poesia (2010), de produção sul-coreana. Poesia é um filme delicado. É a história de uma senhora de 67 anos que resolve aprender poesia, ingressa em um curso e passa olhar o seu dia a dia com outra perspectiva. É um bonito filme! 

Dois filmes brasileiros apareceram no menu - Menino de Engenho (1965), que busca retratar um dos principais romances de José Lins do Rego. Quem já leu a obra vai perceber que essa produção do Cinema Novo, realizada por Walter Lima Jr. - e com participação na produção de Glauber Rocha - leva em conta os aspectos mais relevantes da obra do escritor paraibano. Trata-se de uma interpretação lírica da vida de Carlos Eduardo, o menino que vivia em meio aos canaviais do Engenho Santa Rosa e descobria os encantos da infância. A outra obra é Pra frente, Brasil (1982), que revela as arbitrariedades da Ditadura Militar no Brasil. O filme mostra como os cidadãos eram vulneráveis à selvageria e a brutalização patológica dos agentes do estado. Excelente filme - apesar de alguns problemas técnicos. 

Os outros filmes foram: O assassinato de Trotsky (1972), que mostra como o assassino covarde e de personalidade fraca e niilista matou, a mando das autoridades soviéticas, uma das mentes mais pujantes e brilhantes da primeira metade do século XX. Vi ainda o eletrizante Cidadão Kane (1941), de Orson Welles; Mel de Laranjas (2012), que aborda a vida de um soldado que tergiversa entre a vida como militar e como militante de um grupo esquerdista durante a Guerra Civil Espanhola. O bonito e delicado Pequena Jerusalém (2005), que mostra a vida de uma estudante de filosofia, amante de Kant, que tem que conviver, na periferia de Paris, com as tradições do seu povo e a austeridade da razão. Surge daí um conflito existencial. A obra mostra como a religião acaba delimitando o mundo das pessoas. 

Mas, o mês de novembro foi rico em produções argentinas, como enunciei no início. Disse há alguns dias que o cinema argentino está bem à frente do cinema nacional. Entre boas e excelentes atuações de Ricardo Darín, o cinema argentino "vai revelando" para o mundo boas histórias; enredos fortes e resultados de excelência. Vi, assim, Elefante Blanco (2012), que conta a história de um padre que trabalha em uma favela em Buenos Aires. Kamchatka (2002), talvez tenha sido, das produções que vi, aquela que se mostrou mais modesta. O filme narra a história de uma família que se ver perseguida e busca arrumar alguns esconderijos para que os filhos não percebam o que acontece durante o período da Ditadura Militar na Argentina. Nesse sentido, gostaria de fazer alguns comentários (não extensos) sobre três dessas produções: 

(1) Relatos Selvagens (2014) - já comentei sobre o filme em outro post, mas a obra se revela como um melhores filmes que vi nos últimos anos. O filme possui a cronicidade de um conto de Júlio Cortazar ou o poder labiríntico, enfeitiçante, de uma história de Borges. E penso que talvez resida aí a superioridade do cinema argentino. Se pesarmos a quantidade de escritores bons que saíram - e ainda escrevem - daquela terra, chegamos a uma conclusão: os argentinos sabem o que fazem em matéria de cinema e literatura. Um país que produziu um Borges, um Cortazar, um Sábato, um Adolfo Bioy Casares, um Alan Pauls, um Ricardo Piglia etc, com certeza, possui instrumentos inauditos para criar obras refinadas. Penso que essa querela criada pela imprensa brasileira em torno de uma suposta rivalidade, na verdade, seja um recalque - ou, ainda, uma isca futebolística com finalidades comerciais. Admitamos: os argentinos, do ponto de vista cultural, estão à nossa frente. Por exemplo, enquanto lemos, em média, 1,9 livros por ano, eles leem 7. 

(2) Um conto chinês (2011) - este filme é uma delícia. Mostra como a rotina draconiana do personagem encenado pro Ricardo Darín, acaba sendo balançada pelo inusitado. E, acima de tudo, revela como o inusitado (lei de Murphy?) pode juntar aquilo que está separado. Ou ainda: como o objeto que transforma a vida de alguém em tristeza, pode se transformar em ponto de encontro ou marco que dar início a uma nova jornada. Atuação genial de Darín. Excelente filme!

(3) Medianeras - Buenos Aires na era do amor virtual (2011) - Medianeras não é um filme feito apenas para a gente pensar. Há graça nele! Mas, o centro da obra é a vida citadina e seu niilismo que afasta as pessoas. A cidade é uma redoma de tensões, de separações, de encontros epidérmicos, casuais e aparências que ocultam aquilo que é mostrado na superfície. A vida na cidade é cercada pela deletério. Pelo medo. Pela enfermidade. O homem da cidade, conforme diz uma das personagens, é aquele que não consegue se afastar do vício virtual. "A internet me aproximou do mundo mas me afastou da vida". Cena curiosa é aquela em que uma das personagens vai lançar fora as fotos que estavam no celular e observa em palavras carregadas de efeitos reflexivos: "380 fotos; 38,9 megas de história são apagados num ato simples e irreversível", fazendo-nos pensar sobre como nossas existências estão presas a censores ou a transistores. Como a tecnologia se incorporou ao nosso próprio respirar. Medianeras são aqueles lados feios, caricatos, onde não se pode achar graça. Os lados esquecidos dos prédios que são aproveitados para afixar publicidades. O lugar onde não se pode colocar uma janela ou permitir que o ar entre. Pois, quem vive em uma cidade parece lidar constantemente com o fato de que as medianeras asfixiam a nossa vida.  Ou a própria medianera é uma metáfora da vida colapsada pela morbidez do niilismo. Não quero deixar aqui nenhum spoiler. Veja o filme, se há interesse em minha recomendação! Está no Youtube

domingo, dezembro 07, 2014

O exercício inquieto...

"O cronista é um escritor crônico". Affonso Romano Sant'Anna

Este espaço tem estado entre o abandono completo e o relapso do seu postador oficial. Não gostaria que fosse assim. A indisciplina me priva completamente de aparecer mais vezes. Não é falta de motivos, nem de ideias. Talvez seja a quantidade de trabalho e exigências. Todavia, se há foco, esse obstáculo também é contornado. Na próxima semana entrarei de férias. Por isso, penso em comparecer de forma mais recorrente por aqui. Há ainda uma expectativa de estudos. Vou me auto-exilar em uma biblioteca pública todas as manhãs no meu período de recesso.

Pretendo retornar aos textos magros, ao olhar míope, crivado de clichês e a emitir opiniões sobre as notas que escuto com uma audição deficiente. Não escrevo para que haja leitores. Intenção não tenho de que este espaço se torne um recanto de curiosos. Até me falta a suficiente musculatura intelectual para empreender grandes maratonas literárias. A irregularidade das leituras me aborrece. Meus muitos livros comprados em 2014 são uma efígie em minha consciência. Estão prestes a me devorar por completo. Não restará um tecido sequer. Impaciento-me.

Mas a literatura é um labirinto. É como naquele conto do Cortazar - A continuidade dos parques. Eu leio o autor que me lê através do seu personagem. Ela é uma porta dimensional que conecta o real e a representação do real, suscitada pela narrativa.  Há pouco estava lendo o livro O homem desenraizado de Todorov e tropecei nessa pequena parte do livro. Estou até agora pensando sobre o que li. O autor franco-búlgaro faz um pequeno resumo de um conto de Maupassant, chamado de A joia. A literatura é a construtora e a destruidora de mundos. E é essa emersão que realizamos em espaços como este, todas as vezes que lemos um livro que possui uma força verrumadora. Olha o que diz Todorov:

"Uma jovem mulher de origem modesta pede emprestado a uma conhecida rica um colar de diamantes para usá-Io no baile; por infelicidade, o colar é roubado. A mulher toma como questão de honra devolver a joia: pede emprestada uma soma enorme e compra um colar idêntico. O resto da vida transtornou-se: ela passa os anos seguintes a reembolsar a dívida contraída. Anos mais tarde, quando sua vida já está em declínio, ela reencontra a antiga benfeitora e lhe relata fielmente o incidente. "Minha pobre amiga", exclama a outra, "os diamantes eram falsos, o colar não valia nada." (Todorov, Tzvetan. O homem desenraizado. Editora Record, 1999, p. 73)

Isso é atordoante!