segunda-feira, janeiro 30, 2012

Anotações sobre Anton Tchékhov

Achei o texto bastante pertinente. Resolvi postá-lo por conta disso. Foi extraído do jornal Sul 21 e escrito por Milton Ribeiro. O texto trata sobre um dos maiores escritores russos de todos os tempos (e por quê não dizer da literatura ocidental?)





Anton Tchekhov e Liev Tolstói

Milton Ribeiro

É curiosa a celebridade póstuma alcançada por Anton Tchékhov. Seja na Rússia ou em qualquer lugar do mundo, o escritor está cada vez mais próximo do nível de semideuses de Dostoiévski e Tolstói, só para ficar entre seus conterrâneos. É justo. Não há uma “grande obra” do autor, mas o numeroso mosaico formado por seus contos, peças teatrais e novelas merece lugar entre as maiores da literatura ocidental.

O fascínio de nossa contemporaneidade com o escritor russo não é casual: o realismo, a clareza, o humor, a leveza, a abordagem compreensiva dos personagens, a pouca ênfase a coisas que outros escreveriam cheios de exclamações — ele parece dizer: não te ajudarei, descubra sozinho o que há de importante aqui — , a imaginação para criar cenas e situações significantes, sua visão sem ilusões do amor e a total falta de preconceitos não apenas o permitia transitar por toda a sociedade russa do século XIX como permite que o mesmo aconteça entre os leitores de hoje. Talvez ele não fale a todos da mesma forma, mas há um fato comum citado por vários ensaístas: ele é uma leitura inteligente cuja presença e essência é amiga e irônica. Ou seja, ele vicia.


Tchékhov viveu apenas 44 anos e era médico. Até os 26 anos, publicou 300 histórias em jornais russos, quase todas cômicas. Vivendo em Moscou, era obscuro. Porém, sem que soubesse, estava tornando-se famoso em São Petersburgo, onde tinha numerosos leitores. Isto perdurou até o dia em que recebeu uma carta do severíssimo crítico Grigorovitch:

Os atributos variados de seu indiscutível talento, a verdade de suas análises psicológicas, a maestria de suas descrições (…) deram-me a convicção de que está destinado a criar obras admiráveis e verdadeiramente artísticas. E o senhor se tornará culpado de um grande pecado moral, se não corresponder a estas esperanças. O que lhe falta é estima por este talento, tão raramente conhecido por um ser humano. Pare de escrever depressa demais…

Tchékhov mudou e, sem perder a graça e a leveza mozartiana de seu texto, tornou-se realista. O novo estilo custou-lhe violentas críticas, que acusavam seu “mau gosto” e a utilização de “detalhes sujos e grosseiros”. Ele respondeu: “Pensar que a literatura tem como finalidade descobrir as pérolas e mostrá-las livres de qualquer impureza, equivale a rejeitá-la.”


Rubens Figueiredo, tradutor e prefaciador de O Assassinato e outras histórias faz importantes observações sobre Tchékhov:

No ambiente intelectual russo, o debate só parecia fazer sentido quando tomava formas extremadas. A fama crescente de Tchékhov e a expectativa em torno de seus textos obrigaram-no a defender-se dos mal-entendidos, cada vez mais numerosos.

Os leitores russos se haviam acostumado a tomar os escritores como campeões de credos políticos e religiosos mas, no caso de Tchékhov, esbarravam em textos obstinadamente inconclusivos. Mais grave ainda, suas entrelinhas pareciam indicar que tanto as grandes sínteses intelectuais quanto os padrões de pensamento herdados pelos costumes serviam antes para encobrir a realidade.

O desconcertante é que Tchékhov consegue munir sua prosa de uma sutileza capaz de sugerir outras camadas de experiência, como se a realidade nunca se esgotasse.

E, mais desconcertante para a época:

Para Tchékhov, a religião era moralmente indiferente. Ou seja, a crença, seus conceitos, seus símbolos e rituais eram ineficazes para deter a crueldade e o egoísmo, mas tampouco constituíam suas causas.

E o próprio Tchekhov escreveu, demosntrando uma posição absolutamente moderna, a do escritor que se nega a proferir “verdades”:

Não cabe ao escritor a solução de problemas como Deus ou o pessimismo; seu trabalho consiste em registrar quem, em que circunstâncias, disse ou pensou sobre Deus e o pessimismo.


Indicações de leitura

Há muitos livros de Tchékhov para serem indicados. Como ele era contista, novelista e dramaturgo, há muitas coletâneas e, nelas, muitos contos e novelas repetidas. Vamos começar pelas peças teatrais: As Três Irmãs, A Gaivota, Tio Vânia e O Jardim das Cerejeiras são tão extraordinárias que prescindem dos atores e podem ser lidas como uma novela de diálogos. O extraordinário A Enfermaria Nº 6 está em vários livros, assim como os contos Inimigos, A Dama do Cachorrinho e um conto clássico que os tradutores deveriam reunir-se a fim de estabelecer um nome, pois ele pode se chamar Queridinha aqui, O Coração de Olenka ali, Dô-doce (?) acolá, assim como Amorzinho ou qualquer outra coisa.

A novela A Estepe, curta e genial, narra a viagem de uma criança como uma metáfora da viagem que atravessamos sem saber porque e para quê. A impressão estranha que a novela causa é semelhante a causada pelo filme Olhos Negros de Nikita Mikhálkov, em que Mastroianni recorda “as névoas da Rússia num passeio de carruagem, na infância, há muito tempo”.

O melhor livro talvez seja uma tradução dos contos feita por Bóris Schnaidermann:

A Dama do Cachorrinho e outros contos. Editado primeiro pela Civilização Brasileira, depois pela Max Limonad e finalmentye para Editora 34.

Outros livros:

Contos e Novelas. Edições Ráduga (Moscou). 1987. Um primor de tradução para o português realizada por Andrei Melnikov.
O Assassinato e outras histórias. Cosac & Naify. 2002. Trad. de Rubens Figueiredo.
O Beijo e outras histórias. Círculo do Livro. 1978. Trad. de Bóris Schnaidermann.
A Enfermaria Nº 6 e outros contos. Editorial Verbo. 1972. Trad. de Maria Luísa Anahory.
Os mais brilhantes contos de Tchekhov. Edições de Ouro. 1978. Trad. de Tatiana Belinky.
Lenco Tchékhov. Ensaio e Contos. Ediouro. 2004. Trad.de Tatiana Belinky.

Filmes: há dois esplêndidos filmes de Nikita Mikhálkov baseados “em qualquer coisa de Tchékhov” (palavras do próprio diretor e roteirista): Peça Inacabada para Piano Mecânico (1977) e o famoso Olhos Negros (1987) com Marcello Mastroianni detonando no papel principal atrás da Dama do Cachorrinho.


A opinião de Tolstói

Os personagens de Tchékhov são cheios de boas intenções sobrecarregadas de estupidez, inatividade e finalidade. Tchekhov é moderno em sua concisão, pouca adjetivação e principalmente na recusa em explicar o mundo. Confrontado com as idéias de Tolstói — o qual em seus textos parece ter resolvido todos os impasses da humanidade — , Tchékhov era um apresentador de realidades complexas e insolúveis que habitam uma dentro da outra. Também defendia, uma novidade na época, os efeitos benéficos da ciência e do progresso. Porém, apesar de totalmente diferente, Tolstói apreciava muito sua obra.

Em vida, Anton Tchékhov era razoavelmente conhecido, mas não era uma celebridade. Após sua morte, Tolstói disse: “Creio que Tchékhov criou novas — absolutamente novas — formas de literatura que não encontrei em parte alguma. Deixando de lado falsas modéstias, afirmo que Tchékhov está muito acima de mim”.

Naquele tempo, os contemporâneos não deram atenção a esta opinião. Pensavam que o conde já idoso estava a superestimar o amigo, atribuindo-lhe características acima das que merecia. Passados cem anos, vemos agora que Tolstói não estava tão equivocado. Atualmente, na Rússia, Anton Tchékhov encontra-se ao lado dos grandes clássicos: Púchkin, Gogol, Dostoiévski e Tolstói. E, como dramaturgo, está entre os mais célebres e montados autores mundiais.

As mortes de Tchékhov

Anton Pavlovitch Tchekhov sentou-se na cama e de maneira significativa disse, em voz alta e em alemão: ´Ich sterbe´ – estou morrendo. Depois, segurou o copo, voltou-se para mim, sorriu seu maravilhoso sorriso e disse: ´Faz muito tempo que não bebo champanhe´. Bebeu todo o copo, estendeu-se em silêncio e, instantes depois, calou-se para sempre. E a pavorosa calma da noite foi apenas alterada por um estampido terrível: a rolha da garrafa não terminada voou longe.

Olga Knipper, esposa de Anton Tchékhov.

A morte de Tchékhov no balneário de Badenweiler é uma das mais recontadas da historia da literatura. Parece haver enorme sedução na cena do escritor moribundo, sua mulher, seu médico, o estudante que chegou para ajudar e a garrafa de champanhe. Quem pediu a bebida? O médico ou Tchékhov? A sedução é tanta que o grande Raymond Carver escreveu um conto, Três rosas amarelas, no qual narra a cena, só que cheia de detalhes inventados. Talvez isso tenha nascido da narrativa de Olga Knipper, atriz e mulher do escritor. Em seu relato, a cena é contada com tanto, mas tanto romantismo que não parece verdadeira. O cômico sobre sua morte é que a prórpia Olga narrou a morte do marido várias vezes. De forma sempre diversa…

Faz pouco mais de 100 anos que o fato narrado ocorreu. Tchékhov faleceu em 15 de julho de 1904 em Badenweiler, Alemanha. Tinha nascido em 29 de janeiro de 1860.

sábado, janeiro 28, 2012

Memórias - os itinerários do tempo (IV)

Atrapalhava-me perceber que um ato às vezes determinava punição, outras vezes não determinava. Impossível orientar-me, estabelecer norma razoável de procedimento.

Graciliano Ramos, in Infância, p. 89

O povo nordestino é conhecido pela sua natural compreensão acerca do machismo. Machista é aquele indivíduo que adquiriu modos de macho, de machão, que salienta e se orgulha da masculidade. Estes são conceitos que estão amalgamados no interior do povo nordestino. Este é um ponto importante na forma como se vê e interpreta o mundo. Quem nasceu no nordeste e foi criado no ambiente rural, traz em si um pouco desta mancha.

Meu pai e meus avôs estavam dentro desta cultura do macho. Desde cedo somos ensinados a respeitarmos os mais velhos. Menino não deveria se intrometer na conversa de pessoas mais velhas. Quando um adulto estivesse conversando e uma criança decidisse dar uma opinião, era repreendido por olhadelas consumidoras, que afirmavam informações repressoras inteiras. Menino que era menino tinha que saber o seu lugar. A obediência estava vinculada mais ao medo do castigo, do que o respeito que nascia da consciência. Lembro-me que era necessário dar benção aos mais velhos. Ao chegar a determinado lugar onde encontrasse meus avós, tios, mãe, pai, tinha que proferir:

- Benção, fulano! – Ao que o interlocutor respondia:

- Benção, meu filho!

Quando não respondia era repreendido por frases severas, intempestivas:

- Esse menino anda uma coisa séria. Nem parece gente. Parece mais bicho.

Ficava pelos cantos desconfiado, com o olhar pidão, envergonhado por tamanha falta. Prometia a mim mesmo que na próxima ocasião eu me emendaria. Consertaria tudo. Poria remendos grossos naquele ato tão ignóbil. E o pior de tudo é que iam reclamar à minha mãe dos meus modos. Levava outra reprimenda da minha mãe.

Tratava-se de um mundo patriarcalista no qual homens mandavam por, simplesmente, serem homens. Durante toda a minha infância, cresci com este conceito de que “homem é assim”, “homem faz assim”, “homem age assim”.

Um exemplo disso é meu avô materno. Trata-se de uma figura de uma compreensão antiga acerca dos fatos. Descendente de escravos, meu avô é negro, como negra era a minha bisavó. Casou-se duas vezes. O primeiro casamento acabou em desquite. Vivia brigando com a primeira esposa como cão e gato. A mulher não se submetia aos conceitos de meu avô e o resultado eram escoriações e hematomas nos dois.

Casou-se uma segunda vez. Esta outra esposa é a minha avó – ainda viva. Desde os dezenove anos de idade gastando-se na beira do fogo. Vai manhã, vem tarde e ela com a sua paciência pachorrenta e inalterável. Sempre com o mesmo temperamento. Nunca a vi alterada por qualquer ato buliçoso. Desconfio que seja uma santa.

Meu avô era um tipo primitivo, modelo dos antigos senhores de engenho. Pai de todos. Sempre com os beiços enrugados. Numa sisudez de assustar os anjos. A casa do meu avô materno é um asilo de traumas e medos enlatados em conserva. Os filhos têm um respeito – medo – encabulador do pai, meu avô. Ele os criou em regime de servidão. Surras sobejas, trabalho duro e rude foi a alimentação vitaminada que receberam com fartura. Hoje ele está com oitenta anos, mas ainda preserva traços do patriarcalismo antigo e castrante. Um olhar dele ainda arrepia os cabelos da alma dos filhos – meus tios e tias e a minha mãe. Quando era pequeno passei muitos sustos com ele. Um rabo de olho congelava-me as ações, paralisava-me o coração, emudecia a minha loquacidade, mofava os movimentos ágeis e libertários da minha infância.

Uma certa vez acabei passando dois meses sem ir à casa do meu avô. Minha mãe havia me mandado buscar uma caixa de fósforos. Queria fumar. Naquele instante ela estava no rio lavando roupas nas pedras. Deu vontade de fumar, mas ela esqueceu o fósforo. Mandou que eu fosse buscar. Protestei, resmunguei. Finalmente, ela me venceu pela autoridade. Ameaçou-me. Fui contrariado. Menino descalço, galguei a ladeira com xingamentos implícitos em cada frase. Caminhada medonha. A casa distante. Sol a pino no céu. Fui à casa de minha avó buscar a caixa de fósforos. Quando vinha, ainda remoia injustiças. Quando surgiu-me o fantasma da tentação. Ao passar próximo às canas do meu avô, que naquela ocasião estavam pequenas, cobertas pela palha do corte da safra que acabara há poucos meses, risquei o fósforo na matéria seca. A lingüeta do fogo surgiu rápido. Cresceu. Fortaleceu-se com o combustível que estava ali. Perdi o controle do fogo. Tentei abafá-lo. Meus esforços foram debalde. Corri. Não sei quem viu ou apagou o fogo. Dentro de mim, eu tinha consciência de que havia prevaricado. Uma sensação de que havia cometido um crime hediondo. Meu avô com certeza me daria um “lapo”, como ele costumava dizer. Entreguei os fósforos para a minha mãe e fiquei ali quieto. Amofinado. Pensando em qual seria o resultado daquilo tudo. Com a consciência em formigamentos, eu iria ao outro lado da terra se minha mãe mandasse. Mudança abrupta.

Ausentei-me da casa de meu avô. Quando o via à distância, escondia-me. Certo dia minha mãe chegou em casa perguntando:

- Oh!, Carlos, tu tocou fogo na cana do teu avô, foi? Tu não tem o que fazer não, menino? – escondi-me em mim mesmo e gaguejei qualquer explicação bronca.

Meu avô havia contado para ela que o incendiário do canavial havia sido eu. O medo avolumou-se na minha alma. Quase todos os dias eu tinha o costume de ir à casa do meu avô, mas agora não tinha o que fazer. Teria que abdicar das minhas idas até lá. Tentei arranjar uma estratégia. O tempo seria responsável pelo esquecimento. Nada melhor do que a sucessão de dias que sempre traz eventos novos e acaba fazendo com que o passado fique como algo distante, esquecidiço. Após oito semanas decidi ir à casa de meu avô. Cheguei meio desconfiado, pelos cantos. Estudando todos os movimentos. Cada passo seguia uma diligência filosófica. Todavia, a primeira pessoa que encontrei foi meu avô que foi logo dizendo num crescendo de gigante.

- Foi você, seu cabra, que tocou fogo nas minhas canas, num foi? A próxima vez que você fizer isso, você vai me apanhar, tá entendendo? – petrifiquei-me. Certamente ele tinha uma autoridade fabulosa. Certamente ele havia adquirido dos deuses tamanho poder. Como infundia autoridade a sua voz! Era o eco de um trovão que entrava-me pelos ouvidos, machucava-me a interiodade.

Minha tia Lurdes era outra que me ameaçava com sentenças graves. Eu, Zequinha, meu irmão e Ginado gostávamos de ir tomar banho num riacho. Passávamos ali quase todas as manhãs. De manhã quando chegávamos ali as águas estavam limpas. Víamos o fundo como que por um espelho. Ali peixes nadavam e exibiam despreocupação. Começávamos a pular e água rapidamente ficava escura. Achávamos extraordinário. Divertimento de menino. Minha tia não via com bons olhos essa nossa ida – minha e do meu irmão – para o riacho tomar banho. Dizia que íamos pegar doença. A maleita ia nos vitimar. Ela ficava responsável por mim e pelo meu irmão quando minha mãe ia trabalhar na roça.

Fazíamos longas excussões para chegarmos ao riacho. Atravessávamos canavias de folhas cortantes. Peregrinávamos por um caminho três vezes mais distante do que o comum para chegarmos ao córrego a fim de que não fossemos vistos. Cresci num ambiente de moralidade forte. De uma religiosidade forte. De um catolicismo arraigado nas entranhas do povo. Com afirmações como estas: “Menino mal educado pode ser levado pelo papa-figo”. Até hoje não sei quem é esse papa-figo. “Menino que responde os mais velhos, o papai do céu castiga”. Ouvia estas sentenças sem saber divisar muito bem para o que elas serviam. Concentrava-me na sentença grave. A ameaça do castigo plasmava-se na minha mente e ecoava por regiões inteiras da minha alma. “Papai do Céu” devia ser um velho muito ranzinza, como o meu avô para que se zangasse e se importasse com o que as crianças faziam. Imaginava o ente enorme de cabelos alvos como algodão, com uma chibata na mão, pronto a me surpreender quando eu vacilasse. Com certeza, ele era um senhor idoso, que se utilizava da força cósmica para consumir aqueles que transgredissem a moral. Parece que a moral estava apenas do lado dos mais velhos. Eu, simples, criança sobrevivia subjugado pela força de Deus e dos homens.

quarta-feira, janeiro 25, 2012

Meus Verdes Anos, de José Lins do Rego, é uma obra metalinguística

Após ter lido Meus verdes anos de José Lins do Rego, fiquei com a funda impressão de que aquilo que li era uma obra metaliguística. O livro foi publicado no ano de 1956, ou seja, um ano antes da morte de José Lins, que morreria a 12 de setembro de 1957. Escrever Meus verdes anos foi abrir um baú de memórias com as cores da infância. Era como se o escritor afirmasse: "Aqui está o meu material literário. Isso explica tudo".

Nos parágrafos finais do livro de memórias, o garoto do Pilar explica as suas dores pelo fato do canário Marechal (presente do negro José Joaquim) ter ido embora. Destaco as seguintes palavras: "E mal pus os pés por debaixo da goiabeira, ele voou para longe até sumir-se na distância. Ainda o vi como um pontinho no céu. Vi-o furando o espaço e correndo para o mundo. Lá se fora ele com os cantos que enchiam de alegria as minhas madrugadas de asmático. Lá se perdia ele para sempre, assim como estes meus verdes anos que em vão procuro reter" (o destaque é meu). As palavras em destaque expressam esse desejo de uma tentativa de reter as fragrâncias infância.

José Lins foi "um escritor menino". Nunca esqueceu as suas experiências de infância. É curioso como em Meus verdes anos a força sinestésica dos eventos estão presas em suas descrições. Ele consegue falar em "miado de gato", "chiado de carro de boi"; do "cheiro do capim" cortado pelo negro José Joaquim; da "fragrância" lascivizante de Zefinha; da vulva escura da negra que lhe dava banho e que se abria como uma flor rubra. Lê-lo é imergir num rio imenso, como o rio Paraíba (descrito no livro).

Quando lemos Meus verdes anos, entedemos Menino de Engenho, Doidinho, O Moleque Ricardo, Cangaceiros ou Usina, por exemplo. Acentuamos a compreensão de muitos dos personagens do escritor. Daí é que falamos de uma metaliguagem do livro publicado em 1956.

A obra de Zé Lins é um retrato imprescindível para a formação de uma antropologia do homem do nordeste em dado momento histórico. Assim como a obra de Balzac mostrou a França burguesa - seus costumes, hábitos, valores e doenças -, Zé Lins mostrou como nenhum outro o retrato das oligarquias do açucar e o tipo de sertanejo que é formador do homem regional brasileiro - o cangaceiro; o homem religioso; a ligação inconsciente com a igreja. Revelou os aspectos ecônomicos - a ascensão e a decadência dos engenhos. José Lins escrevia sem preocupações de engajamento e compromisso aparentes. Ele escrevia porque tinha o que dizer, como que para libertar-se das várias vozes que ele havia captado em sua infância.

Estou desejoso para ler, ainda, Usina, Pureza, Moleque Ricardo e Riacho Doce nesse primeiro semestre. Como é bom e gostoso ler José Lins do Rego, o escritor menino!

segunda-feira, janeiro 23, 2012

Dogville, uma obra magnífica

Fiquei com uma sensação de espanto após ter terminado de assistir ao filme Dogville de Lars von Trier. Tive que fazer uma concessão - Trier é "o cara"! Fiquei afrontado com o Anticristo. Julguei que o diretor dinarmarquês havia desferido golpes demasiados no juízo do espectador. Havia feito um filme para chocar; chamar a atenção para si; propalar que ele era/é "o melhor" e fazia o que bem queria. Mas após assistir a Dançando no Escuro e a Dogville, percebi uma dimensão religiosa nos filmes de Trier; aquiesci que Trier é muito bom. Talvez lhe falte apenas um pouco de humildade.

Em Dançando no Escuro, filme de 2000, protagonizado pela islandesa Björk, Trier consegue produzir uma das obras mais belas dos últimos tempos. Um musical repleto de uma linguagem sensível, terna, angélica. Selma, a personagem de Björk, é um anjo encarnado. Sua bondade é tão extrema que nos atinge. Deixa-nos enraivecidos. Trier consegue transferir emoções fortes, instigando o espectador a sentir-se dentro do filme. Sofremos com a personagem. Reunimos argumentos internos para afirmar: "Não faça isso, Selma! Não é necessário se entregar dessa forma. Seja autêntica!". Mas a obra caminha para outro rumo. O final é surpreendente.

Já em Dogville, Trier propõe uma tese anti-humana. Seu dogmatismo nos deixa de queixo caído, exemplificando em mais um caso a sua religiosidade. A obra chega a ser quase uma metáfora bíblica da história de Sodoma e Gomorra. Segundo o livro de Gênesis, estas duas cidades foram alvo da ira divina por causa da maldade dos seus moradores. Em Dogville, Grace (Nicole Kidman) chega à cidade de Dogville e pede abrigo. Ela chegara à cidade porque estava sendo perseguida por gângsteres. Os moradores da estranha cidade reúnem-se em conselho e decidem deixá-la entre eles. Talvez aqui o diretor queira fazer uma crítica contundente à ideia de democracia. O nome Grace ("graça" em português) é outro elemento que nos chama a atenção. Segundo os teólogos, graça é uma bondade oferecida pelas mãos divinas. Ou seja, é aquilo que se recebe sem que se mereça. A personagem Grace começa a oferecer a sua ajuda imaculada aos moradores. Não pede nada em troca. Queria apenas ser aceita pelos cidadãos de Dogville. Eles acham por bem remunerá-la pelos trabalhos.

O que nos impressiona é a fotografia do filme. Trier monta os cenários como Brecht em seu cinema político, naquilo que ficou conhecido como "o teatro do absurdo". Lembrei de Mãe Coragem, peça do dramaturgo alemão que vi há algum tempo atrás. Os planos nos dão uma experiência de totalidade teatral. Enquanto uma cena se passa no primeiro plano, vemos no transfundo, o que acontece com os demais personagens e com a cotidianidade da cidade. Desse modo, a estrutura do filme possui nove capítulos e um prólogo. Um narrador onisciente nos conta a história, como se tudo fosse uma faz de conta.

O dogmatismo da tese de Trier começa a se acentuar quando a polícia começa a fazer visitas à cidade à procura de Grace. A partir desse momento, os moradores revelam o seu lado cruel. Resolvem duplicar o trabalho e tratar Grace, "a graça", de uma maneira insensível. É repreendida por muitos daqueles que outrora a tratavam bem. Passa a ser alvo da lascívia dos homens da cidade, tornando-se numa espécie de Geni da música cantada por Chico Buarque. A comunidade passa a "jogar pedra na Grace". As injustiças revelam o lado asqueroso da "cidade dos cães". O nome Dogville passa a fazer jus à cidade. O intelectual e reflexivo Thomas Edison Jr. tenta ajudá-la, mas por sua vez, suas iniciativas são patéticas e infaustas. Talvez, resida nesse sentido, uma crítica ao papel ineficiente dos intelectuais. A falta de eficácia. As teorias rebuscadas e que grassam poucos resultados na realidade efetiva. O discurso vago e desarticulado. A falta de coerência com o mundo prático.

Como uma grande obra que é, o filme permite inúmeras leituras - teológica, histórica, sociológica, filósofica. Por exemplo, para alguns críticos, Dogville é uma metáfora da sociedade americana e sua aversão ao estrangeiro. A visão estagnada para o outro. Ou seja, para aquilo que vem de fora. Outra leitura mais globalizante, seria aquela que fala da condição humana. Nesse sentido, Trier caminha na direção contrária do "bom selvagem" de Rousseau. No fundo, a obra nos passa a mensagem de que os homens são deliberadamente arrogantes, gananciosos, lascivos, egoístas e grávidos pelos próprios interesses. Segundo, o filme não há salvação para a humanidade.

Fiquei verdadeiramente impressionado com as cenas finais do filme. O pai de Grace, o gângester (que queria partilhar o seu poder com a filha), acha-a. E os diálogos são de uma visceralidade filósófico-teológica que beiram o absurdo. Ao chegar à cidade, o gângster indaga a Grace se ela deseja que a cidade seja aniquilada. Curiosamente, ninguém vê o rosto do pai, como se este fosse um poder invisível que decide o destino dos homens. A personagem de Nicole Kidman, conversa com o todo onipotente pai sobre o poder e sobre o destino da cidade. E, por final, Grace resolve solicitar ao pai que reduza a nada a cidade. O diálogo de Grace com o pai nos faz lembrar a conversa do texto bíblico entre o patriarca Abrãao e a divindade de Israel quando da destruição das cidades já mencionadas - Sodoma e Gomorra.

O próximo filme que eu verei será Melancholia (2011). Quando vemos filmes como este nos indagamos: "Será que o cinema americano terá condições de produzir algo assim?" Mas não sejamos dogmáticos!

domingo, janeiro 22, 2012

O senso comum, como ação orientadora do status quo

E tantos são aqueles que estão amarrados às teias invisíveis do senso comum. Acorrentados a formas acríticas de pensamentos como em O Mito da Caverna de Platão, enxergando o mundo por intermédio das sombras; defendendo o indenfensável, como se isso resumisse e fosse a exata expressão daquilo que é. O mundo não "é" assim; ele "está" assim.

"O senso comum interessa (e muito) à situação conservadora da sociedade em que vivemos, em função de fato de que ele não possibilita o surgimento de uma "massa crítica" de seres humanos presentes e ativos na sociedade. O senso comum é o meio fundamental para a proliferação da manipulação das informações, das condutas e dos políticos e sociais dos dirigentes e dos setores dominantes da sociedade".

(LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da Educação. Editora Cortez. São Paulo. 2011, p. 134)

quinta-feira, janeiro 19, 2012

Viagens - a ausência-presença das obras do tempo

A visita que fiz ao estado de Pernambuco - minha "pátria" (levando em conta que a palavra "pátria" significa "terra dos pais") - me deixou com uma sensação de que o tempo é uma força descomunal. Enquanto estava por lá, lembrei de uma frase de Karl Marx - "Tudo o que é sólido, desmancha no ar".

Havia ficado oito anos sem visitar aquele estado. Sem visitar parentes. Rever amigos. Apreciar paisagens. Envolver os meus sentidos com as feições da terra. Foi estranho não ter visto o meu avô materno. Não ouvir a sua voz grossa, envolvida pelo arrojo da autoridade. Esse fato causou uma sensação de ausência. Não visualizar os seus beiços enrugados à maneira dos velhos coronéis provocou um impacto. A casa de farinha, o seu lugar de praxe, ficou abandonada. Era nesse ambiente que ele fazia as suas reflexões. Comentava casos. Desferia críticas contra as injustiças. Comentava a política dos governos estadual e federal. Vociferava contra as bestuntices dos trabalhadores, dos vizinhos, dos filhos, dos netos... do mundo.

O tempo, como diz Agostinho em suas Confissões, provoca "efeitos admiráveis". Diria que ele causa um duplo efeito: (1) um a nível externo. Ou seja, aquele que se processa no mundo físico, alterando ambientes, provocando alterações contigentes; e (2) outro a nível existencial. Ou seja, efeitos de ordem psicológica. Enquanto caminhamos vamos sendo afetados por essa força que é como a água do mar - movimenta-se num dinamismo incessante. Não o percebemos, mas os seus efeitos vão "desmanchando" as obras da realidade e infundido, no ser, "efeitos admiráveis". E tudo se encerra na afirmação do poeta Manuel de Barros - "uma ausência que é só presença".

P.S. A obra fantasmagórica acima é de Francisco de Goya, um dos pilares da pintura espanhola. O quadro retrata o deus romano Saturno (Cronos no grego), devorando um dos seus filhos. Segundo a mitologia, Saturno fora advertido de que um dos seus filhos o destronaria. A partir daí, ele passa a devorar um por um os seus filhos. Até que um deles - Júpiter (Zeus no grego) - conseguiu escapar e viver. A cena é uma das mais terrificadoras já pintadas na história da arte. Mostra Saturno, símbolo do tempo, bestializado, consumindo implacavelmente um dos seus rebentos - os cabelos esvoaçados, os olhos fora das órbitas, o esforço para abrir a boca e convertê-la numa enorme cavidade negra que morde o braço esquerdo de um corpo humano, ao qual já não tem nem cabeça nem braço, provoca impacto. O corpo encurvado; o braço direito como um coto de uma árvore; as pernas como se estivessem amputadas a sumirem na treva espessa. Apesar das várias possibilidades de leitura da obra, a que mais gosto é aquela que mostra que o tempo é aquela força que devora tudo, que é implacável. Quem seria o "Júpiter"("Zeus") capaz de destronar o seu poder acachapante?


domingo, janeiro 15, 2012

Minha visita ao Museu José Lins do Rego

Devo confessar que um dos momentos mais esperados da viagem de uma semana que fiz a João Pessoa foi poder visitar o Museu José Lins do Rego, aberto de segunda a sexta-feira, no Centro de Cultura na capital paraibana. Após ter errado o caminho do museu e ter realizado uma perquirição aos passantes, percebi que poucos paraibanos sabiam da existência do museu. Alguns diziam “é ali!”; outros, “é acolá!”. Todavia, após uma enorme mobilização eu e minha esposa conseguimos chegar ao espaço montado em homenagem a Zé Lins, como era conhecido o escritor paraibano pelos mais íntimos.

A percepção inicial foi negativa. O espaço poderia ter mais visibilidade. Fica situado num subterrâneo de um galpão incipiente e sucateado. Outro aspecto negativo eu citarei mais à frente - e este o mais sério.

Penetrei o espaço como uma criança que visita uma loja de brinquedos. Ali eu encontraria objetos, memórias, apetrechos, badulaques, quinquilharias, obras artísticas que tiveram uma ligação direta com um dos principais escritores do século XX. Essas sensações são curiosas. Enchi-me de uma emoção prazerosa. Logo na entrada, encontramos diversos cartazes de exposições já acontecidos para homenagear o escritor paraibano. Mais à frente, encontra-se uma outra sala com fotos de seus familiares, diversas traduções de sua principais obras. Em meio aos quadros, um em especial me chamou a atenção: um que demonstrava o amor do escritor pelo futebol. E a informação curiosa de que o dinheiro necessário para que o Brasil viajasse para disputar a Copa de 1954 foi conseguido por Zé Lins junto a patrocinadores.

Outro aspecto dessa sala diz respeito às diversas traduções que as suas obras receberam, mostrando de maneira clara que o José Lins do Rego não é somente um escritor regional. Zé Lins saiu do regional para o universal. O escritor tornou-se um dos grandes nomes da literatura em todo o mundo. Os russos, alemães, ingleses, americanos, espanhóis, argentinos, romenos já tiveram a grande ventura de ler as letras do garoto do Pilar.

Mas, a grande riqueza do Museu José Lins do Rego se encontra numa sala com mais de 3 mil livros que pertenceram ao escritor. Era a minha grande curiosidade. A sala fechada guarda um tesouro extraordinário. Um amante de literatura sempre vai querer saber o que um grande escritor lia. Quais eram as suas influências. Quem foram os escritores que fecundaram o seu pensamento. É como se um aprendiz de feitiçaria desejasse saber o que o seu mestre utilizava como ingredientes para produzir bruxarias.

Fiquei imensamente triste quando me informaram que eu não poderia entrar no espaço da biblioteca de Zé Lins. Uma profunda sensação de desalento tomou o meu coração. A grande razão da minha visita era saber o que o escritor lia. Conseguir distinguir somente dois nomes em meio às lombadas encardidas – James Joyce e Virginia Woolf. E alguns volumes com textos críticos sobre a obra de Eça de Queirós e Machado de Assis. Sabia que o velho Zé Lins deveria ter digerido alguma coisa do “Bruxo do Cosme Velho”. Os textos do escritor paraibano estão povoados por um realismo delicioso. Por uma crueza dos grandes realistas do século XIX. A leitura que estou fazendo de Doidinho me deixa essa compreensão. Em Banguê fica mais evidente esse artifício.

Mas continuando: perguntei a um funcionário que se encontrava numa sala contígua. Ele me disse que só existia uma pessoa autorizada para abrir a sala, todavia ela não estava. Desfrutava as férias. Fiquei a remoer internamente uma grande aversão. Rapidamente me veio um senso de indignação com o Brasil. Num país sério aquilo não aconteceria. Um turista vai visitar um museu sobre determinado artista, mas é impedido pela falta de organização e pelo amadorismo. Imagine se os turistas que fossem visitar o Louvre tivessem que abortar a viagem por causa da ausência de funcionários? Com certeza que tal desorganização não aconteceria em outro Estado com o mínimo de preocupação histórica. Mas no Brasil é outra história...

Vitória de Santo Antão - PE

quinta-feira, janeiro 05, 2012

Memórias - os itinerários do tempo (III)

No esforço de re-tomar a infância distante, a que já me referi, buscando a compreensão do meu mundo particular em que me movia, permitam-me repetir... no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra.

Paulo Freire, in A importância do ato de ler, p. 14.

Nasci no dia 9 de agosto de 1979, às 11 horas e 15 minutos, numa quinta-feira. Vim para o mundo no Engenho Cacimba. Não propriamente dentro do Engenho, mas nas terras que receberam o nome por ficarem próximas ao engenho. Cacimba para o povo nordestino é toda loca aberta em local úmido capaz de abrigar água. A água retirada da cacimba serve para todas as atividades: para beber, para lavar roupa, para tomar banho e assim por diante. Não sei porquê foi dado esse nome ao engenho. A região em que estava o Engenho Cacimba é formada por terrenos cheios de ondulações. Ladeiras escarpadas. Terreno composto basicamente por uma terra calcária; nos locais mais úmidos, um resíduo de massapê, própria para o cultivo de cana de açúcar. Em outros locais, pedaços arenosos, intervalos alagados, planuras.

O Engenho Cacimba foi um dos únicos que não morreram tão rapidamente com as investidas do tempo. Suportou impávido por algumas décadas. Até que sua saúde começou a agonizar. Tratava-se das investidas renhidas e impreteríveis da morte. O carunchamento do tempo começara a roê-lo por dentro: dívidas, acúmulos de dispêndios, safras minguadas. Ele adoeceu, desfaleceu e acabou morrendo. A crise o acometeu inexoravelmente. Lacerou as suas forças. Comeu completamente o seu vigor. Má administração somada a obsoletismo, foram forças poderosas que levaram-no ao chão como um gigante vencido.


As suas terras não abrigavam nenhum rio poderoso, caudaloso. Era atravessado por um filete intermitente de água. Nos períodos de sol abrasivo, reduzia-se a uma linha tênue, anêmica, morredoura. No meio do engenho, achou-se prudente construir uma barragem. Em tempos de chuva, as águas barrentas corriam com fúria. Vinham rumando de longe. Desciam das matas, se ajuntavam nos alagadiços, ganhando volume como uma multidão em marcha. Reuniam-se na barragem com profusão. Braças grossas de água caiam pesadas e barulhentas. Provocavam estrondos. Nas noites silenciosas, imaginava que as águas estavam brigando. Era como se tambores poderosos retumbassem para uma batalha entre dois exércitos invencíveis. Primeiras impressões passadas, o mais se esboroa como um pano velho.


De vez em quando ia com a minha mãe ao vilarejo do engenho visitar conhecidos. Abestalhava-me em contemplações espantadas. A torre por onde saía a fumaça das caldeiras era enorme. Doía-me às vistas olhar para ela. Cocheiras com bois taludos. Açude cheio de traíras, piabas e lambaris, alimentação dos moradores do engenho. As casas dos moradores eram toscas. Por fora, a cal vestia as paredes construídas com barro; por dentro, a treva enfronhava os cômodos nus. Canaviais verdes que se deitavam em coreografias às lufadas do vento quente. Era um cenário extraordinário, impingidor de lembranças e sensações graúdas. Todas estas impressões se desenharam com tintas multicoloridas na minha alma. Uma enxurrada de cores. Arco-íris psicodélico.


O ter nascido num local como este foi significativo para incutir em mim a capacidade fantasiosa. Desenvolver o lúdico, o mágico em suas formas e marcas mais profundas. Ter nascido na zona rural foi um dos maiores privilégios da minha vida. A vida diária era uma aventura. O aprendizado não se dava por teorias, mas empiricamente. Eu tocava naquilo que aprendia. Geralmente, para buscar água era necessário subir ladeiras com baldes, potes e panelas. Desde muito pequeno se aprende os trabalhos braçais da roça: carpir, cavar, semear, plantar. Todas as tardes e manhãs é necessário “buscar água”, como se diz no Nordeste, a fim de desenvolver as atividades diárias da casa. Atualmente, pelo menos no lugar onde nasci, a água já foi encanada e puxada por bombas especiais, utilizadas para este fim.


Outro aspecto interessante se dava quando tinha que ir à mata à procura de lenha seca para cozinhar. A mata era um lugar incrível. Povoada por perfumes doces, fragrâncias acres, bolores azedos. Mixórdia de aromas. Gravatás com cores fortes se escondiam na mata. Enxergar um deles era uma contemplação alegre. As suas cores vivas: o vermelho carmezim que contrastava com o verde do caule; o amarelo das suas extrermidades. Cantigas que se sucediam simetricamente. Pássaros que pareciam ter um respeito pela cantiga do outro – quando um parava o outro continuava. Melodia canora. Vento que produzia música com a folha das árvores. Sopros variados. Árvores altas, de copas que se perdiam entre outras árvores. Capim-gordura com seu cheiro peculiar; sua rouxidão, seus pendões que parecem aderir à pele, colocava-me na alma sensações agradabilíssimas. Trilhas pedregosas. Quando íamos para a mata de manhã a areia se encontrava quente, quando voltávamos as pedras ferviam debaixo dos nossos pés rústicos.


Apesar de ser um local tão cheio de beleza, histórias supersticiosas eram inventadas acerca da mata. A mata na minha concepção era um lugar terrível. Dava crédito a cada uma daquelas histórias. Alguns diziam que na mata havia espíritos de meninos travessos: um conhecido era o caipora, criatura fantástica que corria a mata montado num porco-selvagem causando travessuras. Quando se ia à mata era necessário levar uma oferenda para o espírito peralta, traquinas, para amansá-lo e tê-lo como ajudante na cata da lenha. Geralmente, se levava um pedaço de fumo e se colocava em qualquer ponto do mato. Outro ente fantástico era o curupira, também um menino travesso, com os pés em contradição. E um outro bem famoso era uma tal de comadre fulosinha, uma menina que segundo se conta, morreu perdida no meio do mato e tornou-se um espírito andante pelas matas.


Era preciso também trazer uma oferenda para essa menina, para não ser vítima das suas brincadeiras, que utilizava as lianas, cipós e sarmentos para castigar com surras medonhas os menos atentos. Acreditava-se que a tal menina tinha por principal objetivo fazer desaparecer os meninos que fossem à mata. Queria torná-los seus companheiros. Tratava-se de uma menina que queria outras crianças para brincar. Apesar de espírito não havia perdido a alma de menino. Os pequenos ela tomava para si; às mais velhas ela aplicava surras e castigos variados.


Quando ia à mata, minha mãe era toda recomendação. Pedia para que não saísse de perto dela.


- Menino, num sai de perto de mim, pelo amor de Deus! – ouvia excitado, imaginando os entes incógnitos no meio da folhagem verde.


Quando sentava-me para conversar com os meus colegas de idade, cada um inventava uma história ao seu modo. Uns diziam que tinham ouvido dos pais acerca de meninos desavisados que sumiram e nunca mais voltaram. Tinham sido capturados pelo espírito das matas e estavam agora como alma penada a correr mundo. Eram entes sombrios, cheios de treva melancólica. Por isso, aturdiam os que iam à mata. Acreditava em cada uma daquelas histórias. Ao entrar na mata, entendia que cada pipilar dos pássaros, o crocitar de alguma ave negra denunciava agouros medonhos.

Meu coração acelerava. A boca ficava seca. Os bugalhos arregalados captando todo movimento em sinal de atenção. Imaginava os espíritos enfurecidos, completamente propensos a aprontar conosco, reles mortais que íamos ali apenas catar alguns gravetos para cozinhar o feijão, o cuscuz, a charque e o peixe nosso de cada dia. Não entendia o porquê das intenções daquelas crianças Persignava-me em gestos inconscientes, fortuitos, habitados por crendices infundadas. Nunca cheguei a ver tais criaturas fantásticas. Não conservo muitas lembranças de minha infância mais tenra. As imagens que me chegam à memória são mortiças. Espectros. Corporatura indistinta. Em outros momentos parecem que elas ganham corpo, se avivam. Reminiscências constituídas por hiatos.

segunda-feira, janeiro 02, 2012

José Lins do Rego e a viagem pelo clássico

José Lins do Rego é um bom contador de histórias. Seu regionalismo possui uma riqueza descritiva incrível. Li talvez três ou quatro livros do escritor paraibano. Não me recordo muito bem. Resolvi, por estes dias, lê mais três - Pureza, Meus verdes anos e Doidinho. O que me levou a lê-lo ou revisitá-lo é uma doce sensação do cheiro da minha infância.

Viajarei para a Paraíba, terra natal do escritor; e, logo em seguida, irei visitar os meus parentes em Pernambuco. Enquanto escolhia os livros (pois cheguei a cogitar a possibilidade de leitura de O Muleque Ricardo, Fogo Morto, Cangaceiros, Riacho Doce, Banguê ou Usina), estabeleci um parâmetro: quis fazer a leitura de algo que tivesse uma relação profunda com a minha infância. A literatura regionalista e, em especial a de José Lins, é um dos momentos mais ricos da história daquilo que já foi escrito em nossas letras. Os escritores regionalistas buscaram retratar com um realismo vivo a sina do sertanejo - suas dores, sonhos, supertições, ignorâncias e grandezas. O domínio sobre o estado psicólogico dos personagens, a espontaneidade da narrativa, a limpidez do estilo, a a habilidade para recriar a ambientação dos personagens sempre inculcaram em mim o apreço pelos textos do autor de Menino de Engenho.

José Lins é um escritor memorialístico. As visões e experiências apreendidas na infância servem de pano para a tecitura dos seus escritos. Escolhi Meus verdes anos e Pureza, simplesmente, por estes livros resvalarem em minha infância nordestina. Não esqueço o que vivi, nem o que fui-sendo. O universo rural é impingidor de experiências e sensações que se prolongam por toda a vida. Deve ser por isso que cresci com essa propensão pelo saudosismo. Sinto ecos daquilo que fui reverberando aqui dentro de mim. É como uma luz que se prolonga no vácuo e vai indo, indo, indo...

Outro fato:

É curioso ler um livro tido por clássico. O clássico, como diz Ítalo Calvino em Por que ler os clássicos, é aquele tipo de livro que geralmente nos dá a sensação de o estarmos lendo pela primeira vez. Ou: "Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados inéditos". Os efeitos singulares daquilo que já se tornou clássico vive ainda mais em José Lins. Lê-lo com esse duplo efeito - (1) clássico, o livro que se reinventa; (2) e estar na condição de um viajante à terra da infância, sendo o cheiro do passado por intermédio da pena caprichosa e habilidosa de José Lins do Rego - é ser acometido duas vezes pelo deleite.

Vamos à Paraíba; vamos a José Lins; vamos aos clássicos.