domingo, outubro 22, 2023

A Rosa do Povo, de Drummond - algumas impressões

 

Preso à minha classe e a algumas roupas,/ vou de branco pela rua cinzenta./ Melancolias, mercadorias espreitam-me./ Devo seguir até o enjoo? / Posso, sem armas, revoltar-me?

                Carlos Drummond de Andrade, in “A flor e a náusea”

 

Terminei a leitura de “A Rosa do Povo”, de Carlos Drummond de Andrade. Li lentamente os 55 poemas. Era minha intenção beber cada palavra, sentir o sabor de cada imagem; apreciar as paisagens repletas de nuances e perspectivas. Drummond revela em “A Rosa do Povo” sua inquietação com um mundo em mudança e questiona a finalidade da poesia. Os poemas, em um mundo em ebulição, saltavam dos jornais – “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais” (in “Carta a Stalingrado”).  Era necessário a arte para refletir o próprio mundo social e a floresta urbana habitada por indivíduos com existências repletas de niilismo.

“A Rosa do Povo” foi publicado em 1945. Drummond escreveu-o entre os anos de 1943 e 1945. É o seu quinto livro. Até aquele momento, foi o livro mais denso em perspectiva política. O poeta mineiro trabalha a tese de que a realidade é imensa; de que o indivíduo dessa sociedade era um pequeno ponto impotente diante de estruturas que lhe eram enormes, intransponíveis, insensíveis. 

A década de 40 do século XX, apresentava um cenário pessimista em todos os sentidos, quer no plano nacional quer no plano internacional. O Brasil estava mergulhado na Ditadura do Estado Novo, de Vargas. Uma força invisível e onipresente criava uma sensação de asfixiamento. As liberdades eram cerceadas em nome de um projeto totalitário. No plano internacional, o mundo estava sendo sacudido pela máquina de guerra do nazifascismo. A Alemanha criara campos de extermínio a fim de trucidar judeus, comunistas e outras minorias. Desenhava-se um cenário trágico. Caso os alemães saíssem vitoriosos da Guerra, certamente o mundo iria experimentar um período de tiranias e incertezas. O projeto do Reich, segundo o seu mentor, deveria durar mil anos.

O poeta se coloca diante de uma encruzilhada, pois, em alguns poemas, nota-se claramente como “a náusea” se encontra com uma esperança frágil, como no poema “A flor e a náusea”, um dos poemas mais sublimes da obra. O poema “Medo” declara como a força do medo, da desconfiança e do selvagem pavor que acomete o homem moderno, impulsionam os afetos na sociedade capitalista: “E fomos educados para o medo. / Cheiramos flores de medo. / Vestimos panos de medo”. (...) “Assim nos criam burgueses”. Radicado no Rio, após ter deixado a sua Minas Gerais (e sua Itabira, que funciona como uma Ítaca), Drummond observa o mundo e se impregna de melancolia.

No poema “Passagem da Noite”, nota-se o uso da metáfora com ideia de um mundo circunscrito por uma força poderosa, que tudo conquista e domina. O escuro e sua força mesmerizante se alastra, criando uma ideia de imobilidade. Essa presença toma a interioridade o eu lírico. “É noite. / Sinto que é noite / não porque a sombra descesse / (bem me importa a face negra) / mas porque dentro de mim, / no fundo de mim, o grito / se calou, fez-se desânimo. / Sinto que nós somos noite, que palpitamos no escuro / e sem noite nos dissolvemos. / Sinto que é noite no vento, / noite nas águas, na pedra”.

Há poemas sublimes que se tornaram conhecidos como, por exemplo, “Procura da poesia”, “Consolo na praia” ou o belo e dramático “Morte do leiteiro”. Este último poema é um verdadeiro tratado sociológico sobre as contradições da vida urbana na periferia do capitalismo. Demonstra como a sociedade burguesa cria mitos para aniquilar os indesejados (“Há no país uma legenda, / que ladrão se mata com tiro”), mesmo que este seja um trabalhador que acorda cedo para trazer “leite bom para gente ruim”.  

O autor usa uma linguagem circunspecta. Arrojada. Em alguns momentos, há como que um jorro de sua mineiridade. Em outros, verifica-se a fala medida, a sintaxe exata a explorar os versos livres. Não há rimas. Cada poema articula um discurso que fala dos próprios receios e limites da humanidade. Pode-se observar que o eu lírico de alguns poemas se permite a sentir, a sonhar com uma transformação, com a superação, com a resistência. Um exemplo é o famoso poema “Carta a Stalingrado”, que enaltece a resistência dos russos frente aos nazistas. Stalingrado é o símbolo da humanidade que procura frear o ímpeto assassino da máquina de guerra que semeia a barbárie. “Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente”.

“A Rosa do povo” contém aquilo que Alfredo Bosi chama de “existencialismo niilista”. Há versos duros. Carregados de uma potência negativa. Mas, é possível encontrar também a esperança vacilante, tosca, demasiado pequena e, mesmo em face da maior incredulidade do eu lírico, “é realmente uma flor”.  O livro enuncia um poeta jovem e consciente de sua presença no mundo. O poeta olha à distância o que sucede no continente europeu e como o Brasil, nas suas pequenas e contraditórias lutas, está repleto de disputas; de eventos que evidenciam a guerra particular que cada sujeito realiza todos os dias. Drummond nesse livro projeta-se como um trovador que canta à melancolia do homem contemporâneo. Sua estética é curva, é cinzenta; e, em alguns momentos, raios tímidos cismam em surgir por trás de nuvens grossas e sisudas. “Este é o tempo de partido, / tempo de homens partidos”.

segunda-feira, outubro 09, 2023

Carta à vizinha do 303



Boa tarde! Aqui é o vizinho do 301.

Segundo a Constituição de 1988, “a casa é o asilo inviolável do indivíduo”. Nela estruturamos aquilo que chamamos de lar. Expressamos as nossas individualidades. É o nosso espaço privativo por determinação. Colocamos em prática hábitos e costumes que comumente não o fazemos em público.  Sendo assim, ando descalço sem preocupação; fico sem camisa sem o receio de que alguém chame a minha atenção. Estou, afinal, em meu espaço de liberdade, na circunscrição do realizável.

Todavia, há uma limitação a esse asilo de liberdade. Por não viver isolado de relações - em um deserto ou uma ilha – há pessoas que estabelecem conexões com a minha pessoa. Devo respeito a elas. Há certas matérias como sons, fumaças e cheiros variados que não respeitam os limites que demarcam o meu espaço de liberdade.

Ora, por que escrevo tais coisas? Explico-me em seguida:

Somos vizinhos há pelos menos seis anos e sempre mantivemos uma boa relação – polida, amistosa, respeitosa. Já pude observar que a senhora é fumante. E esse é justamente o ponto a que gostaria de chegar.  Eu não fumo e nem tenho o interesse em fazê-lo. Respeito o direito de a senhora fumar. Eu não tenho nada a ver com isso. No entanto, nessa questão reside um problema, pois eu e minha família abominamos o cheiro de cigarro. Fazemos a opção de não fumar, pois somos sabedores do quanto um mísero cigarrinho faz mal à saúde. Além disso, temos um filho pequeno que apresenta, de tempos em tempos, problemas respiratórios.

Costumamos deixar a janela da sala aberta – ainda mais nesses dias quentes – e acabamos sendo violentados pelo cheiro indesejado do cigarro que a senhora “saboreia” em seu “asilo inviolável”. A fumaça do cigarro – que não respeita espaços – acaba tomando a minha casa inteira e eu sou obrigado a fechar, em muitos momentos, a minha janela. Com isso, a minha casa acaba sendo “violada” pelas emanações nauseantes do alcatrão. Imagino que a senhora fume de janelas abertas.

Minha esposa já foi até a síndica. Fez uma reclamação. Pediu uma solução. A síndica não se mostrou firme. Mastigou algumas explicações. Desconversou. Por fim, o problema nos incomoda há muito tempo. Por isso, numa tentativa de resolução do problema, solicito encarecida e respeitosamente que a senhora feche as janelas de seu asilo inviolável quando for fumar a fim de que o meu não seja “violado” pelo cheiro de cigarro.

Cônscio de sua atenção, desejo liberdade e entendimento. 

Obrigado.

segunda-feira, outubro 02, 2023

"É isto um homem?", de Primo Levi.

 


“...compreendi como é penosa a morte de um homem”. (p. 251)

“A noite chegou, e todos compreenderam que olhos humanos não deveriam assistir, nem sobreviver a uma noite dessas”.

 Os excertos acima foram extraídos de duas tonitruantes passagens do livro “É isto um homem?”, do italiano Primo Levi. Sem qualquer ímpeto hiperbólico, afirmo sem temor de errar que é uma das mais dolorosas descrições sobre as memórias da dor que já tive a oportunidade de ler. Já li alguns outros relatos de prisões e de campos de concentração. Destaco, por exemplo, “Memórias do Cárcere”, de Graciliano Ramos; ou, “Memórias da Casa Morta”, de Dostoiévski. Vale mencionar os seis livros escritos por Varlam Chalamóv e os seus perturbadores “Contos de Kolimá”. Posso mencionar ainda “Nada de novo no front”, do alemão Rich Maria Remarke, como outro texto de grandioso realismo sobre a barbárie e a coisificação do homem.  Todavia, em “É isso um homem?”, verifica-se o quanto o absurdo se torna uma regra inescapável.

Em Levi, há um aturdimento em cada palavra. Um mergulho no escuro. Cada palavra é carregada pela força infensa do sofrimento, da fragmentação. Há um mergulho no fundo. No abismo. Essa lógica da desumanização acontece do início ao final da obra. Levi afirma que havia uma ironia atroz na entrada do campo para onde foi levado: “ARBEIT MACHT FREI – o trabalho liberta”. Libertaria em que sentido? Certamente, que os que entravam ali para trabalhar, “gastavam-se” tanto no esforço, na falta de alimentação, que a libertação era a morte. Trabalhava-se para morrer. “Todas as horas de luz são horas de trabalho”. 

Outra frase que poderia estar esculpida no portal: aquela enunciada em “Em Divina Comédia” e avistada por Dante na abertura: “Vós que entrais, abandonai toda a esperança”. O próprio Levi afirma: “Isto é o inferno”. Os detalhes eram pensados para oprimir; para despersonalizar. A banalidade do mal, expressão cunhada por Hannah Arendt para categorizar os trabalhos realizados pelo nazista Eichmann, era uma realidade que grassava por todos os lados.  A contabilidade da morte era cruel. Mais de 650 foram embarcados na Itália, apenas 27 sobreviveram; dos 45 do vagão em que estava Primo Levi, só 4 sobreviveram – “e o meu vagão foi, de longe, o mais afortunado”.

Levi foi preso na Itália, no final de 1943. Afirma ele que tinha 24 anos e “pouco juízo”. Antes disso, formara-se em química. Havia estudado em uma famosa escola italiana em que o estudo da língua e da literatura eram pontos fortes. Como a Itália também enfrentava um regime autoritário à semelhança da Alemanha de Hitler, Levi entrou em um grupo de resistência ao movimento fascista. Foi preso. Quando identificado como judeu, acabou sendo encaminhado para a Alemanha. 

 Os campos de concentração eram espaços de desumanização. O aniquilamento completo do sujeito era a finalidade. O corpo entrava em uma espiral de desfazimento. Aos poucos, não era possível sentir nem o corpo nem a alma. O indivíduo não se notava. O comportamento animalesco se instaurava. Vivia-se como um zumbi. O objetivo era apagar o futuro e o passado. Estraçalhar as memórias. Destruir qualquer cordão de sentimento que conectasse o sujeito à humanidade. Não havia tempo, não havia lugar para se ter medo. Afinal, os fios que teciam a humanidade eram apagados um a um: Ele afirma:

Imagine-se, agora, um homem privado não apenas de seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua casa, seus hábitos, sua roupa, tudo, enfim, rigorosamente tudo o que possuía; ele será um ser vazio, reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento – pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo.

 Levi em certo momento fala da “fome regulamentar”.  Diz ele: “Quinze dias depois da chegada, já tenho a fome regulamentar, essa fome crônica que os homens livres desconhecem; que faz sonhar, à noite; que fica dentro de cada fragmento dos nossos corpos”. O corpo era a dimensão a ser reduzida a nada. Ele recebia as refregas mais variadas – fome, pancadas, cama dura, frio, trabalho em condições insalubres, percevejos, pulgas; doenças variadas. Os prisioneiros eram reduzidos a meros rebotalhos. “Como não poderíamos pensar em não ter fome? O Campo é a forme; nós mesmos somos a fome, uma fome viva”.

“Ai de quem sonha!” A realidade é um grande pesadelo e traga – como um grande sorvedouro – qualquer possibilidade de fantasia. É curioso que Viktor Frankl tenha escrito um livro, cujo centro fulcral de sua reflexão sobre “o sentido” é um campo de concentração. A realidade verruma “uma pontada dolorosa”. Não é possível sonhar, pois se é um animal cansado, bestificado, assustado, à espera de nada. Há um trágico instante em que o sujeito desiste de compreender, de pensar, de fazer associações. Ele apenas repete gestos maquinais. Tornou-se um animal dócil. “Há muito que parei de tentar compreender”.

Levi possuía uma consciência incontornável de que a sua vida foi poupada por um conjunto de fatores – já estava no final da Guerra; sua formação como químico foi fundamental; o fato de ter ficado doente com escarlatina o impediu de seguir para a chamada “marcha da morte”, desfechada nos momentos finais pelos alemães, quando perceberam que perderiam o confronto para os Aliados. Levi ficou onze meses no Campo de Auschwitz-Birkenau, dois dos mais mortais centros de aniquilação do século XX.

O italiano foi liberado, no final de janeiro de 1944. Todavia, voltaria à sua Itália alguns meses mais tarde – em outubro. O caminho de volta, passando por alguns países – Polônia, Romênia, Ucrânia etc – descreve em “A trégua”, outro dos seus excelentes escritos. 

 “É isto um homem?” é um documento que não deve ser ignorado. Deveria ser lido por todos os humanistas. Todas as escolas deveriam adotá-lo. Ser distribuído gratuitamente. Após a sua leitura, ficamos a nos perguntar o quanto o ser-humano pode cruel; o quanto uma vida pode ser degrada por uma ideologia do ódio. Em uma das suas últimas e embasbacantes reflexões, Levi afirma que “Uma parte de nossa existência está nas almas de quem se aproxima de nós; por isso não é humana a experiência de quem viveu dias nos quais o homem foi apenas uma coisa ante os olhos de outro homem”. O que se os nazistas impingiram a milhões de pessoas não foi humano. Não é possível usar tal adjetivo. Pode-se chamar de monstruosidade, assassínio, brutalidade. Levi com essa obra atesta a impossibilidade da metafísica.