quinta-feira, janeiro 05, 2012

Memórias - os itinerários do tempo (III)

No esforço de re-tomar a infância distante, a que já me referi, buscando a compreensão do meu mundo particular em que me movia, permitam-me repetir... no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra.

Paulo Freire, in A importância do ato de ler, p. 14.

Nasci no dia 9 de agosto de 1979, às 11 horas e 15 minutos, numa quinta-feira. Vim para o mundo no Engenho Cacimba. Não propriamente dentro do Engenho, mas nas terras que receberam o nome por ficarem próximas ao engenho. Cacimba para o povo nordestino é toda loca aberta em local úmido capaz de abrigar água. A água retirada da cacimba serve para todas as atividades: para beber, para lavar roupa, para tomar banho e assim por diante. Não sei porquê foi dado esse nome ao engenho. A região em que estava o Engenho Cacimba é formada por terrenos cheios de ondulações. Ladeiras escarpadas. Terreno composto basicamente por uma terra calcária; nos locais mais úmidos, um resíduo de massapê, própria para o cultivo de cana de açúcar. Em outros locais, pedaços arenosos, intervalos alagados, planuras.

O Engenho Cacimba foi um dos únicos que não morreram tão rapidamente com as investidas do tempo. Suportou impávido por algumas décadas. Até que sua saúde começou a agonizar. Tratava-se das investidas renhidas e impreteríveis da morte. O carunchamento do tempo começara a roê-lo por dentro: dívidas, acúmulos de dispêndios, safras minguadas. Ele adoeceu, desfaleceu e acabou morrendo. A crise o acometeu inexoravelmente. Lacerou as suas forças. Comeu completamente o seu vigor. Má administração somada a obsoletismo, foram forças poderosas que levaram-no ao chão como um gigante vencido.


As suas terras não abrigavam nenhum rio poderoso, caudaloso. Era atravessado por um filete intermitente de água. Nos períodos de sol abrasivo, reduzia-se a uma linha tênue, anêmica, morredoura. No meio do engenho, achou-se prudente construir uma barragem. Em tempos de chuva, as águas barrentas corriam com fúria. Vinham rumando de longe. Desciam das matas, se ajuntavam nos alagadiços, ganhando volume como uma multidão em marcha. Reuniam-se na barragem com profusão. Braças grossas de água caiam pesadas e barulhentas. Provocavam estrondos. Nas noites silenciosas, imaginava que as águas estavam brigando. Era como se tambores poderosos retumbassem para uma batalha entre dois exércitos invencíveis. Primeiras impressões passadas, o mais se esboroa como um pano velho.


De vez em quando ia com a minha mãe ao vilarejo do engenho visitar conhecidos. Abestalhava-me em contemplações espantadas. A torre por onde saía a fumaça das caldeiras era enorme. Doía-me às vistas olhar para ela. Cocheiras com bois taludos. Açude cheio de traíras, piabas e lambaris, alimentação dos moradores do engenho. As casas dos moradores eram toscas. Por fora, a cal vestia as paredes construídas com barro; por dentro, a treva enfronhava os cômodos nus. Canaviais verdes que se deitavam em coreografias às lufadas do vento quente. Era um cenário extraordinário, impingidor de lembranças e sensações graúdas. Todas estas impressões se desenharam com tintas multicoloridas na minha alma. Uma enxurrada de cores. Arco-íris psicodélico.


O ter nascido num local como este foi significativo para incutir em mim a capacidade fantasiosa. Desenvolver o lúdico, o mágico em suas formas e marcas mais profundas. Ter nascido na zona rural foi um dos maiores privilégios da minha vida. A vida diária era uma aventura. O aprendizado não se dava por teorias, mas empiricamente. Eu tocava naquilo que aprendia. Geralmente, para buscar água era necessário subir ladeiras com baldes, potes e panelas. Desde muito pequeno se aprende os trabalhos braçais da roça: carpir, cavar, semear, plantar. Todas as tardes e manhãs é necessário “buscar água”, como se diz no Nordeste, a fim de desenvolver as atividades diárias da casa. Atualmente, pelo menos no lugar onde nasci, a água já foi encanada e puxada por bombas especiais, utilizadas para este fim.


Outro aspecto interessante se dava quando tinha que ir à mata à procura de lenha seca para cozinhar. A mata era um lugar incrível. Povoada por perfumes doces, fragrâncias acres, bolores azedos. Mixórdia de aromas. Gravatás com cores fortes se escondiam na mata. Enxergar um deles era uma contemplação alegre. As suas cores vivas: o vermelho carmezim que contrastava com o verde do caule; o amarelo das suas extrermidades. Cantigas que se sucediam simetricamente. Pássaros que pareciam ter um respeito pela cantiga do outro – quando um parava o outro continuava. Melodia canora. Vento que produzia música com a folha das árvores. Sopros variados. Árvores altas, de copas que se perdiam entre outras árvores. Capim-gordura com seu cheiro peculiar; sua rouxidão, seus pendões que parecem aderir à pele, colocava-me na alma sensações agradabilíssimas. Trilhas pedregosas. Quando íamos para a mata de manhã a areia se encontrava quente, quando voltávamos as pedras ferviam debaixo dos nossos pés rústicos.


Apesar de ser um local tão cheio de beleza, histórias supersticiosas eram inventadas acerca da mata. A mata na minha concepção era um lugar terrível. Dava crédito a cada uma daquelas histórias. Alguns diziam que na mata havia espíritos de meninos travessos: um conhecido era o caipora, criatura fantástica que corria a mata montado num porco-selvagem causando travessuras. Quando se ia à mata era necessário levar uma oferenda para o espírito peralta, traquinas, para amansá-lo e tê-lo como ajudante na cata da lenha. Geralmente, se levava um pedaço de fumo e se colocava em qualquer ponto do mato. Outro ente fantástico era o curupira, também um menino travesso, com os pés em contradição. E um outro bem famoso era uma tal de comadre fulosinha, uma menina que segundo se conta, morreu perdida no meio do mato e tornou-se um espírito andante pelas matas.


Era preciso também trazer uma oferenda para essa menina, para não ser vítima das suas brincadeiras, que utilizava as lianas, cipós e sarmentos para castigar com surras medonhas os menos atentos. Acreditava-se que a tal menina tinha por principal objetivo fazer desaparecer os meninos que fossem à mata. Queria torná-los seus companheiros. Tratava-se de uma menina que queria outras crianças para brincar. Apesar de espírito não havia perdido a alma de menino. Os pequenos ela tomava para si; às mais velhas ela aplicava surras e castigos variados.


Quando ia à mata, minha mãe era toda recomendação. Pedia para que não saísse de perto dela.


- Menino, num sai de perto de mim, pelo amor de Deus! – ouvia excitado, imaginando os entes incógnitos no meio da folhagem verde.


Quando sentava-me para conversar com os meus colegas de idade, cada um inventava uma história ao seu modo. Uns diziam que tinham ouvido dos pais acerca de meninos desavisados que sumiram e nunca mais voltaram. Tinham sido capturados pelo espírito das matas e estavam agora como alma penada a correr mundo. Eram entes sombrios, cheios de treva melancólica. Por isso, aturdiam os que iam à mata. Acreditava em cada uma daquelas histórias. Ao entrar na mata, entendia que cada pipilar dos pássaros, o crocitar de alguma ave negra denunciava agouros medonhos.

Meu coração acelerava. A boca ficava seca. Os bugalhos arregalados captando todo movimento em sinal de atenção. Imaginava os espíritos enfurecidos, completamente propensos a aprontar conosco, reles mortais que íamos ali apenas catar alguns gravetos para cozinhar o feijão, o cuscuz, a charque e o peixe nosso de cada dia. Não entendia o porquê das intenções daquelas crianças Persignava-me em gestos inconscientes, fortuitos, habitados por crendices infundadas. Nunca cheguei a ver tais criaturas fantásticas. Não conservo muitas lembranças de minha infância mais tenra. As imagens que me chegam à memória são mortiças. Espectros. Corporatura indistinta. Em outros momentos parecem que elas ganham corpo, se avivam. Reminiscências constituídas por hiatos.

Um comentário:

Anônimo disse...

LINDO SEU RELATO ! MUITO LINDO ! ME ENCANTA ! VIVI UM POUCO DISSO EM MINHA INFANCIA , POIS TAMBEM FUI CRIADA EM UMA GRANDE CASA EM UMA GRANDE AREA VERDE ! E TUDO ISSO ME É FAMILIAR !VC É UM PRIVILEGIADO DENTRO DESSE MUNDO CADA VEZ MAIS URBANO !!!
UM GRANDE ABRAÇO PRA VC!