quinta-feira, novembro 30, 2017

De como se deve lutar

"Na guerra, o que dissimula as suas intenções vencerá".

"[ O exército] Deve fazer com que sua rapidez seja igual à do vento, e a sua concentração seja igual à da floresta.
Deve investir e atacar como fogo; e quando imóvel, se defender como a montanha.
Que os seus planos sejam escuros e impenetráveis como a noite, e os seus movimentos sejam como um rio". 

"Há estradas que não devem ser percorridas, exércitos que não devem ser atacados, cidades que não devem ser capturadas, posições que não se deve desafiar, comandos do soberano que não devem ser obedecidos". 

Sun Tzu, A arte da guerra.

O livro A arte da guerra, do lendário estrategista militar Sun Tzu, é tratado no mundo corporativo como um importante elemento para a formulação de planos e técnicas para serem praticadas no âmbito do capital. Empresários, consultores, executivos utilizam a obra para extrair dela as possibilidades da pedagogia de Sun Tzu. É a velha habilidade que o capital possui de transformar em instrumento capaz de proporcionar ou de dar lucro.

Talvez tenha sido por isso que me mantive por tanto tempo distante do livro. Lembro que certa vez eu cheguei a comprar um exemplar. Emprestei para um colega e nunca mais tive o livro de volta. Isso já faz uns quinze anos. Há alguns meses vi que ele custava míseros quatro reais na loja Kindle da Amazon. Comprei-o mais munido por um impulso de colecionador de livros; de sujeito que sai acumulando livros o quanto pode. Um vício sem cura. 

Comecei a leitura. Leio-o vagarosamente. O livro de Sun Tzu não é para ser lido velozmente. Para ser consumido. A leitura deve ser atenta. Quem realiza a leitura de forma distraída, perde a beleza de sua sabedoria profunda.  É silencioso como uma serpente; contumaz em sua ciência como um rio que corre e flui. Existem sutilezas variadas à medida que realizamos a leitura. O livro é aforismático.

O que ele deseja para o guerreiro - ou para um exército inteiro - é a disciplina; a capacidade de antecipar situações; de ter sob controle os movimentos e, em perfeita harmonia, os sentidos. O corpo deve ser uma extensão dos pensamentos. Todavia, não se deve esquecer do terreno, dos caminhos. Deve-se atentar para o fato de quando se deve chegar, ficar ou partir em determinado lugar. 

É um livro de estratégias militares, mas que possui ensinamentos que podem ser praticados mesmo não estando em uma guerra. Seus ensinamentos profundos derivam do taoísmo. O taoísmo é uma tradição filosófica chinesa, pautada nos ensinamentos do "tao", termo este que significa "caminho", "meio", "estrada", "trilha", "lugar por onde se caminha". 

Continuemos a leitura!

terça-feira, outubro 24, 2017

A ética dos justos

Havia numa cidade dos Estados Unidos uma igreja batista. Os batistas, como se sabe, são um ramo do cristianismo muito rigoroso nos seus princípios éticos. Havia na mesma cidade uma fábrica de cerveja que, para a igreja batista, era a vanguarda de Satanás. O pastor não poupava a fábrica de cerveja nas suas pregações. Aconteceu, entretanto, que, por razões pouco esclarecidas, a fábrica de cerveja fez uma doação de 500 mil dólares para a dita igreja. Foi um auê. Os membros mais ortodoxos da igreja foram unânimes em denunciar aquela quantia como dinheiro do Diabo e que não poderia ser aceito. Mas, passada a exaltação dos primeiros dias, acalmados os ânimos, os mais ponderados começaram a analisar os benefícios que aquele dinheiro poderia trazer: uma pintura nova para a igreja, um órgão de tubos, jardins mais bonitos, um salão social para festas. Reuniu-se então a igreja em assembléia para a decisão democrática. Depois de muita discussão registrou-se a seguinte decisão no livro de atas: "A Igreja Batista Betel resolve aceitar a oferta de 500 mil dólares feita pela Cervejaria na firme convicção de que o Diabo ficará furioso quando souber que o seu dinheiro vai ser usado para a glória de Deus."

(Extraído do livro O Deus que conheço - Rubem Alves. Verus Editora, pp. 69 e 70

sábado, outubro 21, 2017

Alguns veem o infinito


Há homens que viram o infinito. Sim! Há homens que viram o infinito - não há outra explicação. Fiquei a pensar nesta proposição após assistir ao filme O homem que viu o infinito, baseado na vida do brilhante matemático indiano Sirinivasa Ramanujan. A obra conta a história do genial autodidata da cidade pobre de Madras. 

Ramanujan é um sujeito humilde. Casa-se, mas não dispões de muitos meios para sustentar esposa e a mãe.  Arruma um emprego em uma empresa de contabilidade. Sente na pele o preconceito e a hostilidade pela falta de formação acadêmica. Altamente religioso, sua paixão são os números para os quais possui um nível de intimidade profundo. As fórmulas e cálculos parecem brotar em sua mente privilegiada. Mais tarde, no filme, ele diz que "as fórmulas para ele são uma expressão exata da mente de Deus". O segredo de sua originalidade estava justamente neste ponto. 

Após ter enviado uma carta e algumas de suas descobertas para o grande matemático britânico G. H. Hardy, Ramanujan vai estudar em Londres. Lá ele sente o sabor amargo do preconceito por conta da sua origem. A academia é um espaço para vaidades e não há lugar para intuições. Apesar de sua genialidade, ele sente o peso da discriminação por conta de sua cor e de sua origem - um país pobre e, segundo o entendimento dos enfunados ingleses, um lugar do qual não poderia surgir nada significativo. 

O professor Hardy sabe que está diante de um gênio comparado a Newton. Visualiza o potencial do hindu. Sua habilidade para lidar com temas complexos. Alguém capaz de destravar as portas pesadas e herméticas do conhecimento matemático. Há algo muito valioso ali. Por isso, resolve firmar uma parceria com ele. Nesse espaço, Ramanujan desenvolve tuberculose. Sua disciplina religiosa o impede de comer carne ou qualquer outro gênero alimentício de origem animal. Não tendo condições de conseguir verduras e legumes - pois o filme se passa no período da Primeira Guerra - Ramanujan definha. 

Seu trabalho continua. É com o trabalho sobre partições matemáticas que ele, finalmente, faz os acadêmicos se dobrarem diante de sua genialidade. Torna-se membro da Sociedade Acadêmica Real Inglesa, um feito inigualável para alguém de sua origem. 

Mas o que está em jogo com relação a Ramanujan estende-se, por exemplo, a alguns gênios que já passaram por este planeta. Pessoas que possuíam um nível de iluminação incomum. Há um diálogo no filme de Ramanujan com a sua esposa. Ela indaga algo como "para quê isso serve?". Ele responde: "Imagine que há cores que não consegue ver". Sim! Os homens comuns vivem em uma realidade em que faltam cores para tornar o mundo mais vivo. A pátina que utilizam para dar significado à realidade possuem, no máximo, duas, três, quatro cores. 

Todavia, há sujeitos iluminados; com os olhos repletos de cores. Um espectro bastante rico se evidencia. Eles enxergam a realidade de forma especial. Veem sinfonias majestosas, poemas; fórmulas matemáticas que apontam para o infinito. Ramanujan morreu aos 32 anos de idade, bem próximo da idade de outro gênio, Wolfgang Amadeus Mozart, que morreu aos 36. Quando penso em Mozart sempre me vem o questionamento: quantas coisas maravilhosas - sinfonias, sonatas, concertos, obras de câmara - morreram com Mozart? Se ele tivesse vivido mais alguns anos, haveria mais cores no mundo. Mais alegria. Não haveria tanta cinza como há agora. Algumas delas teriam sido dissipadas. Se Nietzsche não tivesse sido acometido por um mutismo absoluto, quantos "amigos "de Zaratustra não teriam gritado em praça pública? Se Bach tivesse vivido mais cinco anos, quantas obras religiosas não teriam sido concebidas para tornar o mundo em um jardim multicolorido?

Há sujeitos que nos privam de sua visão muito precocemente. Enquanto caminhamos a tatear coisas pequenas, ignóbeis, assustadoramente comuns, esses sujeitos utilizam a capacidade de enxergar para nos mostrar o que está oculto, querendo ser revelado; ou seja, tornando clara a mente de Deus. Ramanujan diz que cada fórmula aponta para beleza que há em Deus. Neste instante, por exemplo, eu escuto a Quarta Sinfonia, de Bruckner, chamada de "Romântica". O que Bruckner deve ter visto para escrever algo assim? Ela é religiosa em sua essência. Aponta para reflexões perfeitas - divinas. Bruckner deve ter visto o infinito para concebê-la. Os grandes gênios que já passaram por esta terra, possuíam intuições especiais. São profetas. Concebem coisas grandiosas por terem um acesso privilegiado ao infinito. Após o término do filme, fiquei com esta impressão. 

Àqueles que não possuem essa qualidade no olhar está reservada a função de reconhecer a miopia de que são detentores. 

quarta-feira, outubro 18, 2017

Uma epígrafe de um livro de Lya Luft

Não sou leitor dos livros da Lya Luft. Nunca cheguei a mergulhar em sua literatura; tomar nota sobre sua produção. Sei que também é poetisa. Já assisti a algumas palestras em que ela estabelecia um colóquio leve, manso, refletindo sobre aspectos variados da vida. Por estes dias, veio-me às mãos o seu mais famoso livro - Perdas e Ganhos. Após começar a leitura e perceber que sua escrita a coloca, pelo tom intimista, ao lado de Clarice Lispector, encontrei uma epígrafe que me balançou por dias. Transcrevo-a abaixo:

Desde os 6 anos eu tinha mania de desenhar a forma dos objetos. Por volta dos 50 havia publicado uma infinidade de desenhos, mas tudo o que produzi antes dos 60 não deve ser levado em conta. Aos 73 compreendi mais ou menos a estrutura da verdadeira natureza, as plantas, as árvores, os pássaros, os peixes e os insetos. Em consequência, aos 80 terei feito ainda mais progresso. Aos 90 penetrarei no miestério das coisas; aos 110, terei decididamente chegado a um grau de maravilhamento - e quando eu tiver 110 anos, para mim, seja um ponto ou uma linha, tudo será vivo. (Katsuhika Hokusai, sécs. XVIII-XIX). 

domingo, outubro 15, 2017

15 de outubro. Dia do professor. O que há para comemorar?

Ser responsável no desenvolvimento de uma prática qualquer implica, de um lado, o cumprimento de deveres, de outro, o exercício de direitos. Paulo Freire

15 de outubro. Dia do professor. Sou professor. Mas não tenho muitos motivos para risos largos. Em um país como o Brasil, ser professor é não ter motivos para comemorar, ainda mais no momento em que vivemos, quando do ponto de vista político, enfrentamos uma situação caótica, preocupante, de disputa hegemônica clara. Fico a observar as congratulações vazias, destituídas de reflexões mais fundas. Afinal, quais seriam os motivos para a comemoração?

Antes de empinar o peito e esboçar uma jactância anêmica, seria importante pensarmos o quanto o professor é valorizado, primeiramente, pelo Estado, pelos mentores das políticas públicas. Atualmente, sobre o professor recai a culpa de ser doutrinador, de "fazedor de cabeças". Se isso fosse verdade, não estaríamos vivendo um dos momentos mais grotescos de nossa história, em que a profissão tem sido criminalizada pelo Escola sem Partido, uma das construções mais patéticas e incoerentes possíveis do ponto de vista epistemológico. Quando o professor doutrina, faz a cabeça das pessoas, se ainda há pessoas que votam em Jair Messias Bolsonaro e pedem a volta da Ditadura? 

Afinal, o que há para comemorar? O Governo Federal congelou os investimentos em educação por vinte anos para inflar os bolsos dos rentistas. Ou seja, a longo prazo, pensa-se no setor financeiro mais do que em um projeto de educação para o Brasil, capaz de colocar o país na esteira do desenvolvimento e construir uma projeto de nação. 

O que há para comemorar, quando há um desmonte da universidade pública? A pesquisa tem sido precarizada. Os investimentos só encolhem, impedindo que o país protaganize a ciência, em projetos capazes de fazer do país uma potência nessa área. Novamente, entende-se que o mercado redimirá os problemas do país. A educação é só um detalhe. Novamente, o professor é só um detalhe, uma profissão proletarizada, secundarizada, sem investimentos, sem formação adequada, continuada.

O que há para comemorar, quando poucos são os Estados e municípios que conseguem pagar o piso salarial nacional para os professores? Importante dizer que o piso é uma conquista histórica. 

O que há para comemorar, quando o PIB é disputado pelo rentismo e pelos setores  que se beneficiam imoralmente com os juros da dívida pública, relegando à educação as migalhas que sobram do fundo público? 

O que há para comemorar? Educação é luta. É uma campo em disputa. É uma atuação política fundamental. Ela gesta o cidadão que se con-forma ou que se in-con-forma. Não é campo neutro. Se há descaso, isso já enuncia um compromisso político daqueles que a pensam. Então, olhando por este ponto de vista, não há motivos para júbilos ou idealismos. 

Que há para comemorar?

A alienação?
A classe dividida?
O trabalho excedente não remunerado?
A ausência de final semana, porque este só existe para a preparação de aula?
Da falta de ócio, de leitura?
A falta de incentivos, de reconhecimento?
De estímulos do Estado e da sociedade?
...dos alunos?
A mão de obra barata?
A desvalorização grassante..?
A síndrome de burn out?
O trabalhar em três escolas para se conseguir pagar as contas?
A ignorância política?
A incapacidade de pensar histórica e dialeticamente a sua condição?

Afinal, tantas são os motivos para a seriedade, para não pensar messianicamente a profissão e poucos são os motivos para o júbilo, para o contentamento que a ocasião exige. 




sábado, outubro 14, 2017

"A vida de Émile Zola" e o ódio como força social

"Devemos conquistar o mundo... ...mas não pela força das armas, mas sim por meio de ideias liberadoras". Émile Zola

"A verdade está em marcha... e nada a deterá". Émile Zola

Existem forças que parecem ser maiores do que aquelas que possuem os indivíduos. Há situações em que os rumos dos fatos sugerem a desistência. Mas, e quando o que está em jogo é a verdade, a justiça, a vida de alguém? É sobre este fato que o filme A vida de Émile Zola, de 1937, direção de William Dieterle, mira os seus holofotes. 

Um terço do filme aborda a vida difícil do famoso escritor de Germinal antes de alcançar a glória literária. Vivia humildemente, carregando o fardo pesado da pobreza. De repente, uma enxurrada de obras que sacudiram as letras na França e na Europa - Nana, Germinal, A besta humana, entre outras, surgiram e trouxeram fama ao escritor. 

A parte final do filme, põe em foco Alfred Dreyfus, oficial do exército francês, acusado injustamente pelo crime de traição e espionagem. Foi condenado por uma sentença questionável. Um tribunal de exceção, montado pelo próprio Exército, o condenou ao banimento e à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. 

É neste posto que entra a pessoa de Zola. A esposa de Dreyfus recorre a ele. Solicita por ajuda. Zola se nega. Não quer sair da comodidade. Afinal, era um sujeito reconhecido e respeitado. Arregaçar as mangas, cerrar os punhos e sair para a briga exigiria que ele saísse de seu divã de comodidades; do lugar conveniente a que havia alcançado. 

Após entender o caso, Zola não hesita e resolve escrever o famoso documento Eu acuso, que caiu como uma bomba no território francês. De repente, a sociedade francesa estava dividida por aqueles que pediam a manutenção da prisão de Dreyfus e aqueles que exigiam uma reconsideração da sentença. Zola transforma-se em inimigo público. Seus livros são queimados. Corre para não ser linchado. Percebe um cerco em torno de sua pessoa. É condenado a prisão e a pagar uma multa de três mil francos, também, por uma tribunal parcial. Foge para a Inglaterra. De lá, continua a escrever, protestar, a usar a razão.

É curioso como um turbilhão negativo de ódio e raiva toma as pessoas. Para isso acontecer, há uma força invisível, ardilosa, a influenciar, a colocar sentenças nas cabeças das pessoas. A sociedade parece se transformar numa tromba d'água poderosa, capaz de arrastar tudo que está à sua frente. Não há barreiras capazes de impedir o seu avanço. A sua força destruidora ganha dimensões assustadoras. Parece-se muito com aquilo que aconteceu no Brasil a partir de 2013. 

Os últimos acontecimentos com o Partido dos Trabalhadores provam isso. O caso é bem diferente, claro. O PT não é inocente como Dreyfus o era. Tomemos como exemplo a deposição de Dilma Rousseff, a primeira mulher impeachmentmada da história do Brasil.  Em alguns momentos, pronunciar o nome dela era como emitir um palavrão. Semana passada, estava em sala de aula trabalhando alguns exercícios sobre pronomes com os meus alunos de ensino fundamental; crianças com apenas onze ou doze anos. Surgiu uma foto da Dilma. De repente, notei as falas indignadas dos meus alunos. Xingamentos. Afirmações hostis. Ironias. Não retruquei. Apenas observei. Devem ter escutado dos pais. Dos parentes. Dos vizinhos. Visto na televisão. Passado mais de um ano de seu impeachment, o ódio coletivo parece ainda envenenar as mentes e bloquear a razão - até mesmo das crianças.

O que o Caso Dreyfus prova é o quanto as pessoas podem ser acometidas por doenças coletivas. Como é necessário manter a razão, o discernimento, o bom senso funcionando. Deixar de lado as falas apressadas, precipitadas. Não ter a sua inteligência suspensa. Não permitir que o rio impetuoso da ignorância nos afogue. Indagar. Manter aquele olhar de sobriedade e desconfiança. Todos aqueles que alegam possuir a verdade estão condenados a se tornarem inquisidores. As inquisições matam, esfolam, praticam atos bárbaros, desumanos. 

A luta de Zola o leva a provar a inocência de Dreyfus. Triunfa, finalmente, a verdade. Dreyfus é restabelecido ao posto. Não entrou com uma ação contra o estado francês. Todavia, o estrago estava feito. O filme nos faz pensar sobre como a parcialidade dos homens pode induzir a situações em que indivíduos têm as suas vidas públicas e privadas estraçalhadas pela vilania e pela traição. A verdade é forte, cristalina, luminosa. Se ela prevalecesse em todos os casos, não haveria tantas injustiças e desumanidades no mundo. 


sexta-feira, outubro 13, 2017

Um excerto sobre Titono, personagem da mitologia grega

Meses e meses de silêncio completo. Abandono! Relapso! Ausência de curiosidade, de atividade. A lembrança vaga. O movimento para a ação emperrado. Hoje, resolvi escrever algo que me chamou a atenção. Está no livro Além de Darwin: o que sabemos sobre a história e o destino da vida na Terra, que ando lendo. Há um trecho em que ele fala de Titono, personagem singular da mitologia grega. 

O exemplo mais aterrador de falta de cuidado com desejos que me vem à cabeça envolve um sujeito chamado Titono, personagem da mitologia grega. Eis um cara que tinha tudo: príncipe de Tróia, um dos homens mais belos do seu tempo, reza a lenda que ele era tão charmoso que nem Eos, deusa da Aurora, resistiu aos seus encantos. Apaixonada pelo rapaz, Eos pediu que Zeus, o chefão dos deuses, transformasse Titono em imortal. Mas o desejo da deusa tinha sido terrivelmente mal formulado: ela esquecera de perdir que Titono também ficasse eternamente jovem. O resultado é que, embora não morresse, ele foi se tornando cada vez mais enrugado e carcomido, até acabar virando... um gafanhoto imortal.

sexta-feira, junho 02, 2017

Um livro há muito desejado

Quando estudei em um seminário teológico, sempre busquei ler o que me vinha à mão. Li principalmente os autores de teologia dogmática. Ou seja, aqueles autores que possuem uma preocupação apologética, que trilham pelos caminhos seguros do não questionamento; que não divergem com o pensamento teológico legado pela tradição - inerrância das escrituras, Cristo como salvador absoluto; divino e humano; Salvador, Messias; somente a graça é capaz de salvar, a trindade etc. São temas basilares, estruturais, que firmam a fé da igreja. Esses dogmas foram consolidados ao longo dos séculos por meio de debates acalorados. 

Por outro lado, havia aqueles autores "perigosos". Se lêssemos, passávamos a sermos olhados pelos colegas e pelos professores com certa preocupação. Estaríamos alimentando questionamentos e indiferença para com a fé ortodoxa? O ateísmo ter-nos-ia tomado de assalto? Estaríamos "esfriando", termo este que significa perder a paixão, até se tornar indiferente para com a fé.

Téologos como Rudolf Bultmann, Karl Barth, Paul Tillich, Emil Brunner, Jürgen Moltmann, Renan, Niebuhr ou Albert Schweitzer se pronunciados poderiam trazer um mal presságio. Tanto é assim que, enquanto estava no seminário, li apenas um opúsculo de Bultmann e outra pequena obra de Tillich. Ler o brasileiro Rubem Alves era tóxico também. Vale fazer uma pequena digressão aqui, pois muitos desses teólogos foram introduzidos no pensamento teológico brasileiro por intermédio de Rubem Alves, quando este estudou nos Estados Unidos nos anos 60 e 70 do século passado. Livros como Teologia de Esperança, Protestantismo e Repressão, O enigma da religião, O que é religião? e Dogmatismo e Tolerância, do grande filósofo e teólogo mineiro foram fundamentais para que eu criasse uma lastro crítico necessário para relativizar algumas construções teológicas tidas como inquebráveis e fundamentais. 

Recordo-me que certa vez encontrei um colega lendo A busca do Jesus Histórico, do alemão Albert Schweitzer. Inquiri o colega sobre o livro. Falou-me do que tratava. Fiquei interessado. Eu já ouvira falar sobre Albert Schweitzer pela caneta de Rubem Alves. Trata-se de um grande humanista, extraordinário organista e amante da música de Johann Sebastian Bach; um intelectual refinado; um homem com uma alma apaixonante; erudito que se radicou na África para cuidar de homens e mulheres doentes. Era um sujeito que conseguia conciliar a erudição do pensamento filosófico-teológico e ao mesmo tempo arregaçar a manga para cuidar do corpo moribundo de sujeitos padecentes. Este fato deu a Albert Schweitzer o Nobel da Paz, em 1953.  A busca do Jesus Histórico é a sua tese de doutoramento escrita no ano de 1899. 

   Albert Schweitzer (1875-1965)

Sempre procurei o livro para ler, mas nunca havia obtido sucesso. Até que no início do mês passado, ao fazer uma busca na internet, encontrei-o no sítio da Saraiva. Não hesitei. Comprei imediatamente. Hoje, demorados mais de vinte dias, recebi-o quando cheguei do trabalho. Fui imediatamente movido pela curiosidade e já bebi algumas páginas da obra de Albert Schweitzer.

O autor alemão nesta obra, centra a sua atenção, por meio de uma espécie de busca arqueológica, do Jesus histórico. Ou seja, o homem real, que talvez tenha vivido na Palestina há dois mil anos atrás. A Igreja sempre se preocupou em retratar o Cristo da fé, divinizado, celestializado e confirmado pela construção do dogma. O dogma cria muros. Suplanta relativizações. Impede os questionamentos. As informações que temos sobre a sua existência são rarefeitas. Não estão solidamente confirmadas em documentos relevantes. E o resultado da investigação de Schweitzer. é acachapante: o Jesus histórico não existe. O que existe é uma figura alimentada pela psicologia, projetada pela nossa própria auto-imagem. O Jesus da fé é diferente do Jesus histórico, pois este é inócuo em sua materialidade, mas aquele é agigantado pela fé, fazendo crescer naquele que crer, um sentimento que renova e transforma a sociedade e a história. 

É começar a leitura imediatamente.


domingo, maio 21, 2017

"O Capital" (2011), um filme de Constantin Costa-Gavras

A mulher de Marc pergunta: - "O que você quer?"
Ele responde: "Dinheiro!"

O filme O Capital (2011), do cineasta greco-francês, Constantin Costa-Gavras, é uma reflexão profunda e brutal de como o capital financeiro domina o mundo. Costa-Gavras ao longo da carreira tem produzido filmes sempre buscando estabelecer algum tipo de debate político. Se não me engano, este é o segundo filme que vejo dele. O primeiro foi Amem (2002), que foca na indiferença consentida da Igreja Católica em relação às medidas diabólicas nazistas contra os judeus.

Em O Capital, encontramos as lentes do diretor fazendo-nos refletir como se dão as relações no mundo do capital. O pano de fundo, certamente, foi a crise que abalou os mercados no ano de 2008 e que continua a promover as suas consequências. Quando falamos em filmes que buscam retratar o cenário de poder do mundo capitalista é sempre bom lembrar Wall Street - poder e cobiça (1987), de Oliver Stone, e outro mais recente: A grande aposta, (2015), de Adam McKay, que revela o background da crise com a eclosão da bolha especulativa do ano de 2008. 

O Capital intriga por nos fazer entrar no mundo das especulações, do capital intangível, virtualizado, imaterial e que não está preocupado com a produção de riqueza social. A lógica do capital é a transformação dele mesmo, gerando lucros cada vez mais absurdos. O poder do capital é a força que muda, manipula cenários a fim de que ele mesmo prevaleça acima de tudo e todos. 

Marc Tourneuil é um jovem inteligente e ambicioso. Ele assume a presidência de um dos maiores bancos europeus, o Banco Prenix, quando o seu presidente-fundador - Jack Marmande - se ver impossibilidade por causa de um câncer nos testículos. O nome do banco faz referência à ave mitológica capaz de ressurgir das cinzas cada vez que morre. O capital também sempre ressurge após as suas crises, exibindo novas feições para objetivar o lucro. O cargo era almejado por diversos integrantes do conselho deliberativo do banco. Aos poucos, Marc vai mostrando suas habilidades como gestor, tendo que tomar decisões difíceis como, por exemplo, a demissão de um número considerável de funcionários para que o banco se tornasse mais rentável. No filme, fica claro que o banco passa por uma valorização na bolsa de valores, feita pelos investidores, após o corte de dezenas de milhares de vagas de emprego.

A personagem rapidamente percebe o jogo que se arma contra ele. Nesse sentido, é importante prestar atenção à cena inicial do filme, que mostra uma tacada de golfe realizada por Jack Marmande. Ou seja, o mundo frio, instrumental do dinheiro, é um verdadeiro jogo. Para prevalecer nele é preciso saber jogar. Dentro desse espaço, não há lugar para as relações, que passam a ser sempre interesseiras e pragmáticas. 

O filme deixa-nos a impressão de que o contato humano passa a ser sempre artificial e virtual. Marc vive a viajar em jatinhos e se locomovendo de um espaço a outro em limusines como se não houvesse qualquer necessidade do homem social, o homem das relações humanas, que enxerga no outro a imagem de si. Quando ele fala é sempre por meio de uma tela ou de um aparelho celular. Esse excesso de virtualidade no filme é para mostrar quanto que o capital também se metamorfoseou em imaterialidade. 

As objetivações supremas do espírito humana ficam sempre secundarizadas. Notam-se no filme quadros de artistas como Matisse ou Modigliani.  O capital perdeu a sua materialidade e se tornou mera ficção a se converter em papéis, em títulos virtuais, em movimento especulativo que não gera riqueza para a sociedade por não ter preocupação com o trabalho. Esse movimento implacável, é resultado das sucessivas crises que o próprio capital tem acumulado desde a década de 70. Para que tivesse sobrevida e alcançasse seu objetivo supremo - o lucro - ele precisou espoliar-se das amarras sociais do estado de bem-estar-social, principalmente com uma das suas faces atuais, o neoliberalismo. 

Hoje, no Brasil, vemos esse jogo cada vez mais com força e factibilidade desde o golpe contra a presidenta Dilma, em 2016. O golpe foi para dar força e lucro ilimitado ao capital. As forças que patrocinaram o golpe partiram do capital financeiro e seus diversos braços. As ditas "reformas" trabalhistas realizadas a contragosto pelo governo ilegítimo de Michel Temer, um serviçal invertebrado do sistema capitalista, sem expressão, fraco, débil de carisma, intentam justamente extrair as amarras para que o capital seja sempre mais forte e soberano. Não há preocupação com os trabalhadores, que passam a ser meras peças acessórias, facilmente substituíveis. Precariza-se o trabalhador, pelo fato de o financismo não está preocupado com o trabalho. As ilusões com o trabalho passaram a ser coisas do passado. Os sindicatos, como instituições que representam e protegem o trabalhador, perdem a musculatura. Transformam-se em grêmios anêmicos, sem forças, e, finalmente, em uma realidade desnecessária, já que o capital não deseja obstáculos quaisquer. 

Em dado momento, encontramos essa pérola no filme que serve como reforço argumentativo. Quando Marc está conversando com acionistas estadunidenses, estes buscam tornar a face francesa do banco Phenix cada vez mais rarefeita, pois a França é o país das regulamentações que incomodam o capital financeiro-parasitário: "Gostam de Paris, mas não da França. Muitas leis sociais". Nota-se, aqui que a palavra "regulamentar" possui uma essência que torna exata o jogo do capital. O Capital especulativo está sempre mudando de lugar; sempre procurando locais mais atraentes, independemente da geografia. Qualquer ameaça a ele, ele voa, some, desaparece em lances céleres. As crises surgem assim. 

As reformas do trabalho, que também possuem o título eufemístico-dourado de "modernização das leis trabalhistas", são, no fundo, a face mais grotesco do jogo manipulador do capital em busca de mais lucro. As leis trabalhistas retiram do capitalista o seu principal desejo: ter mais dinheiro. No filme, só há uma referência a sindicatos. O que notamos é a onipresença poder da ontologia do capital, que é uma força em si e para si. 

Claro, existem outros elementos no filme, que poderiam ser abordados. À medida que fui lembrando, coloquei os que foram abordados acima. verdadeiramente, um filme espetacular.

sábado, maio 20, 2017

Inquilinagem

Semana passada fiz algumas compras em sites como a Amazon, Livraria 30porcento e Estante Virtual. Fui constantemente abordado pelo porteiro do prédio onde moro todos os dias ao chegar do trabalho. Somou-se um quantitativo considerável que, ligada à lista de que disponho para ler, aguçou ainda mais meu desespero. Dando quarenta aulas por semana, sem mencionar a preparação e a correção de trabalhos e provas, o que resta dessa maratona é um organismo inerme, fatigado. A coisa anda tão absurda que já não tenho tempo para escrever neste espaço. Colocarei abaixo alguns  dos títulos que chegaram e que serão objetos de leitura pelos meses e anos vindouros.

 Walter Benjamin - Rua de Mão Única - Tomo II

Guerra e Revolução - o mundo um século após Outubro de 
1917 - D. Losurdo

Contos Reunidos - F. Dostoiévski

A Casa dos Carlyle - Virginia Woolf

Teoria Geral do Direito e Marxismo - Pachukanis















Fogo Pálido - V. Nabakov
O Leilão do Lote 49 - T. Pynchon

Pedro Páramo - Juan Rulfo

O ruído do tempo - Julian Barnes
O jogo de olhos - Elias Canetti

Mimesis - E. Auerbach
A mansão - W. Faulkner

O povoado - W. Faulkner
A cidade - W. Faulkner

Massa e poder - Elias Canetti
A pessoa em questão - V. Nabakov









































sábado, abril 15, 2017

Luis Felipe Miguel - sobre Lula

Não há rigorosamente nada de novo nas últimas acusações contra Lula. As denúncias de recebimento de dinheiro ilícito continuam sendo vagas, baseadas em presunções e incapazes de apontar vantagens efetivas que ele tenha obtido. Por outro lado, há fartas demonstrações de que o ex-presidente tinha noção de que era a corrupção que garantia a "governabilidade" - alguém ainda não sabia disso? E também fica claro que Lula desenvolveu uma forte camaradagem com as grandes empresas, algo que está longe de lustrar sua biografia de líder popular, mas que também não constitui surpresa para ninguém. (E, pelo que se vê até o momento, também não constitui crime, é sempre bom ressaltar.)

No entanto, vejo muito gente acionando o modo "meu mundo caiu", como se fulminados por uma súbita decepção com Lula. Alguns, por senso de oportunidade, como parece ser o caso de Paulo Henrique Amorim. Outros, sucumbindo diante da campanha incessante da mídia.

Gostaria de poder dizer, como Millôr: "Heróis nunca me iludiram". Não seria verdade. Tive, como todo mundo, minha cota de heróis pessoais. Ainda os tenho hoje, mas cuido para que estejam mortos, de preferência há bastante tempo, o que evita surpresas desagradáveis.

Lula nunca foi um desses heróis. Comecei minha militância política no antigo PCB, no finalzinho da ditadura. O PT, recém surgido, era visto por nós como um instrumento para a divisão da oposição ao regime militar (leia-se: PMDB). Lula, como um operário que não fora capaz de superar uma mentalidade pequeno-burguesa.

A primeira crítica mostrava um horizonte limitado. Sim, o multipartidarismo foi reinstaurado por decreto, em 1979, com o intuito de dar uma sobrevida ao partido de sustentação da ditadura, a Arena (transformada em PDS). Mas a opção por manter os trabalhadores como retaguarda de uma oposição com liderança burguesa inconteste era equivocada, como a história mostrou.

A segunda crítica tem um ranço autoritário. Como se a "mentalidade" correta fosse determinada de fora. Lula não rezava pela cartilha da esquerda tradicional, é verdade, e foi crescendo politicamente quando já era um líder conhecido, o que explica algumas barbaridades de suas declarações iniciais. Mas cabe perguntar: um perfeito apparatchik teria a capacidade que ele tinha e ainda tem de se comunicar com sua base?

Quando o PCB se desmontou e se transformou no PPS, eu encerrei minha militância partidária. Tornei-me (em geral) eleitor do PT, mas nunca me filiei. Votei em Lula, votei em Dilma, mas houve ocasião em que anulei o voto para presidente. Nunca votei nos candidatos petistas ao governo do Distrito Federal. Para o legislativo, costumo votar em candidatos de partidos à esquerda do PT. Nunca elegi ninguém, então não me tive chance de me decepcionar com minhas escolhas.

Tornei-me, como se vê, um cientista político perfeitamente apartidário, quase apolítico, certamente neutro e objetivo. Mas confesso que, às vezes, ao longo dos anos 1990, senti a tentação de virar petista. Costumava brincar que eu tinha uma conexão mística com Lula: cada vez que a tentação estava grande demais, ele fazia alguma coisa que me levava a desistir. Lembro que, em 1993 ou 1994, eu estava praticamente com a ficha de filiação na mão quando Lula discursou no Nordeste e disse que "o vermelho da bandeira do PT simboliza o sangue de Cristo". Era demais para mim, parei de pensar em filiação na hora.

Conto tudo isto para dizer que sempre nutri por Lula um misto de respeito, admiração e crítica, em doses variáveis ao longo dos anos. Lula não tem que nos decepcionar, porque ele nunca se propôs ser algo diferente. Ele nunca foi um revolucionário, nunca foi um socialista, e só se decepciona ao descobrir que ele não o é quem nele projetou suas próprias fantasias.

A força de Lula e sua fraqueza provêm da mesma fonte: seu enorme pragmatismo, sua capacidade de adaptação. Trata-se, na verdade, de um traço produzido socialmente: os integrantes das classes populares, sobretudo os submetidos às maiores privações, precisam disso para garantir a própria sobrevivência. Lula ilustra aquilo que o historiador Robert Darnton via no "homem da rua", que aplica sua inteligência e engenho para “se virar” num ambiente complexo, em transformação e no qual ele se encontra em posição de desvantagem.

O lulismo é a tradução dessas disposições num programa político. Limitado, adaptativo, mas marcado por um genuíno desejo de responder às premências mais gritantes da população mais pobre.
Quem procura um santo, deve procurar em outro lugar, não na política, muito menos na política brasileira. Os santos, na política, ou são logo reduzidos à insignificância ou, pior ainda, são santos fajutos, falsificados (não estou me referindo especificamente a ninguém e da minha boca não sairão as palavras "Marina" ou "Silva".)

Não é o momento de chorar porque se descobriu tardiamente que Lula virou lobista de empreiteira. A perseguição judicial e midiática contra ele continua sendo um grave atentado às liberdades e ao Estado do direito. Reagir contra ela não depende de gostar do ex-presidente ou de suas políticas. É uma questão de defesa da democracia.

O outro ponto é saber quem será Lula em 2018. Se ele for capaz de liderar uma frente de enfrentamento dos retrocessos e estiver disposto a estimular a reativação do movimento popular, então estarei com ele, apesar de todas as críticas. Mas se ele for simplesmente a saída para a normalização do golpe e mesmo a tábua de salvação da elite política, como dão conta os boatos recentes, então estarei contra, apesar de todo o respeito.

PS. Se é para alguém se decepcionar com Lula, então, por favor, que não seja por causa do depoimento de Emílio Odebrecht. Cada vez que leio trechos dele, tenho que dominar meu asco. Ele fala sempre do alto de sua posição de grão-burguês, revelando a cada frase sua condescendência e desprezo pelos trabalhadores e seu desconforto, sua inconformidade com o fato de que um trabalhador pôde chegar ao poder. É um monumento ao preconceito de classe.

Daqui

segunda-feira, março 20, 2017

Um fenômeno chamado Lula

Lula é um desafio à inteligência das elites nacionais e de setores hidrofóbicos, atrasados e analfabetos da classe média. O nordestino pobre, retirante, símbolo de um Brasil infatigável, referência para milhões de brasileiros continua a instilar ódio nos olhos com lentes de contato do andar de cima - e daqueles que não têm lentes, mas que acham os seus olhos mais bonitos do que os dos outros. Certamente, o ex-operário e sindicalista ainda faz tremer muita gente que, pode não gostar dele, mas que o respeita pela força de identificação popular que ele possui.

Estava assistindo ao vídeo que mostra a sua chegada à cidade de Monteiro, no interior da Paraíba, junto com a presidenta eleita em 2014, Dilma Rousseff - defenestrada por um golpe parlamentar em 2016 - para inaugurar o projeto de Transposição do Rio São Francisco na quela cidade. Fiquei impressionado com o calor da recepção do povo paraibano. Na verdade, a qualquer lugar que Lula fosse, no interior do país, ele seria abraçado e aplaudido por um simples motivo: Lula tem o cheiro do povo; possui uma linguagem que alcança o coração dos homens e mulheres trabalhadores deste enorme e conturbado país. Lula consegue abraçar, beijar, apertar a mão; falar da passagem de ônibus, da conta de luz, do arroz, da carne, do feijão nosso de cada dia. 

Impossível ouvi-lo falar sem que haja uma necessária vinculação entre aquilo que é falado e aquilo que é vivido pelos interlocutores. É, por isso, que Lula tem plateia. Não se trata de ignorância por parte da grande massa. É gesto de identificação com a sua linguagem transparente, clara e objetiva como a linguagem do povo, linguagem esta sem os afetamentos arcaicos da mesóclises desnecessárias ou da ortoépia gestada por presunção.

Poucos políticos na história do Brasil possuem uma capilaridade social tão funda quanto Lula. A sua força emana justamente de algo que os chamados "políticos profissionais" não possuem: o carisma. Tem carisma ou é carismático aquele sujeito que é capaz de fazer resplandecer uma energia que contamina, que torna a sua fala, as suas ações, a sua personalidade em algo atraente. Conviver com ele, está ao seu lado torna-se algo importante, confortador e necessário.

A Folha de São Paulo, um dos jornais mais conservadores desse país - e lido por setores inteiros da classe média - no dia de hoje, fez uma reportagem com leve e subliminar ironia sobre o ato na Paraíba. Quando noticiam o nome de Lula, associam semioticamente o seu nome sempre a processo ou corrupção com finalidades discursivas evidentes.  Existe uma caçada sistemática a Lula. Desde que ele entrou para a vida pública - isso ainda nos anos 70. Sempre forjaram epítetos; falas preconceituosas; ou meras destilações de lugares-comuns tão próprios do sujeito que toma a sua ração diária de veneno fornecida pela mídia hegemônica, pertencente aos grandes grupos associados ao capital. São oligarquias atrasadas, que trabalham diuturnamente para transformar o país em um lugar pouco confortável para os trabalhadores, pois os interesses que eles reivindicam é o da rapinagem imediata das riquezas nacionais.

Vendo o vídeo, fiquei admirado. Quanto mais a mídia bate, tenta abalar a sua reputação, mas o povo o aplaude. E aí fiquei pensando: "Sr. "juizinho" Sérgio Moro, as elites brasileiras e os setores iludidos da classe média, desejam que Lula seja preso incontinente, pois senão ele leva a eleição de 2018". E não sou eu quem diz: é o povo!

domingo, março 19, 2017

O que significa ser de direita ou de esquerda

Esquerda e direita não são noções estanques, homogêneas, mas é errado pensar que não existem no Brasil. Com os recentes acontecimentos, é possível que muitas pessoas não saibam exatamente como se posicionar frente a essa celeuma de vozes na imprensa, nas redes sociais, nas ruas e no dia a dia. Há narrativas em disputa e é preciso compreender o que elas dizem, para quem dizem e o que querem. Mas isso requer uma compreensão histórica do significado desses termos.

As noções de direita e esquerda têm origem na Revolução Francesa de 1789. Estão relacionadas aos lugares ocupados pelos estados gerais na Assembleia Nacional Francesa. À direita do rei ficavam o primeiro e o segundo estados, o clero e a nobreza; à esquerda, o terceiro estado, representado pela burguesia e o povo. Com o terceiro estado estava o desejo de superação da ordem antiga e a instauração de uma nova ordem.

Legitimada pela filosofia Iluminista, a burguesia abriu uma perspectiva de futuro, de emancipação do homem através dos ideais de liberdade e igualdade e que veio a ter seu ponto culminante na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Através do jacobinismo, a politização da pobreza e das questões sociais ganhou contornos inéditos e abriu caminho para a emergência das vertentes socialistas do século XIX, que levaram adiante o projeto de construção de uma sociedade voltada para a inclusão dos mais pobres.

A direita é, portanto, o lugar dos ricos, daqueles que não querem perder privilégios nem fazer concessões de direitos. A esquerda é o lugar dos pobres, daqueles que querem mudar a ordem social para ampliar e universalizar direitos, de onde vêm os ideais de liberdade e igualdade que pautaram a Revolução. A esquerda está relacionada à abertura de uma perspectiva de futuro inclusiva e representa a contestação dos privilégios de uma minoria, mantidos em detrimento da maioria, representa a ânsia pela mudança e pela transformação social. Ser de esquerda é não se conformar ao status quo, não aceitar a naturalidade das hierarquias sociais e as desigualdades que elas engendram, não se conformar à exploração do homem pelo homem nem desistir de pensar a utopia e problematizar projetos de um futuro melhor.

Foi das ações e pressões dos movimentos trabalhistas de esquerda dos séculos XIX e XX que vieram, por exemplo, as principais conquistas para a classe trabalhadora. A origem dos conceitos vem, portanto, da Revolução Francesa e os matizes que esses termos assumiram posteriormente não alteram seus significados originais. O surgimento de uma extrema esquerda (socialismo soviético) e uma extrema direita (fascismo e nazismo) no século passado estão relacionados às reações de algumas nações e grupos sociais aos ideais originados na Revolução Francesa e sua emergência esteve diretamente relacionada à guerra total que abocanhou as potências europeias entre 1914-1918.

Ser de esquerda, portanto, nada tem a ver com culto ao Estado ou a ditaduras,  nem a esquerda é inerentemente anti-democrática, como a direita inculta tem repetido à exaustão. Esquerda é uma visão de mundo em favor dos menos favorecidos. Esse é o sentido original do termo. Com o fim do socialismo real e o definhamento do discurso revolucionário de esquerda, o que sobrou para a esquerda foi a social-democracia, ou seja, a defesa de projetos sociais de inclusão e ascensão social e seu casamento com valores democráticos e garantia de liberdades individuais.

Ao contrário do que muitos pensam, a defesa de liberdades individuais não é apanágio da direita. A social-democracia é uma vertente de esquerda que surgiu entre o final do século XIX e o início do XX que rejeitava a noção de ditadura do proletariado como etapa necessária para a construção de uma sociedade mais justa e focava na junção de dois elementos: o ideal de justiça social do socialismo e o ideal de liberdade individual do liberalismo. A ideia era criar um partido e um movimento trabalhista voltado para reformas, não para a revolução.

Por isso, a esquerda hoje casa mais perfeitamente com ideais liberais do que a direita. Enquanto a direita defende mais fortemente apenas o viés econômico do liberalismo, isto é, a supremacia do mercado e a retirada da mão protetora do Estado sobre os pobres – isto é, o a eliminação de políticas sociais – o liberalismo político de matriz norte-americana trouxe para o plano da ação política a defesa das minorias, como negros e homossexuais. É daí que vem as políticas de cotas para negros em universidades e empresas e as políticas de proteção a minorias sociológicas, grupos que não possuem hegemonia cultural e sofrem formas variadas de violência e exclusão. As leis em defesa de negros, homossexuais e mulheres, por exemplo, se encaixam nesse paradigma.

A direita se opõe às políticas sociais liberais (e no Brasil ela atribui isso erroneamente a uma visão comunista) porque pensa que isso fere a meritocracia. Mas meritocracia sem igualdade de oportunidades é apenas um instrumento de exclusão. Restou, portanto, à esquerda se apropriar desses ideais e fazer política social para reduzir as desigualdades sociais, raciais e de gênero. Essas políticas fortalecem a democracia na medida em que proporcionam o acesso dessas minorias a espaços de onde estavam excluídos por uma série de questões históricas.

O papel da esquerda hoje é pensar a inclusão com a valorização das liberdades democráticas. Temos dois exemplos notáveis disso no continente com Obama e Mujica. A direita continua a ser o que sempre foi: ela quer manter privilégios, é conservadora, quer manter (conservar) a ordem social baseada na desigualdade, inclusive a desigualdade de oportunidades – por isso o discurso da meritocracia frequentemente escamoteia seus interesses de classe. Não raramente ela também flerta com ideais do fascismo (como xenofobia, militarismo e nacionalismo). Contra a visão progressista que caracteriza a esquerda, a direita reafirma a importância e atemporalidade da tradição, sempre pensada como elemento normativo e legitimador das desigualdades.

No Brasil, temos visto o surgimento de uma excentricidade: o indivíduo pobre que se declara de direita. Em geral, ele ignora completamente questões históricas envolvendo os conceitos de esquerda e direita, sua leitura política é pobre ou inexistente. De toda forma, o pobre de direita é um idiota útil a favor das elites; estas sim, e somente elas, conservadoras por convicção e por projeto político.

domingo, março 12, 2017

"Renoir" (2012), de Gilles Bourdos

O filme Renoir (2012), de Gilles Bourdos, é uma obra para sentir prazer. Ele desperta uma admiração profunda pela pintura do impressionista francês Auguste Renoir. Trata-se de um filme feito para proporcionar felicidade e bem-estar. 

O filme não tem como tema central a vida do pintor. O grande artista fica secundado pela história do seu filho Jean Renoir, que voltaria dos combates da Primeira Guerra Mundial, ferido, para reabilitar-se em casa. Quando desse retorno, Jean, que é tido como um dos maiores diretores da história do cinema ( autor de filmes como A regra do jogo - 1939), envolve-se amorosamente com uma das musas que posam para os quadros de Renoir-pai. 

Ou seja, o filme busca retratar esse envolvimento sentimental do jovem Jean com a belíssima Andrée Heuschiling, que se tornaria esposa de Jean na vida real. A obra possui fortes preocupações metalinguísticas, pois a fotografia procura seguir, esteticamente, as características da pintura de Auguste Renoir. As paisagens buscam retratar sempre a tranquilidade, a suavidade, os tons claros e harmônicos. 

Banhista penteando-se (1893). Uma grande obsessão - pintar banhistas
Mostra ainda a paixão do pintor pela arte. O agravamento dos problemas de saúde, impõe grandes suplícios ao grande artista. Renoir sofria com artrite e reumatismo. Na sua paixão por pintar, ele amarrava os pincéis aos dedos com tiras de pano. 

O que conta mesmo no filme é a preocupação de Renoir em pintar o nu feminino. O autor de As grandes banhistas, um dos quadros mais famosos dos impressionistas, possuía um olhar privilegiado. Ele conseguia ajustar as cores da natureza, a essência daquilo que existe de mais suave e belo e harmonizá-las com o corpo feminino. Curiosa é a fala de Renoir-pai ao filho Jean: "Não gosto de usar tons escuros. A vida já oferece demais isso. Deixo que outros se encarreguem disso". 
Nu feminino à luz do sol (1875)
Curiosamente, quanto mais o artista era acossado pela dor, mais ele sentia um ímpeto por pintar o nu feminino. Suas telas se iluminavam com cores como o açafrão, o laranja, o azul, o vermelho. Assim, Renoir busca fundir o ser humano à natureza. Sua busca insaciável é colocar o ser humano no mesmo lugar, exposto à mesma luz, a oferecer uma imagem de funda unidade. O pintor buscava criar uma ideia de totalidade, onde tudo é belo, é suave, é necessário, é feliz. Para Renoir a pureza da arte deve se mesclar àquilo que existe de mais puro na vida e na natureza. 

Assistir a Renoir é um verdadeiro deleite - a começar pela beleza da atriz Christa Theret, principalmente quando ela fica a nua. Seu corpo parece ser uma extensão da ideia de perfeição criada por Renoir. O enredo talvez não seja tão grande como a obra do pintor impressionista, mas o fato de evocá-la o torna necessário. 

domingo, março 05, 2017

"Vício Inerente" (2014), de Paul Thomas Anderson

"Vício Inerente" (Inherent Vice, 2014) é um filme estadunidense, de Paul Thomas Anderson. Trata-se de uma obra que exige paciência e força de vontade para ser vencida. Em vários momentos, vi-me na iminência de deixar para lá a ideia de completá-lo. Vale mencionar ainda que já havia tentado, em duas outras ocasiões, assistir a ele. 

O filme é baseado em um romance homônimo do escritor Thomas Pynchon o que, por si só, já demanda uma energia e uma capacidade de raciocínio incomuns para entendê-lo. Ler Pynchon não é uma atividade para qualquer mortal. É necessário que se tenha a capacidade para acompanhar a sua linguagem, seu humor fino e a densidade de sua escrita. Acredito que não tenha sido fácil para Anderson adaptar uma obra do escritor. 

O filme, por sua vez, busca ser fiel a Pynchon. Não pretendo fazer uma resumo da obra. Apenas apontar algumas características bem básicas e superficiais filme. Como falei no início, a obra exige uma concentração afinada. Mas, mesmo diante disso, ainda sentimos certa dificuldade para acompanhar a trama. O filme possui quase duas horas e meia de duração. Para complicar essa temporalidade, Anderson vai "colando" novos personagens de forma arbitrária a cada nova cena. Eles aparecem. De repente, somem. Outros aparecem para não mais surgir. Essa colagem de personagens impede o espectador a atentar a funcionalidade de cada um deles. Para quê eles estão ali? Qual é o papel para o desenlace da história? Quem é aquele?

O fato é que a obra mistura características de um noir, elementos intrínsecos de uma comédia, além de carregar por trás a filosofia anárquica da geração hippie, focando também no debate político das décadas de 60 e 70. Há a menção a Nixon, à Guerra do Vietnã e aos Panteras Negras, por exemplo. Doc Sportello (Joaquim Phoenix), o personagem principal da obra é uma figura caricaturesca - e extraordinariamente bem trabalhado por Phoenix. 

Após conseguir chegar ao final da obra - e observar a história como um todo - temos que admitir que é um filme fascinante e com muitas sutilezas. Exige uma leitura para além das aparências. Não é um filme fácil, para espectadores preguiçosos. Existe uma beleza invisível na obra, o que nos leva a um sorriso por sabemos que Anderson não fez um filme qualquer. Ver o filme é realizar um grande exercício intelectual. 

sexta-feira, março 03, 2017

"O grande ditador" (1940), Charles Chaplin

O grande ditador (1940) é uma das obras mais conhecidas de Chaplin - não é o seu melhor filme, no meu ponto de vista. A clássica cena em que o ditador da Tomânia, Adenoid Hynkel, dança com o globo terrestre entrou para a história do cinema. Não há quem não a tenha vista. O filme de Chaplin, o primeiro dele a usar a fala, é uma sátira política contra o totalitarismo. 

No filme, ele provoca risos retratando as duas figuras mais sequiosas pelo poder à época - Benito Mussolini e Adolf Hitler. O primeiro, líder de um estado fascista; o segundo, o fomentador de uma das doutrinas mais terríveis da história da humanidade, o nazismo. No filme de Chaplin, Adenoid Hynkel, ditador da Tomânia, personifica Hitler; e Benzino Napoloni, ditador da Bactéria, personifica Benito Mussolini. 

Ao final do filme, encontramos um discurso carregado pelo espírito de liberdade da democracia - e, por que não, de espírito socialista? Chaplin acabou amargando a acusação de ser comunista por conta de sua fala no filme. É que poucos sabem que a matéria essencial do socialismo é o desejo de liberdade e igualdade entre os homens. Esse altruísmo é necessário para que o mundo seja um lugar de humanização e não de barbárie. Creio que essa tenha sido a mensagem essencial de Chaplin nesse bonito filme.

Abaixo, coloquei o texto e o vídeo do discurso:



"Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, gentios... negros... brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos somos assim. Queremos viver pela felicidade dos outros, não pela miséria dos mesmos. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloqüente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: “Não vos desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbirão e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao mesmo. E assim, enquanto morrerem homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos! (segue o estrondoso aplauso da multidão).

Então, dirige-se a Hannah:

Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!."