quinta-feira, janeiro 30, 2014

Uma citação de Emil Cioran e três tirinhas de "Um sábado qualquer"

Já deixei aqui por várias vezes a minha posição - que acredito ser tergiversante - sobre a religião institucional. Simplesmente, não ponho "a minha fé" naquilo que os fiéis chamam de deus ou outra força qualquer. É uma discussão pífia, um ramerrão insuportável, o debate sobre a existência ou não existência de deus. Vejo determinadas manifestações religiosas com profundo asco. É tudo tão infantil e desmesurado. Uma violência simbólica. Um sonho, um abraçar o escuro e, que no fim, resulta numa expectativa de estabilidade espiritual, que não é nada em si.

Hoje me chegou o Breviário da Decomposição - um dos três livros que comprei desse autor -, do escritor franco-romeno Cioran.  No primeiro capítulo intitulado "Genealogia do Fanatismo", encontramos as seguintes palavras:

"Em si mesma, toda ideia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada... Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas. Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos. Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião, o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. A história não passa de um desfile". São palavras de resplandecência nietzscheneana. Aliás, Cioran era um ardoroso leitor de Nietzsche. Mais que crítica destruidora, a afirmação do filósofo nos alerta para o niilismo anti-humano da religião.

O propósito deste post, deixando de lado o clima infenso, é compartilhar as três tiras ácidas abaixo, que explicam mais do que qualquer estudo antropológico e filosófico o processo hegemônico de dominação da religião cristã. As três suscitam de forma cômica e inteligente um debate relevante. Por que o deus judaico-cristão é o único deus? Por que o cristianismo é a religião que possui mais fiéis no mundo? As tirinhas foram tiradas da página Um sábado qualquer, do Facebook. As três são geniais!

















quarta-feira, janeiro 29, 2014

G.K. Chesterton e "O homem que foi quinta-feira (um pesadelo)" - e outras coisas

Gilbert Keith Chesterton ou simplesmente G.K Chesterton foi um jornalista, teólogo, filósofo, provocador, romancista, polemista, apologeta do cristianismo, místico - ou tudo isso ao mesmo tempo. Sua figura descuidada o transformava em um cômico bonachão. Mas por trás desse muro amparentemente frágil estava um argumentador poderoso; um construtor habilidoso de paradoxos sensacionais; um grande pícaro que se desenredava com a agilidade de um acrobata de qualquer embaraço filosófico. São conhecidos seus debates públicos com sujeitos como Bernard Shaw ou H.G. Wells; este último, construtor de distopias assustadoras e ao mesmo tempo fascinantes; tais empreedimentos intelectuais de Wells com Chesterton tornaram-se um verdadeiro passatempo da vida nacional inglesa.

Era um prolífico escritor. Praticamente abordou "todos" os temas do seu tempo. Escreveu mais de cem livros. Lá no blog do Charlles, há uma resenha sobre um dos livros de Chesterton (que já comprei): A inocência do Padre Brown. Além de fazer menção à dívida do escritor argentino Jorge Luis Borges para com Chesterton, existe uma citação do autor de O livro de Areia sobre o escritor  inglês, encontrada na edição da L&PM: "A literatura é uma das formas de felicidade; talvez nenhum escritor tenha me proporcionado tantas horas felizes como Chesterton".

De Chesterton li apenas dois livros: Ortodoxia, apontado pelo mesmo Charlles e, o último, que terminei hoje, O homem que foi quinta-feira (um pesadelo). Não preciso de dizer que o estilo límpido, de uma celeridade inebriante, uma mobilidade de ações, um colorido de eventos que determinam um apego do leitor de forma incontinênti, prendeu-me até que devorasse as duzentas páginas da obra ontem e hoje. 

Caricatura de Chesterton
A história é prazerosa e repleta de lances irreais e simbólicos - um misto de suspense, mistério, romance policial e alegoria filosófico-teológica. Um policial amargurado por uma obstinação de infância, decide ingressar em uma organização supostamente criminosa de anarquistas. Sua intenção é muita clara - espicaçar os tentáculos da cepa de finórios, que cometia atentados contra a ordem com dinamites, também sendo conhecidos como "dinamiteiros". Após ter recebido o nome de Quinta-feira, passa a ser perseguido pelos membros da organização. Todavia, após ser perseguido por seis dos supostos criminosos, descobre que todos são agentes policiais disfarçados.

 
É na forma de conduzir o enredo, que percebemos a habilidade genial de Chesterton para contar uma história. Por exemplo, quando Syme (Quinta-feira) está sendo perseguido por um dos bandidos, que se transmudara em uma velha e decrépita criatura, somos conduzidos por labirintos asfixiantes. Por ruas vielas abandonadas e frias; por conduções desertas e com aspecto de desolação. Sentimos a agonia da própria personagem querendo escapar da presença do ente infernal. Para onde Syme ia, o velho amedrontador o seguia com sua bengala e sua postura de zumbi demoníaco. Até que este se revela a Syme e diz se tratar de um policial. 

Ecce Homo
O romance aborda uma série de problemas filosóficos - como já apontei. Entre eles, a obstinação que é capaz de nos cegar e nos transformar em autômatos, conduzidos para determinado desejo que, no fundo, se mostra desarrazoado; e também acerca da própria possibilidade de conhecermos alguma coisa, deixando-nos numa encruzilhada metafísica meio kantiana, meio platônica. É emblemática e salutar esta passagem do romance: 

"Mas escutem! - gritou Syme com extraordinária ênfase - Vou dizer-lhes qual é o segredo do mundo. É que do mundo só conhecemos as costas. Tudo é visto por trás, e por isso parece brutal. Isso não é uma árvore, mas as costas de uma árvore. Aquilo não é uma nuvem, mas as costas de uma nuvem. Não veem que tudo está voltado de costas e esconde o rosto? Se pudéssemos dar a volta e ficar de frente..."

Chesterton sabia contar uma história como ninguém. Possuía um controle da linguagem de forma incomum. Quem deseja ler um boa história - ou pelo menos, aprender como se constrói um bom romance - precisa ler o inglês. Ele morreu em 1936, mas deixou uma obra imorredoura que, aos poucos, começa a surgir por aqui em nosso país.

segunda-feira, janeiro 27, 2014

"Vida Querida", de Alice Munro, algumas palavras

Não é minha intenção escrever uma resenha sobre o livro Vida Querida, da canadense Alice Munro, ganhadora do Nobel de Literatura, no ano de 2013. Tampouco, fazer apontamentos no sentido de execrá-la com apupos ou dirigir-lhe encômios exagerados. Aliás, estou ouvindo o minimalismo de Philip Glass (trilha sonora do filme As Horas) e tomando um espumante ordinário - e, talvez, a música e o gosto de maçã azeda se aglutinem com o espírito do livro. 

O livro Vida Querida, editado pela Companhia das Letras, no final do ano passado, talvez, como resultado da pressão mercadológica por um novo material da laureada nobelina, parece que goza de grande prestígio por aqui - ou, pelo menos, curiosidade. Alice Munro nasceu em Ontario e uma época de profunda melancolia econômica. E, atualmente, firmou-se como uma das grandes livreiras de seu país. Já publicou quatorze ou quinze livros. O conto é a sua especialidade. Há quem a chame de "Tchekov canadense", uma referência ao escritor russo, mestre do gênero. 

O fato é que Vida Querida me deixou com uma sabor agridoce na boca. O primeiro conto me pareceu artificial em demasia. Ela criou um cenário. Riscou dois traços. Conduziu esses traços de forma sinuosa. Afastou-os um do outro. E no final, fez com que eles se encontrassem. Um excelente roteiro para uma porcaria hollywoodiana. Talvez aí resida o "esquematismo" apontado pelo Aguinaldo, que afirmou que o livro, comparado a outros da autora "deixa a desejar". Todavia, a partir do segundo conto, peguei gosto pelo livro. As histórias se passam, a maioria, no período da Segunda Grande Guerra e podem ser compreendidas no intervalo que vai de 1940 a 1960. Estão ambientadas no interior do Canadá. É constante a referência a cidadelas; vilarejos; rios cristalinos e matizados pela luz do sol. 

Ela consegue descrever detalhes, minudências, e esboçar a vida psicológica de personagens com bastante habilidade. Seu texto não me pareceu complexo. É simples. Todavia, não é simplista. Sua habilidade em se ater a detalhes da vida, faz com que os seus contos, pelo menos nesse Vida Querida, estejam repletos, de paisagens psicológicas. Isso é positivo. Pois cria surpresas. Prende o leitor. Dar-lhe motivos para entusiasmos com o seu texto.

O livro é dividido em duas partes: encontramos na primeira dez contos, sendo que alguns me pareceram de ótima qualidade. Poderia apontar Trem e Com vista para o lago. Na segunda parte, temos o "Finale" com quatro narrativas ou paisagens da memória da própria autora. Ao meu modo de ver, um dos melhores momentos do livro. Tudo me pareceu imensamente nostálgico. Ela mesma diz na explicação que abre os textos: [...] "Acredito que eles [os textos] sejam as primeiras e as últimas - e as mais íntimas - coisas que eu tenho a dizer sobre a minha vida".

O leitor que talvez não tenho lido outros livros de Alice Munro - meu caso - e tenha tido acesso apenas a esse Vida Querida, pode incorrer em julgamentos sobre a capacidade da escritora. Poderia perguntar: "Será que não há outra autor(a) para ganhar o Nobel?" A obra exagera nos encontros casuais; na memórias dos acontecimentos e nos impele a julgar as obviedades da narrativa. Mas, o livro tem o sabor do "descompromisso", a leveza minimalista de paisagens rurais; o sabor e o cheiro de tempos pretéritos; de eventos que se cristalizaram e se transformaram em matéria para nos fazer lembrar o quanto a vida pode ser boa, querida. Penso que tenha sido isso que Munro quis nos transmitir com o seu livro.

P.S. Epa! Acho que saiu alguma coisa "próxima" de uma resenha.

domingo, janeiro 26, 2014

Vida no movimento silencioso de Rino Stefano Tagliafierro



Vi hoje cedo este enigmático vídeo e fiquei alguns instantes a refleti-lo. Rino Stefano Tagliafierro "sugere" determinados movimentos àqueles quadros consagrados pela história da arte. Há pinturas de Cornelius von Max, Rembrandt, Bouguereau, Caravaggio, Roberto Ferri, Pagliei, Falero, Thomas Hill, James Sant, Asher Brown Durand, Tanoux, Andrea Vaccaro, Guido Reni, Johannes Vermeer, Théodore Géricault, Rubens, etc. Com música de Enrico Ascoli, o vídeo imprime uma cadência misteriosa àquilo que tentamos enxergar quando contemplamos estes quadros. É como se Tagliafierro antecipasse a nossa visão. Excelente! Para ser ver muitas vezes.




sexta-feira, janeiro 24, 2014

Os rolezinhos nos acusam: somos uma sociedade injusta e segregacionista - por Leonardo Boff

Excelente texto! Vale ser compartilhado para os possíveis leitores incidentais que surgirem por aqui.

O fenômeno dos centenas de rolezinhos que ocuparam shoppings centers no Rio e em  São Paulo suscitou as mais disparatadas interpretações. Algumas, dos acólitos da sociedade neoliberal do consumo que identificam cidadania com capacidade de consumir, geralmente nos jornalões da mídia comercial, nem merecem consideração. São de uma indigência analítica de fazer vergonha.

Mas houve outras análises que foram ao cerne da questão como a do jornalista Mauro Santayana do JB on-line e as de três  especialistas que avaliaram a irrupção dos rolês na visibilidade pública e o elemento explosivo que contém. Refiro-me à Valquíria Padilha, professora de sociologia na USP de Ribeirão Preto:”Shopping Center: a catedral das mercadorias”(Boitempo 2006), ao sociólogo da Universidade Federal de Juiz de Fora, Jessé Souza,”Ralé brasileira: quem é e como vive (UFMG 2009) e  de Rosa Pinheiro Machado, cientista social com um artigo”Etnografia do Rolezinho”no Zero Hora de 18/1/2014. Os três deram entrevistas esclarecedoras. Eu por minha parte interpreto da seguinte forma tal irrupção:

Em primeiro lugar, são jovens pobres, das grandes periferias,  sem espaços de lazer e de cultura, penalizados por serviços públicos ausentes ou muito ruins como saúde, escola, infra-estrutura sanitária, transporte, lazer e segurança. Veem televisão cujas propagandas os seduzem para um consumo que nunca vão poder realizar. E sabem manejar computadores e entrar nas redes sociais para articular encontros. Seria ridículo exigir deles que teoricamente tematizem sua insatisfação. Mas sentem na pele o quanto nossa sociedade é malvada porque exclui, despreza e mantém os filhos e filhas da pobreza na invisibilidade forçada. O que se esconde por trás de sua irrupção? O fato de não serem incluidos no contrato social. Não adianta termos uma “constituição cidadã” que neste aspecto é apenas retórica, pois  implementou muito pouco do que prometeu em vista da inclusão social. Eles estão fora, não contam, nem sequer servem de carvão  para o consumo de nossa fábrica social (Darcy Ribeiro). Estar incluído no contrato social significa ver garantidos os serviços básicos: saúde, educação, moradia, transporte, cultura, lazer e segurança. Quase nada disso funciona nas periferias. O que eles estão dizendo com suas penetrações nos bunkers do consumo? “Oia nóis na fita”; “nois não tamo parado”;”nóis tamo aqui para zoar”(incomodar). Eles estão com seu comportamento rompendo as barreiras do aparheid social. É uma denúncia de um país altamente injusto (eticamente), dos mais desiguais do mundo (socialmente), organizado sobre um grave pecado social pois contradiz o  projeto de Deus (teologicamente). Nossa sociedade é conservadora e nossas elites altamente insensíveis  à paixão de seus semelhantes e por isso cínicas. Continuamos uma Belíndia: uma Bélgica rica dentro de uma India pobre. Tudo isso os rolezinhos denunciam, por atos e menos por palavras.

Em segundo lugar,  eles denunciam a nossa maior chaga: a desigualdade social cujo verdadeiro nome é injustiça histórica e social. Releva, no entanto, constatar que com as políticas sociais do governo do PT a desigualdade diminiui, pois segundo o IPEA os 10% mais pobres tiveram entre 2001-2011 um crescimento de renda acumulado de 91,2% enquanto a parte mais rica cresceu 16,6%. Mas esta diferença não atingiu a raíz do problema pois o que supera a desigualdade é uma infraestrutura social de saúde, escola, transporte, cultura e lazer que funcione e acessível a todos. Não é suficiente transferir renda; tem que criar oportunidades e oferecer serviços, coisa que não foi o foco principal no Ministério de Desenvolvimento Social. O “Atlas da Exclusão Social” de Márcio Poschmann (Cortez 2004) nos mostra que há cerca de 60 milhões de famílias,  das quais cinco mil famílias extensas detém 45% da riqueza nacional. Democracia sem igualdade, que é seu pressuposto, é farsa e retórica. Os rolezinhos denunciam essa contradição. Eles entram no “paraíso das mercadorias” vistas virtualmente na TV para vê-las realmente e senti-las nas mãos. Eis o sacrilégio insuportável pelos donos do shoppings. Eles não sabem dialogar, chamam logo a polícia para bater e fecham as portas a esses bárbaros. Sim, bem o viu T.Todorov em seu livro “Os novos bárbaros”: os marginalizados do mundo inteiro estão saindo da margem e indo rumo ao centro para suscitar a má consciência dos “consumidores felizes” e lhes dizer: esta ordem é ordem na desordem. Ela os faz frustrados e infelizes, tomados de medo, medo dos próprios semelhantes que somos nós.

Por fim, os rolezinhos não querem apenas consumir. Não são animaizinhos famintos. Eles tem fome sim, mas fome de reconhecimento, de acolhida na sociedade, de lazer, de cultura e de mostrar o que sabem: cantar, dançar, criar poemas críticos, celebrar a convivência humana. E querem trabalhar para ganhar sua vida. Tudo isso lhes é negado, porque, por serem pobres, negros, mestiços sem olhos azuis e cabelos loiros, são desprezados e mantidos longe, na margem.

Esse tipo de sociedade pode ser chamada ainda de humana e civilizada? Ou é uma forma travestida de barbárie? Esta última lhe convem mais. Os rolezinhos mexeram numa pedra que começou a rolar. Só parará se houver mudanças.

Daqui

quarta-feira, janeiro 22, 2014

"Crimes e Pecados", de Woody Allen - um tratado sobre o comportamento humano

Vi ontem, com um olho aberto e outro e outro fechado, em decorrência do sono, o ótimo filme Crimes e Pecados, de Woody Allen. Assisti a esse filme sempre foi uma luta (risos!). Iniciei várias vezes e nunca terminei. Desejei, da última vez, iniciar e finalizar. O filme é imensamente agradável. Está dentro do gênero comédia, mas, ao fim, percebemos que se trata de uma tragicomédia, com forte sabor filosófico.

Crimes e Pecados constrói uma tese cristã sobre os homens: todos os homens são culpados; todos os homens cometem crimes morais e, por isso, são pecadores. Os personagens centrais possuem máculas em sua personalidade ou cometem delitos privados, omitidos na vida pública. O oftalmologista bem-sucedido, dono de uma aparente reputação ilibada; pai de família exemplar; segue um fluxo amplo nas relações sociais, mas acoberta um adultério. E quando a amante ameaça trazer o romance proibido à tona, ele decide matá-la. Depois, se ver acometido pelo remorso e pela culpa, já que descendia de forte educação judaica. E segundo seu pai, "Deus retribuirá com um prêmio ao homem bom e com o castigo o homem mal". 
Judah Rosenthal (Martin Landau) e Dolores Paley (Anjelica Huston
 Halley Reed (Mia Farrow), que aparenta ser um oceano de recato moral, acaba casando com Lester (Alan Alda), simplesmente, por interesse. Cliff Stern (Woody Allen), apesar de parecer um sujeito aparvalhado, por certo momento, decide trair a esposa com a companheira de profissão, Halley Reed. Queria levar à frente o romance, mas se ver impedido pela deferência da moça. Até mesmo a esposa de Cliff, nas cenas finais do filme, diz ao irmão Lester que havia conhecido uma pessoa. Ou seja, a consumação de mais um adultério. Claro, as minhas descrições ficam apenas no campo do imediatismo, sem esboçar contundentemente a gama complexa trabalhada no filme.

Cliff Stern (Woody Allen) e Halley Reed (Mia Farrow)
Frase lapidar é enunciada pelo personagem de Woody Allen: "Nós somos a soma de nossas decisões". Entendo que essa frase possua metade do devir pela qual somos acometidos. Ela é verdadeira. Mas entendo que não são apenas as nossas decisões que fazem cada um de nós. Somos resultado de conjunturas sociais, culturais etc. Mas, por sua vez, o que Cliff quer dizer é que muitas das decisões que tomamos acabam por trazer consequências e que nos colocam em caminhos que definem a nossa existência. Escolher uma estrada é optar, também, não caminhar por outra estrada. E os fatos e relações que estão presentes na estrada que decidi caminhar, criam ramificações que vão trazendo consequências e se instauram como fios tentaculares. Tais eventos acabam gerando fatos que estão para além do nosso controle, como acontece, por exemplo, com o oftalmologista a qual citei acima.

Nossas decisões encerram premissas morais. A tese do filme é pessimista em excesso - e porque não dizer niilista? Ou seja, todos os homens são corruptos ou passíveis de corrupção. Isso me faz lembrar uma passagem bíblica: "O homem pode prevaricar até por um pedaço de pão" (Pv 28.21). Uma das definições para "prevaricar", segundo o Aurélio, é "torcer a justiça", "faltar ao dever", dando a entender que se trata de algo que encerra um elemento moral. Nesse sentido, Crimes e Pecados confirma essa afirmação reputada a Salomão.

Excelente filme! Vale a recomendação.

O filme pode ser visto no Youtube.

terça-feira, janeiro 21, 2014

"Ninfomaníaca, Volume I" - de Trier - ainda penso...

Na sexta-feira, dia 10 de janeiro, quando fiquei sabendo da estreia do mais novo filme de Lars Von Trier - Ninfomaníaca  - Volume I (2013) - fiquei com uma vontade imensa de ir ao cinema. Infelizmente, não pude ir naquele dia, pois chegara de Pirenópolis-GO e estava arrumando as malas para partir, no outro dia, para o Nordeste. Cheguei de Pernambuco no domingo, dia 19, e fomentei para o outro dia a possibilidade de ir ver o filme. E assim fiz numa sofreguidão incrível.

Tratava-se de um filme de Trier. O diretor dinamarquês é daqueles sujeitos talentosos e sabem vender bem a imagem que possui. Megalomaníaco em excesso, Trier já foi responsável por afirmações que, no final, sabemos, resulta em ganhos mercadológicos. Em 2009, por exemplo, no Festival de Cannes, afirmou ser o melhor diretor do mundo. E, talvez, até o seja! Estamos em uma época em que o cinema anda em um marasmo terrível com aquelas porcarias vindas de Hollywood.

Trier é um sujeito que sabe usar explorar bem isso. Tem sido assim com seus últimos dois filmes - O Anticristo (2009) e Melancolia (2011). O simples fato de ser um filme de Trier já desperta a curiosidade e aí temos a tese confirmada. Não sabemos ao certo se Trier é um artista erguido pelas qualidades geniais ou pelo mero marketing. Suas pretensões são, quiçá, de deixar o seu nome na história como um Bergman ou Tarkovsky. Mas, claro, trata-se de especulação. 

Após ter visto Ninfomaníaca, ainda continuo pensando que sua grande obra é Dogville (2003), cuja análise sobre a natureza humana e beleza estética estão longe de serem superadas por qualquer filme lançado neste século XXI. Em Ninfomaníaca, o diretor busca criar uma tese moral e usa como ingrediente o sexo, assim como alguém usa açúcar para atrair formigas. Falar sobre sexo na sociedade judaico-cristã ocidental é gerar dois sentimentos, no mínimo: (1) ou de interesse voyeurista; (2) condenação afetada pelo julgamento moralista.

Trier é sabedor dessa estratégia e busca com isso gerar estupefação na audiência. Percebi isso enquanto via o filme. Pelos menos três casais saíram da sala do cinema. Quero crer que se trate de uma fenômeno isolado. Todavia, analisando os recursos cinematográficos utilizados pelo diretor, notei que em dados momentos as cenas vão gerando uma "agonia", um "enjoo" filosófico. É como se ele tivesse por intenção provocar o espectador; mexer com suas veleidades morais; afrontá-lo em suas convenções de burguês-cristão.

Ninfomaníca - Volume I, pelo menos para mim, não causou impacto profundo como causou o já aludido Dogville ou Dançando no Escuro (2000), ambos de grande beleza plástica. O que Trier buscou insinuar com a Ninfomaníaca? O sexo é mau? Buscou criar sofisticação com um tema-tabu para a sociedade ocidental e com isso aumentar a audiência para a sua obra? Quis justificar seus próprios problemas pessoais? O filme confirma a tese de que Trier é alguém com ideias muito bem definidas do ponto de vista das especulações.

Penso que Ninfomaníca, desde 2000, tenha sido o filme mais fraco de Trier. A tentativa de fazer um estudo (psicanalítico? moralista? metafísico?) sobre a vida da personagem Joe, vivida por Charlotte Gainsbourg (sempre presente nos filmes do diretor) e a estreante Stacy Martin (que faz Joe ainda jovem), não se mostrou convicente. Percebi algo cuja finalidade é uma tentativa de pirotecnia com um tema sempre polêmico quando vem à baila - sexo. Outro fato é a tentativa de associar a "catedral numérica" na tentativa de encontrar a perfeição de Deus da música de Bach, a fatos relacionados com a vida da personagem. Isso é corriqueiro em Trier.

Talvez, aquilo que ainda não foi revelado em sua efetividade fique claro na segunda parte do filme, já que a obra foi separada em duas partes. Originalmente possui mais de cinco horas, mas essa extensão será exibida somente nas salas de festivais.

Tratam-se de impressões pessoais e aqui estão as minhas: rápidas e descuidadas!

sábado, janeiro 04, 2014

Tudo russo.

Dmitri Shostakovich
Adoro a força marcial das obras dos compositores russos - principalmente de Tchaikovsky e da inquietação existencial de Shostakovich. Há uma angústia, uma senso trágico nesses trabalhos; uma evocação da desolação; um flerte macabro com a dor; um cinzel que estilhaça a esperança e desfralda a bandeira da agonia. Tudo urdido por meio da força. A orquestra a avolumar o paroxismo dos saracoteios espasmódicos da desolação. Afinal, de onde vem esse vagido de agonia? É só observar essa desolação, esse dia escuro nas obras de Shostakovich, Tchaikovsky, Korsakov ou Glazunov. Quando não há a angústia, existe a força; quando não existe a força, existe um devaneio impregnado de aflição. E, às vezes, as tudo está vincado, justaposto, abraçado.

Piotr Ilitch Tchaikovsky

É só observar, por exemplo, a força presente na Marcha Eslava, de Tchaikovsky; ou na fúria irônica e cínica do Concerto para cello de Shostakovich; ou ainda na beleza trágica da Abertura Romeu e Julieta, Tchaikovsky; ou na desolação acabrunhante do Concerto para violino, Shostakovich. Obras não faltam - as sinfonias e os quartetos de cordas de Shostakovich; a maravilhosa Sinfonia Patética de Tchaikovsky; as obras ululantes de melancolia de Glazunov; a energia metalizada de Rymsky-Korsakov etc

E isso não está presente apenas na música. Está espargido na literatura - Dostoiévsky, Tolstói, Gogol, Maikovsky, etc.Mas isso já é outra história.

Adora a alma russa.

Tchaikovsky, Marche Slave Op.31 Evgeni Svetlanov


Tchaikovsky, Romeo e Juliet, Gergiev, London Symphony Orchestra

Shostakovich: Cello Concerto n.1 op.107 - Mischa Maisky - 1st mvt.

David Oistrakh "Violin Concerto No 1" Shostakovich

quinta-feira, janeiro 02, 2014

Alguns devaneios e um livro de Paul Tillich - "História do pensamento cristão"

Paul Tillich
Sempre fui religioso. Durante muito tempo, o medo e a culpa foram as minhas principais religiões. Fiz minhas preces. Li a Bíblia quatro ou cinco vezes. Frequentei igreja. Elaborei prédicas. Semeei esperanças e julgamentos. Tudo em nome de um dogma. Estudei em um seminário. Formei-me em teologia. Perscrutei como são as entranhas da religião. Senti o cheiro de seus órgãos. Como são estruturados os seus tecidos. A régua de cálculo é a teologia. É com ela que se mede os espaços; que se estabelece aquilo que é certo ou errado. A religião é, por natureza, dicotômica. Ela não existe sem um "sim" e sem um "não". Ou seja, ela não consegue existir sem a ideia de "bem" e sem a ideia de "mal". De "bem" se chama aquilo que está harmonizado com os ditames do dogma; de "mal" se chama aquilo que não está de acordo com as sentenças do dogma.

Analisando friamente a história da evolução do homem, chegamos a conclusões desconcertantes. Tudo está na história. Ela explica o presente. A questão essencial passa a existir quando negligenciamos a análise dos processos históricos. O mundo sempre foi o mesmo? Os antigos não estruturaram as nossas consciências? A resposta para as certezas do presente não estariam no passado? 

Hoje temos a tecnologia por todos os lados. Ela nos pervade. Estamos tão acostumados a ela, que achamos estranho quando ficamos sem nosso celular ou sem acessar a rede mundial de computadores; ou quando a energia elétrica tem o fornecimento prejudicado. Acostuma-nos às informações. Quando queremos saber algo vamos ao Google. Lá encontramos todas as respostas. Tudo é tão óbvio. A medicina caminha a passos largos. Conseguimos coibir boa parte da enfermidades que eram capazes de dizimar populações inteiras.  Temos ressonâncias computadorizadas sofisticadíssimas. Enxergamos, hoje, o núcleo essencial da vida. Mapeamos geneticamente o DNA. Vimos que não estamos distantes dos outros seres do ponto de vista genético. Existe um nível de parentesco muito grande - principalmente, com os primatas. Podemos escolher o sexo, a cor dos olhos, do cabelo das crianças.

Sören Kierkegaard

Mas tudo foi assim? E quando queríamos entender essas coisas e não tínhamos um aparato científico tão desenvolvido? É, justamente, aí que entra a religião. Ela foi a primeira forma de explicação. Os mitos surgiram como forma de explicar a materialidade. Os antigos, simplesmente, disseram: "É vontade dos deuses!" Era a forma de construir diques contra o caos de uma existência fincada no nada. Em momentos de solidão, de agonia, de dor, o melhor remédio é saber que não se está sozinho. Daí, ao se criar um "ser invisível", "onipotente", "onipresente", que vigia e guarda os nossos desejos, passamos a experimentar uma estabilidade psicológica. Feuerbach, filósofo alemão do século XIX, costumava dizer que religião é "antropologia". Eu diria, também, que religião é "psicologia". Tudo é resultado de uma consciência depositada em receptáculo onipotente (deus), que passa a guardar, salvar, premiar, privilegiar e explicar a totalidade do universo. 

O crente encontra tudo o que ele procura em sua fé. Ela explica tudo. Tire-se a fé e ele tem as suas estruturas psicológicas abaladas. Todavia, ele não sabe que tudo está em nós. Ou seja, a religião revela intimidade do próprio homem. Seus medos. Inseguranças. Seus desejos velados. Sua necessidade de justiça ante a injustiça. Sua vingança contra os cataclismos de um mundo desordenado. É a saudade sentida por algo que ele nunca experimentou, que se transforma em torrente psicológica quando ele verbaliza para um ente invisível. Deus é o próprio homem querendo achar a si mesmo na noite escura da alma. 

Ocorreram-me esses devaneios, depois que li o livro História do Pensamento Cristão, de Paul Tillich, um dos maiores teólogos da história do cristianismo protestante. Tillich era polonês e após ter participado da Primeira Guerra Mundial teve as suas percepções sobre o ser humano e a história completamente alterados. Por ter vivenciado as agruras da guerra como capelão, observou o quanto o ser humano é habitado por uma torpeza absurda. Abraçou uma epistemologia existencialista. Kierkegaard é um dos progenitores do seu pensamento. Leciounou teologia em um seminário que tinha nomes como Heidegger e Rudolf Bulltmann. E a partir desse entendimento buscou trazer lampejos de esperança ao homem do século XX. A desolação de uma época fundada na desesperança fez com que Tillich construísse uma teologia que respondia a um questionamento: "Onde está Deus em meio a tudo isso? Onde achar esperança?" E Tillich respondia: "A mensagem de esperança está escondida em ti. Deus é um evento relativo que está escondido em ti mesmo, ó homem do caos". 
 
A mensagem, necessarimente relevante, é aquela que responde a uma necessidade pessoal. A religião fica nua, sem os seus dogmas, sem as suas folhagens; sem seus códigos construídos pelos "eminentes" teólogos. Ou seja, a filosofia passa a está à frente da fé. Não é a fé que, agostianamente, dita o que é certo ou errado em matéria de crença, mas a existência que determina o ser ou não-ser.  Poderia dizer que é um quase tomismo sem o método escolástico. 

O livro de Tillich solidificou uma desconfiança que há muito me acompanhava. Vi como os dogmas do cristianismo, as polêmicas e o pensamento hegemônico se consolidaram. O mundo que está aí foi montado por alguém. E essa deve ser a premissa. Ora, quem "construiu" os dogmas do cristianismo? Por que se crer desse jeito e não de outro? Por que o mundo ocidental é cristão e não politeísta ou não se tem uma fé gnóstica? Por que se crer na trindade? Esse conceito sempre existiu? A dupla natureza de Cristo é algo que sempre foi acreditado dessa forma? E os livros bíblicos ditos sagrados, quem os tornou "santos"? E o dogma do pecado original? 

São questões que devem ser respondidas com máxima urgência. Quando se olha para a história, nota-se que determinados sujeitos construíram esses conceitos. Os concílios fomentaram aquilo que se deveria crer e aquilo que não se deveria crer. Ou seja, o mundo ocidental acredita naquilo que foi construído pela institucionalização de um movimento. A cultura hegemônica de um povo tornou-se a referência absoluta incomparável. Gramsci afirma de forma lapidar sobre esse tema: 

Antonio Gramsci
"(...) A história da filosofia, como é comumente entendida, isto é, como história das filosofias e dos filósofos, é a história das tentativas e das iniciativas ideológicas de uma determinada classe de pessoas para mudar, corrigir e aperfeiçoar as concepções do mundo existentes em todas as épocas determinadas e para mudar, portanto, as normas de conduta que lhes são relativas e adequadas, ou seja, para mudar a atividade prática em seu conjunto"
"A filosofia de uma época não é filosofia deste ou daquele filósofo, deste ou daquele grupo de intelectuais, desta ou daquela grande parcela das massas populares: é uma combinação de todos estes elementos, culminando em uma determinada direção, na qual sua culminação torna-se norma de ação coletiva, isto é, torna-se "história" concreta e completa (integral)". 
"A filosofia de uma época histórica, portanto, não é senão a história desta mesma época, não é senão a massa de variações que o grupo dirigente conseguiu determinar na realidade precedente: neste sentido, história e filosofia são inseparáveis, formam um "bloco". (GRAMSCI, 1981, p.32).

Assim, nota-se que a construção de determinada massa ideológica ou determinado força filosófica hegemônica se dá em determinado momento histórico pelo grupo majoritário, pelo jogo de interesses do grupo dominante. Os dogmas ou os sentidos da fé são resultado da força da Igreja que açambarcou a estrutura do Estado romano e se tornou a força ideológica totalizante. Os filósofos, teólogos, são, simplesmente, debatedores de uma dogma criado superestrutura que tinha a Igreja como força oficial. Ou seja, debatiam o status quo filosófico.

O livro do Tillich é relevante. Ele faz um passeio pela história. Discute o pensamento de cada filósofo e as querelas suscitadas pelas filosofias de cada um deles. Boa parte do livro é dedicado a discutir o pensamento teológico e filosófico dos primeiros séculos da era cristã. Explica os principais movimentos filosóficos religiosos que faziam parte do background dos mundos grego e romano e que foram extirpados pelo cristianismo. Teólogos importantes como Pelágio, Orígenes, Filo de Alexandria, Ário, Sabélio, tiveram seus pensamentos colocados na marginalidade pela força oficial da Igreja. As cidades importantes que fomentaram importantes debates - Alexandria, Antioquia, Bizâncio, Calcedônia.

Discute os principais nomes da filosofia e da teologia medieval - Tomás de Aquino, Abelardo, Bernardo de Claraval, Joaquin de Fiori, Anselmo, Guilherme de Ockham, Meister Eckhart. Discute os principais dogmas da Reforma e da Contra-Reforma. Discute, em seguida, o movimento escolástico protestante e o iluminismo. O livro é excelente para quem quiser conhecer profunda e filosoficamente como a fé ocidental está estruturada. O livro, na verdade, é resultado das aulas de Tillich dadas no período em que ele morou nos Estados Unidos.

Tinha o livro desde 2007 e li no final de dezembro último. O interesse foi tão salutar que comprei o outro livro do teólogo (Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX), em que Tillich aborda a filosofia e a teologia dos séculos XIX e XX. Consegui-o em um sebo de Goiânia pela bagatela de vinte e um reais. Está novinho em folha.

GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. Civilização Brasileira. trad. Carlos Nelson Coutinho, São Paulo. 1981, pp. 341

TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. ASTE. São Paulo. 2004, pp. 293