sexta-feira, dezembro 31, 2021

Balanço cinematográfico de 2021.

 

            

                Eis que chegamos ao final do ano de 2021, um ano repleto de nuances e eventos complexos; de dificuldades, cansaços multiplicados; alguns desestímulos e muito pessimismo. O cenário de terra arrasada parece não ter fim. Morar em um país como o Brasil... Viver um momento político com um governo distópico catalisa ainda mais os piores cenários. Todavia, falemos de coisas boas. É isso que alivia e acalma; impulsiona as nossas ações, catapultando-nos para geografias de esperanças. E é assim que quero acreditar que 2022 será.

                Após essa pequena digressão inicial, quero afirmar que o objetivo desta postagem é fazer um balanço fílmico do ano que ora se extingue. Analisar as produções que vi. Assisti a menos filmes do que o ano passado. Em 2020, passei da casa de uma centena; este ano fiquei apenas em 79. Todavia, ultrapassei a meta inicial, que era de setenta filmes.

                Abaixo, farei três listas: A primeira diz respeito aos dez principais filmes que vi em 2021; em segunda lugar, uma lista com os dez principais filmes brasileiros vistos ao longo do ano; e em terceiro, a ordem dos filmes de Ingmar Bergman (este foi o ano Bergman). Procurei ver pelo menos dez filmes dele. Agora, fazendo o balanço, verifiquei que consegui ver apenas nove.  

                O próximo ano será dedicado ao cineasta japonês Akira Kurosawa. O objetivo inicial será assistir a doze filmes dirigidos por ele – um por mês.

(A)    Lista com os dez melhores filmes do ano:

1.       A fonte da donzela – Ingmar Bergman (1960);

2.       Druk – Outra Rodada – Thomas Vinterberg (2020);

3.       Fanny e Alexander – Ingmar Bergman (1982);

4.       Não olhe pra cima – Adam Mckay (2021);

5.       Judas e o Messias Negro – Shaka King (2021);

6.       Quanto mais quente melhor – Billy Wilder (1959);

7.       Paris, Texas – Wim Wenders (1984);

8.       Nomadland – Chloé Zhao (2020);

9.       Deus é mulher e o seu nome é Petúnia – Teona Strugar Mitevska (2019);

10.   O Apartamento - Asghar Farhadi (2016);


(B)    Lista com os dez melhores filmes brasileiros.

1.     7 Prisioneiros – Alexandre Morato (2021);

2.     Rio, Zona Norte – Nelson Pereira dos Santos (1957);

3.     São Paulo – Sociedade Anônima – Luís Sérgio Person (1965);

4.     A vida invisível – Karim Ainouz (2019);

5.     Breve miragem de sol – Eryk Rocha (2019);

6.     O assalto ao trem pagador – Roberto Farias (1962);

7.     Elis – Hugo Prata (2016);

8.     Limite – Mário Peixoto (1931);

9.     400 contra 1 – Caco Souza (2010);

10. Marighella – Wagner Moura (2019)

 

(C)    Lista com os dez melhores filmes de Igmar Bergman.

1.       A fonte da donzela (1960)

2.       Fanny e Alexander (1982)

3.       Gritos e Sussurros (1972)

4.       Morangos Silvestres (1957)

5.       Cenas de um casamento (1973)

6.       Vergonha (1968)

7.       Monika e o desejo (1953)

8.       A paixão de Ana (1969)

9.       O rosto (1958)

 

quarta-feira, dezembro 29, 2021

Leituras de 2021.

 


Estamos chegando ao final de 2021. Um óbvio ululante. Encontro-me no meio de algumas leituras – seis livros pelo menos. Há programações variadas para 2022. Há três listas prontas para o próximo ano, o que totaliza mais de trinta livros. Vale mencionar ainda que sempre surge alguma leitura extemporânea; algum lançamento de última hora o qual acaba forçando imperiosamente uma leitura urgente.

Com relação ao ano de 2021, um fato importante e positivo se deu: li quantitativamente mais do que no ano de 2020. Todavia, esse “mais” ainda é insuficiente. Gostaria de ter lido duas vezes mais do que li. Todavia, minha rotina com dois empregos gera impedimentos. Importante ter os pés no chão para não ficar frustrado.

Abaixo, colocarei as dez mais importantes leituras realizadas em 2020

1. Clarice – Benjamin Moser
2. Revolução dos Bichos – George Orwell
3. O avesso da pele – Jeferson Tenório
4. O coração das trevas – Joseph Conrad
5. Cidades Mortas – Monteiro Lobato
6. Marco Aurélio – biografia – Pierre Grimal
7. Vista Chinesa – Tatiana Salem Levy
8. Perto do coração selvagem – Clarice Lispector
9. Baratas – Scholastique Mukasonga
10. A República das Milícias - Bruno Paes Manso

Vale destacar ainda livros como Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior; Nu, de botas, de Antonio Prata; O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos; Se a rua Beale falasse, de James Baldwin; e Divórcio, de Ricardo Lísias. 



terça-feira, dezembro 28, 2021

"Vista Chinesa", de Tatiana Salem Levy

 


                “Lembro de ter pensado, em que momento ele começou a ter tesão? Mas ele tem tesão em quê, exatamente? Em me ver perdida, com medo nauseada, ansiosa? ”

           “Vista chinesa”, da jovem e talentosa Tatiana Salem Levy, é uma leitura dolorosa, que nos mantem num estado de máxima atenção, com os sentidos atentos. É um daqueles dramas que nos empurram para que sintamos a dor da personagem. De algo que incomoda. No final do livro, descobrimos que a história é baseada em fatos reais; que a vítima, uma pessoa influente do meio cultural, corajosamente, permitiu que o fato ocorrido quatro anos antes, fosse narrado em forma de romance.

O Brasil é um país que possui um número altíssimo de estupros todos os anos. De acordo com o Mapa da Violência, divulgado em 2019, em 2018, houve quase 70 mil estupros no país. Um fato que estarrece é que esses são os casos oficialmente conhecidos pelo Estado. Há inúmeros casos que permanecem no anonimato. É um tipo de crime que possui baixa notificação à polícia. De acordo com a Pesquisa, todos os dias ocorrem algo próximo de duzentos estupros que são oficialmente notificados. Os agressores são, em sua maioria, homens – quase 94%.

O livro de Tatiana Salem Levy nos conta a história de infortúnio de Lúcia. Acostumada a correr quase todos os dias, a profissional que estava realizando um importante trabalho para a organização das Olimpíadas no Rio de Janeiro, em 2016, em um dia qualquer, decidiu correr em um horário diferente daquele que estava acostumada a correr. O trajeto era tranquilo. Distava seis quilômetros e levava, no máximo, quarenta minutos para ser percorrido. Enquanto corria até à Vista Chinesa, um importante ponto turístico do Rio de Janeiro, localizada na Floresta da Tijuca, foi abordada por um sujeito armado. Arrancada para dentro da floresta, acabou sendo estuprada de forma violenta por um sujeito o qual ela procura, durante o livro, identificar, o que faz com que ela sofra bastante; pois ela é obrigada a acordar o trauma adormecido, capaz de gerar pesadelos. As fragrâncias fazem-na lembrar de fragmentos do acontecimento nauseante. 

Tatiana Salem Levy

A vítima de estupro geralmente não costuma falar com tranquilidade sobre o ocorrido. Mas o livro é resultado de uma subversão, pois a vítima realizou inúmeras entrevistas com a escritora, contando os detalhes do evento. Analisando por essa perspectiva, poder-se-ia achar de que se trata de um livro problemático. Entretanto, Tatiana consegue orquestrar a narrativa romanesca de forma hábil. A escritora coloca nas mãos da narradora, a possibilidade de descrever o fatídico acontecimento por meio de uma carta escrita para as filhas. O gênero carta permite um tipo de escrita versátil. É assim que ela consegue contar a história, divagando por experiências que, num primeiro momento, parecem não ter ligação com o evento da Floresta da Tijuca. Para conseguir isso, ela explora com tenacidade o tempo cronológico. Alguns capítulos são curtos e parecem independentes, relatando detalhes de uma outra história. Todavia, está tudo ali; faz parte de um liame. O aspecto aleatório da narrativa é apenas aparente. No fundo, ela pretende descrever os aspectos caóticos que passaram a existir na vida da personagem.

O livro é um relato corajoso. Uma leitura necessária. Coloca-nos na pele de uma pessoa que sofreu um dos piores tipos de violência que existem, a violação do corpo de forma não consentida, e as consequências psíquicas e físicas desse tipo de experiência traumática. Vale a leitura!

segunda-feira, dezembro 27, 2021

Ruanda, Scholastique Mukasonga e outros fatos

  

Bandeira de Ruanda. Vista da capital Kigali.

Ruanda é um minúsculo país do centro-leste do continente africano. Para as proporções da África, trata-se de um país pequeno. Possui o tamanho equivalente ao estado de Alagoas. O país possui um relevo montanhoso, repleto por vales e colinas. É um país bonito. Situa-se na região dos grandes lagos africanos. Do lado oeste, o país é banhado pelo lago Kivu, um dos maiores da África. Durante o período do genocídio de 1994, muitas vítimas foram atiradas em suas águas doces. O Kivu tem parte de suas águas no território do Congo e a outra parte em território ruandês.

Do ponto de vista da história, Ruanda era formado por vários reinos. No final do século XIX, passou a ser um território pertencente à Alemanha. Os alemães impuseram uma colonização ao território, após a Conferência de Berlim (1885). O território passou a ter vínculos com a Alemanha a partir de 1890. Ao final da 1ª Guerra Mundial, a Alemanha sofreu uma fragorosa derrota. Ruanda foi entregue aos belgas. Enquanto era propriedade alemã, o país foi explorado de todas as formas. Todavia, com a transferência para os belgas, os trabalhos forçados, a marginalização e a manipulação política levou à criação de um abismo social que determinaria o futuro do país. Os belgas traziam consigo um modelo de dominação absurdamente violenta e predatória. Vale mencionar a forma como dominaram cruelmente o Congo. Leopoldo II, um dos mais infames monarcas europeus de todos os tempos, construiu uma relação de máximo horror com os países dominados.

É importante salientar, que apesar de Leopoldo II ter morrido em 1909, a relação de exploração, vilania e depredação social continuou com a exploração belga. A liderança política de Leopoldo II produziu extermínios, torturas, violência e genocídio. A história do Congo explica muito bem isso. O país vizinho a Ruanda passou a ser uma propriedade, um feudo do monarca. O nome dado por Leopoldo II ao país era uma grande ironia – “Estado Livre do Congo”. Havia uma capa de aparência de suave tranquilidade vendida para o mundo, mas o que os colonizados experimentavam no dia a dia era inumano. Ele criou uma empresa para explorar o país e semeou a violência como elemento de difusão de sua política – assassinatos, mutilações, trabalhos forçados; crueldades variadas. Estima-se que o número de mortes oscile entre 1 e 15 milhões de pessoas, o que coloca a política de Leopoldo II como uma das mais criminosas da história. Segundo alguns historiadores, a população do Congo era de 20 milhões de pessoas à época da chegada dos belgas. Estima-se que a metade morreu enquanto o país foi chamado de “Estado Livre do Congo”[1].


Recentemente eu li “O coração das trevas”, do Joseph Conrad, que tem como pano de fundo o imperialismo europeu, a exploração e a morte contra o continente africano. O livro retrata o caos, a loucura, a máquina ensandecida de pilhagem que foi implantada com a presença europeia no continente. A narrativa de Conrad lança luz sobre a violência colonial belga contra o Congo. Como diria Conrad em sua febricitante narrativa: “O horror! ” O máximo “horror! ” é o que os belgas realizaram no Congo.


A relação que os belgas estabeleceram com os ruandeses imprimiu o domínio e as mudanças nas relações sociais do país. Os europeus não estavam preocupados com os grupos populacionais do continente. Não levaram em conta particularidades históricas. É importante salientar que Ruanda é constituída basicamente por dois povos – os tutsis e os hutus. Do ponto de vista físico, os tutsis eram numericamente inferiores. Ocupavam as posições de liderança na formação social e política do país. O país é essencialmente agrário. O contingente populacional trabalhava no campo. Tinham uma relação de intimidade com a terra e com os instrumentos que a manipulavam.

Do ponto de vista físico, os tutsis distinguiam-se dos hutus; estes últimos eram a maioria do país (85% hutus; 12% de tutsis). Eram mais altos do que os hutus. O cabelo era distinto. O nariz possuía traços também de distinção. Com a chegada dos europeus, teorias higienistas foram disseminadas no país. Houve uma propagação da ideia de que os tutsis estariam mais próximos dos europeus, criando, assim, um traço de nobreza. Teorias lombrosianas[2] foram empregadas.

Scholastique Mukasonga

Dessa forma, os hutus foram relegados do ponto de vista identitário como uma “raça menos nobre” pelo distanciamento dos traços com os europeus. Cria-se um ódio a essa relação dos tutsis com os europeus. Ódios entram em ebulição. Fervem. Cria-se uma divisão do nosso grupo contra o grupo deles. No final dos anos 50, após vários lances políticos, que incluiu o assassinato de um monarca de um clã dos tutsis, os hutus se tornaram efetivamente majoritários politicamente. Assumiram a liderança do país. Após um referendo organizado pelas Nações Unidas, Ruanda torna-se uma república. Em 1º de julho de 1962, o país torna-se independente sob a liderança dos hutus. Grégoire Kaiybanda, o primeiro ministro do período de transição, torna-se o chefe do país. Inicia-se um período de perseguição e opressão contra os tutsis.

Esse texto é a parte introdutória para alguns comentários que farei após a leitura de “Baratas”, de Scholastique Mukasonga. Ela narra as memórias dolorosas da perseguição do início dos anos 60 até o genocídio de 1994.      

[1] O livro “O fantasma do Rei Leopoldo”, de Adam Hochschild, é um dos mais importantes documentos sobre a política cruel imposta pelos belgas na pessoa de Leopoldo II. Começarei a leitura por esses dias.

[2] Cesare Lombroso foi um médico, psiquiatra e criminalista. Suas pesquisas resultaram no livro “Homem Deliquente”, um marco para a teoria criminal do século XX e início do século XX. Lombroso a partir de suas pesquisas estabeleceu que as questões que envolviam os delitos estavam ligadas aos traços biológicos dos indivíduos. Sendo assim, para ele o crime era algo que dizia respeito a certos sujeitos que já nasciam delinquentes. Essa análise lombrosiana era vista como rigorosa ciência.  Mais informações: https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/625021486/cesare-lombroso-e-a-teoria-do-criminoso-nato

segunda-feira, dezembro 20, 2021

"O avesso da pele", de Jeferson Tenório. Algumas palavras

 

“No sul do país, um corpo negro será sempre um corpo em risco”. Jeferson Tenório

                 Li “O avesso da pele” boquiaberto. Estou com uma quantidade enorme de livros para ler. Há listas. Projetos. Planilhas. Uma tentativa de organizar de forma disciplinada uma sequência com o pouco tempo de que disponho. Mesmo diante desse metodismo, resolvi iniciar a leitura do romance de Jeferson Tenório, quebrando a lógica e colocando para trás minhas estratégias. Confesso que foi uma das leituras mais profícuas e reveladoras do ano. Li no primeiro semestre “Torto Arado”, apesar de ser uma história bastante diferente, confesso que o livro de Itamar Vieira Junior não me marcou tanto quanto o livro de Jeferson Tenório.

                “O avesso da pele” gravita no mundo da ficção, mas possui a força de tratado sociológico sobre aquilo que está encoberto por camadas históricas – o racismo de uma sociedade desigual e preconceituosa. Tenório que nasceu no Rio de Janeiro e se radicou em Porto Alegre, põe no primeiro plano a capital gaúcha, mas os eventos da narrativa poderiam acontecer em qualquer cidade brasileira. Os problemas apontados por ele no livro são onipresentes em uma sociedade como a nossa, que conviveu de maneira umbilical por mais de três séculos com a escravidão. Uma sociedade que invisibiliza certas pessoas, notadamente por causa da cor da pele, e os tornam alvos fáceis do racismo e da violência.

                É bom saber que pessoas como o escritor tragam isso para o centro do nosso debate. Esse tipo de preocupação não é original, mas atualiza a discussão sobre o tema. Lima Barreto, há cem anos, já havia esboçado essa preocupação. O romance “Clara dos Anjos” aponta para isso, enunciando nossas desigualdades; uma certa identidade nacional, forjada a partir da discriminação.  

                A frase que pincei do livro e que encabeça esse texto escancara o problema do racismo no Brasil. Não é um problema do Sul do país. Certamente, Jeferson Tenório tenha elaborado tal sentença baseado em suas observações, já que o Sul do país é conhecido por, majoritariamente, ter um contingente populacional branco. Outro fato é a memória da presença dos europeus na região, o que potencializa ainda mais a noção de branquitude. Todavia, os corpos negros são alvos em risco em qualquer lugar do país.

                O que impressiona em “O avesso da pele” é a clareza do texto. Tenório conduz o texto com uma habilidade que impressiona. Ele sabe levar o leitor para labirintos, para encurralamentos. Em alguns momentos, a respiração fica suspensa. Alguns fatos estão eivados de um realismo típico da sociabilidade brasileira. O texto assusta pelo grau de verossimilhança. A boa literatura possui essa capacidade. Ela nos tira do chão. Apresenta-nos um mundo que é mais autêntico do que aquele em que vivemos.  

                A história é contada por Pedro, um jovem negro, que descreve a dolorosa trajetória de sua família. Ele fala sobre a difícil história da sua mãe; e as dificuldades as quais seu pai enfrenta. Além desses fatos, Pedro vai costurando situações que ocorrem com ele – relacionamentos, descobertas, vida acadêmica; o seu lugar na cidade de Porto Alegre. A cidade é apresentada como um espaço segmentado. Há certos locais próprios para quem é negro, uma realidade que não é só da cidade.

                Não pretendo expor mais detalhes da história. Desejo apenas refletir sobre os aspectos que tornam o texto poderoso, pois a sensibilidade do escritor pode ser notada em cada frase, em cada capítulo. Alguns capítulos são terminados de forma brilhante. Há sempre um acontecimento muito bem contado. Apesar de lidar com fatos caros e complexos, o livro não soa artificial. Não se pode dizer que o autor não teve fôlego para levar até o fim aquilo que pretendeu.   

                Após a leitura, ficamos com a certeza de que o Brasil é uma país cuja estrutura de desigualdade possui na figura das pessoas negras um dos seus principais alvos. Em quinhentos anos de história, os negros sempre foram vitimados por uma estrutura perversa. Até 1888, oficialmente os negros eram mercadorias, propriedades. Eram comprados em feiras. Tratados como animais. A lei os categorizava como “semoventes”. Certas atividades braçais não eram realizadas, pois eram consideradas atividades de escravos. Apesar do abolicionismo ter ocorrido há aproximadamente 124 anos, a memória cruel da escravidão ainda está preservada. Os negros continuam sendo aqueles colocados à margem do nosso processo social – vivem menos, ganham os piores salários; moram pior; são alvos de abordagens “desastradas” da polícia; lotam os presídios; não ocupam os melhores postos de destaque (há quantos políticos negros, quantos jornalistas negros, quantos executivos negros, quantos escritores negros?), apesar de o número das pessoas que se declaram negras ser maior do que o número daqueles que são brancos.

                Excelente leitura.

               

sexta-feira, dezembro 17, 2021

Literatura nacional para 2022.

 


            No final de 2020, escolhi dez livros de escritores nacionais para ler no ano de 2021. Foi uma iniciativa para me obrigar a ler autores nacionais. Parecia uma decisão ousada e acertada. A ideia era ler obras clássicas, famosas por aquilo que representam. Há críticos contumazes que procuram minimizar a qualidade dos autores nacionais. Existem até aqueles que afirmam que não há uma literatura propriamente “brasileira”. Eu, do alto de minha mais retumbante pequenez, afirmo que há – e de excelente qualidade.

            Nossa literatura é do tamanho da nossa história. Cada sociedade possui seus próprios processos históricos; seus dilemas sociais, o que permite que cada autor, cada escritor, seja influenciado pelo meio em que se encontra. Uma literatura poderosa e grandiosa como a de William Faulkner não poderia ter sido escrita em outro lugar do planeta, senão sob as condicionantes históricas experienciadas no Sul dos Estados Unidos. As irmãs Brontës não teriam criado aquelas personagens femininas tão marcantes, caso não vivessem naquele período do século XIX na Inglaterra vitoriana. Zola não teria fermentado o seu projeto naturalista, caso não vivesse na França diante daqueles condicionamentos históricos.

            O Brasil, por sua vez, com seus grupelhos aristocráticos, submetido à influência europeia, numa sociedade altamente desigual e com grande contingente de escravos não teria produzido outro tipo de literatura, senão esta que produziu. Portanto, quando leio os autores nacionais, principalmente aqueles que são anteriores ao século XX, sinto-me integrado à história do país.

            Essa reflexão pequena e acanhada é a base daquilo que permite com eu me interesse pela literatura produzida no Brasil.

 Em 2021, escolhi os seguintes livros:

 1 - Canaã - Graça Aranha;

2 - O cabeleira - Franklin Távora;

3 - Cidades Mortas - Monteiro Lobato;

4 - Inocência - Visconde de Taunay;

5 - Memorial de Aires - Machado de Assis;

6 - O Ateneu - Raul Pompéia;

7 - Os sertões - Euclides da Cunha;

8 - Marafa - Marques Rebelo;

9 - Guerra dentro do beco - Jorge de Lima;

10 - O amanuense Belmiro.

             Para 2022, foram escolhidas as seguintes obras:

1 – A menina morta – Cornélio Penna;

2 – O bom crioulo – Adolfo Caminha;

3 – Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa;

4 – Capitães de Areia – Jorge Amado;

5 – Antes do baile verde – Lygia Fagundes Telles;

6 – O Ventre – Carlos Heitor Cony;

7 – Quarup – Antonio Callado;

8 – Encontro Marcado – Fernando Sabino;

9 – Sargento Getúlio – João Ubaldo Ribeiro;

10 – Caminhos Cruzados – Érico Veríssimo.  

             Da lista de 2020, ainda me encontro lendo o poderoso “Os sertões”, de Euclides da Cunha.

segunda-feira, dezembro 13, 2021

"Guerra dentro do beco", de Jorge de Lima


 “Como dói existir”.  

Jorge de Lima, In “A guerra dentro do beco” p. 95

 

            Em 2018, enquanto dirigia de João Pessoa, a bela capital da Paraíba, e me encaminhava para Maceió, outra singular cidade que repousa dentro de minha admiração, testemunhei algo que elevou as minhas ideias. Eu continuei a conversar com a minha esposa e a minha cunhada que estavam comigo no carro, mas os pensamentos se descolaram, alcançando as montanhas que levam ao passado. Logo após ter saído do estado de Pernambuco, cheguei ao estado de Alagoas. Foi quando tive a oportunidade de ver uma placa que conduzia à cidade de União dos Palmares, enquanto seguia pela BR 101. Pensei imediatamente no Quilombo dos Palmares e na figura mítica de Zumbi. Naquela porção do estado, encontra-se a Serra da Barriga, que abriga lendas, histórias e que parece fazer ecoar ainda os gritos dos escravos que resistiram à violência do estado colonial.

            Imaginei que, um dia, poderia visitar a cidade. A região abrigou um dos símbolos da resistência dos escravos no Brasil colonial. Mesmo após a morte de Zumbi, os negros que não foram mortos pelos carrascos portugueses, tentaram levar à frente o projeto de liberdade.

            Além disso, lembrei do nome do escritor alagoano Jorge de Lima. Esses pensamentos me passaram pela cabeça rapidamente; numa espécie de lampejo. Sobre o Jorge de Lima não havia muitas informações. Apenas que era dele “A guerra dentro do beco”. O escritor mais proeminente de Alagoas é Graciliano Ramos. Jorge fica restrito a círculo mais secundário. Os dois foram contemporâneos. Graciliano nasceu em Quebrangulo, em 1892; Jorge nasceu um ano mais tarde, na já mencionada cidade de União, mais tarde sendo nomeada da forma como a conhecemos.

            Jorge de Lima é uma figura magnificente da prosa e da poesia nacionais.  É mais conhecido pela sua poesia com requintes místicos e simbolistas. O poema “A invenção de Orfeu” é uma pérola da Língua Portuguesa, podendo ser colocado ao lado de “Os Lusíadas” ou, numa esfera mais universal, ao lado de textos épicos como “A Divina Comédia”, de Dante ou “O Paraíso Perdido”, do poeta inglês John Milton.

            O escritor era uma figura que “experimentava”. Vivia à cata de novos projetos e possibilidades. Ao longo da vida, foi médico, escultor, poeta, político, professor, pintor, romancista, escritor. Vivia se reinventando. “Estreando-se”. Na prosa, Jorge escreveu algumas importantes obras, sendo a mais conhecida e relevante o romance idealista “Calunga”, que comprei recentemente e tenho por intenção começar a leitura assim que o tiver em mãos. “A guerra dentro do beco” começou a ser escrito ainda no final dos anos 30 e concluído nos primeiros anos da década de 40. Todavia, só foi publicado três anos antes de sua morte. É um livro denso, assim como eram densos os demais trabalhos do alagoano. A percepção inicial que se obtém, à medida em que se vai lendo o seu texto, é que somos colocados em uma prensa e, aos poucos, cordas vão nos apertando, sujeitando-nos lentamente em um abraço de serpente.

            O texto possui um arrojo, uma estrutura barroca. É religioso em sua essência. Jorge sabia disso. Era parte de seu projeto enunciar um mundo místico. Como numa sinfonia de Gustav Mahler havia estágios pelos quais os humanos com os seus conflitos passavam: havia a vida, as contradições, a angústia, o questionamento da própria vida, a resolução do conflito e a possibilidade de redenção. 

            Em “Guerra dentro do beco” há uma força pungente na linguagem. Jorge sabia manusear como ninguém a palavra. Elas surgem caudalosas. Essa força que brota da narrativa parece ser usada para criar paroxismos existenciais nas personagens. Viver é está diante de esferas de sofrimento. Onde encontrar a luz?

            Em meio à sociedade burguesa, o homem moderno é refém de percepções fugidias e de forças intestinas que geram confusão e opressão, para que as aparências sejam mais fortes do aquilo que temos na essência. O “beco” é esse lugar fundamental onde guerras e conflitos acontecem. E isso fica provado na vida de Bruna e Júlio Aguiar, as duas personagens principais do livro. Aos poucos eles são levados pelos fatos para dentro do beco. Nesse espaço íntimo repleto de vozes, sujeitos molestados pelas aparências sucumbem ante o desespero. Uma vida em que se foge do divino é uma vida sem sentido.

            É na guerra que o indivíduo aniquila sua finitude e suas limitações. A partir desse fato, ele está disposto a viver. Como diz a frase de Santa Teresa d’Ávila, encontrada por Bruna enquanto estava no hospital: “Morro para não morrer”. Para a alma atribulada, a morte é uma companheira capaz de gerar libertação.

            “Guerra dentro do beco” é um desafio. Sua leitura provoca incômodo. Sentimos as angústias das personagens; sentimos o próprio questionamento da vida. O tempo é uma força que potencializa dores e chagas, mas também pode gerar purificação, redenção.  

          Vamos ao décimo livro de literatura nacional - "Os Sertões", de Euclides da Cunha. Aquele tipo de leitura desafiadora, que prova se chegamos a um nível de maturidade leitora.

terça-feira, novembro 23, 2021

"Marafa", de Marques Rebelo

 

       

                Marafa designa, de acordo com certo dicionário, “vida libertina”, “devassa”; dessa forma, aponta para certo modo de ser. É uma palavra de origem africana. Dizer aquilo é uma marafa significa, entre outras coisas, afirmar que algo é libertino, imoral, obsceno, carnal.

            Pois justamente esse é o nome que o escritor modernista Marques Rebelo deu ao seu primeiro romance, escrito no agitado ano de 1935. Rebelo pertence àquela geração de escritores que tomaram de assalto a literatura brasileira na segunda geração modernista. Seu nome de nascimento Eddy Dias da Cruz. Como se pode ver, Rebelo é um nome artístico. Carioca de nascimento, Rebelo chegou a ingressar na Academia Brasileira de Letras – 1965 a 1973. Ainda muito cedo mudou para Barbacena em Minas Gerais. Foi nessa localidade que realizou as primeiras leituras.

            De volta ao Rio de janeiro, Rebelo ainda adolescente toma conhecimento da literatura de Machado de Assis e Manuel Antônio de Almeida, dois dos nomes que marcariam o seu estilo definitivamente. Excursiona pela medicina e pelo direito, formando-se neste último. Como era comum entre os intelectuais da época, exerce o jornalismo.

            O que deve ser afirmado sobre o escritor nessa breve e magra apresentação é que Rebelo apesar de ter conhecido os grandes nomes da literatura da época – Cyro dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego, Jorge Amado – não se fiou pelas inovações advindas da Semana de Arte de 1922. O escritor é um continuador da tradição legada por Machado de Assis. Seu texto guia-se pelo estilo claro, musical. Dir-se-ia de que se trata de uma fusão de Machado de Assis com Lima Barreto – Machado pelo estilo; Lima pelos temas que emanam dos seus textos muito bem escritos.

            Rebelo procura os motivos de sua literatura nos subúrbios. Na vida marginalizada. Junto àquelas que fazem acrobacias para conseguir um lugar ao sol. Rebelo escreve uma crônica da vida que surge da mixórdia de eventos da vida pequeno-burguesa. Insere-se nos becos. Na vida malandra dos personagens que se utilizam de estratagemas, da confusão, da malandragem, da esperteza, do rústico. Em Marafa encontramos uma fauna diversa no meio da polifonia do caos da metrópole. Essa passagem do livro é expressiva por ilustrar a obra, fornecer um rico panorama a respeito da obra e da literatura do próprio Rebelo: "Mendigos estendem as mãos imundas, mostrando chagas, andrajos e deformidades. Mendigas dão maminhas mirradas a esqueletos de crianças. Inválidos, cegos, aleijados, portadores de elefantíase, suspeitas caras de leprosos, há mendigos nas esquinas, nas soleiras, no portão dos cemitérios, nos degraus das igrejas, à porta dos restaurantes, dormindo no sopé das estátuas e nos bancos das praças. Há tantos mendigos e falsos mendigos como há pardais. E há a Comissão de Turismo, convidando o mundo, com maus cartazes, para conhecer as belezas naturais da capital maravilhosa."

            O carioca é um dos grandes escritores brasileiros responsáveis pela análise afiada da vida urbana e de suas contradições, sua monotonia, sua tristeza, seu desejo de acerto, sua tragédia. As personagens são metáforas andantes de uma vida que não se resigna com as condições opressoras das estruturas sociais; são sujeitos que se esgueiram agilmente nas sombras do andar de baixo da escadaria da sociedade de classes. É isso que testemunhamos em Marafa.

            A história possui dois personagens nucleares – José e Teixeirinha. O primeiro é um disciplinado rapaz, dono de uma personalidade que procura sempre acertar. Trabalhador. Cioso por fazer as coisas de maneira correta. Um excelente filho. Apaixonado. Desejoso de casar. Formar uma família. Já o segundo é o modelo do malandro. Vive de pequenos golpes. Acumula passagens pela polícia. Explora prostitutas. Vive nas sombras, esgueirando-se de credores.

            Como não poderia deixar de ser, esses seres ambivalentes acabam se cruzando, o que acaba perpetrando a tragédia. Há ainda outros personagens no livro, que funcionam como satélites. Um desses casos é o irmão de José, um estudante de medicina com uma vocação pela ambição. Apaixona-se pela noiva do irmão. Pressiona-a. Comete um aliciamento, capaz de provocar pânico e desespero na moça, que não arregimenta a coragem necessária para contar para o noivo o acontecido.

            Confesso que, inicialmente, comecei a leitura com máxima desconfiança. No início, a história se mostra pouco convidativa. A não convencionalidade do tema provocou um certo estranhamento, mas, aos poucos, somos conduzidos àquele mundo suburbano, repleto de poças de lama; repleto de cheiros acres, de energias soturnas. A literatura de Rebelo possui o gosto da noite. Após o término da leitura, fica a impressão de que atravessamos uma paisagem noturna, repleta de umidade espessa e ela acabou por aderir à nossa pele.

            Mais uma leitura concluída. Vamos ao conflito de Jorge de Lima, pois haverá “A guerra dentro do beco”.

terça-feira, outubro 19, 2021

O Amanuense Belmiro. Algumas impressões

 


O Amanuense Belmiro é um livro singular. Escrito na década de 30 do século XX, o famoso “romance” de Cyro dos Anjos possui elementos  grandiosos bastantes para serem refletidos. Ponho aspas na palavra “romance”, pois denominá-lo dessa forma nos coloca diante de uma inflexão – trata-se de um diário, de um memorial ou de um romance em forma de memorial e diário?   

                Li o livro há duas semanas. A leitura é – talvez, por estratégia do escritor – aparentemente ingênua. Não há uma história mirabolante. Pontua-se, por sua vez, de que não se trata de um livro para iniciantes em literatura. O livro é repleto de sutilezas, o que nos obriga a visitar a obra mais de uma vez. Ou seja, é daqueles livros que devem ser frequentados de tempos em tempos. 

                Primeiramente, deve-se abrir uma nota sobre o autor. Cyro dos Anjos, nascido em Montes Claros, desde muito cedo recebeu uma esmerada, meticulosa educação. Formou-se em Direito. Logo depois, exerceu o jornalismo em diversos meios de comunicação.  Efetivou-se como servidor público até o final da vida. Estabeleceu um trânsito constante entre Belo Horizonte e o Rio de Janeiro. Na Cidade Maravilhosa, costurou amizades com Marques Rebelo, José Lins dos Rego, Carlos Drummond entre outros. Em 1969, ingressou na Academia Brasileira de Letras. Assumiu o lugar do poeta pernambucano Manoel Bandeira.

                O livro de Cyro dos Anjos foi publicado precisamente no ano de 1937. Em se tratando de momento histórico, um livro com as características de O Amanuense Belmiro, parecia deslocado pela força implosiva e irresistível dos romances regionalistas dos escritores nordestinos. Graciliano Ramos, neste ano de 1937, estava finalizando sua grande obra – Vidas Secas – que seria publicado em 1938. Já lançara Caetés (1933), São Bernardo (1934) e Angústia (1936). Este último com feições mais urbanas. José Lins do Rego, o criador do Ciclo da cana-de-açúcar, desvelara um nordeste profundo, singular; escancara a opulência e a decadência dos grandes engenhos, responsáveis pela formação sócio-econômica do Nordeste. Guiado pelas teses de Gilberto Freyre, o escritor paraibano descreveu de maneira febril – sem concessões – a força de um mundo que já não existia, mas que deveria ser notado pelos impactos deixados na sociabilidade do país. Em 1937, José Lins já havia escrito os cinco romances do Ciclo – Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), O moleque Ricardo (1935) e Usina (1937).  Vale mencionar nomes como os de Jorge Amado, Raquel de Queiroz, José Américo de Almeida, entre outros.

                Ao escrever O Amanuense, Cyro parecia ignorar essa pujança realista dos escritores nordestinos. Sua hipótese era urbanista. Pequeno burguesa. Belmiro Borba, a personagem principal da obra é uma figura sem brilho, um sujeito que não faz nada para ser grandioso, mas é atraente e simpático como um personagem de Charles Chaplin. 

Cyro dos Anjos, em 1992

                Sua vida é banal. O emprego em que se ocupa é resultado de uma sinecura. É um burocrata insípido. Mete-se na massa. Não faz nada de opulento. Mostra-se patético. Todavia, existe algo de heroico em Belmiro Borba. O livro nesse sentido, ganha proporções machadianas. Cyro insere pinceladas tortas, repletas de um lirismo irônico; de tiradas finas; de esquemas sutis, capazes de provocar belas risadas.

                Belmiro, o herói torto do livro, apaixona-se por Carmélia. Todavia, a personagem é apenas uma visão contemplativa do seu platonismo infecundo. Carmélia Miranda não passa de uma imagem vaporosa. Ele não consuma suas intenções. Viaja para o Rio de Janeiro a fim de vê-la partir para a Europa em lua de mel. Admira-a à distância. Certo dia, enquanto caminha como um transeunte desenxabido e anônimo pelas ruas de Belo Horizonte, um automóvel joga água após ter passado por uma poça, deixando-o ensopado. A imagem é patética. O casal que se encontra dentro do carro, vendo a imagem arremata uma desbragada risada. Ele reconhece Carmélia no banco do passageiro.

Tudo parece bastante simples, modesto em O Amanuense, mas essa é justamente a estratégia do escritor. O que vemos como simplicidade é, na verdade, uma estratégia metalinguística. Ele escreve um diário ou um memorial? Memorial é aquilo que aponta para um passado repleto de suave nostalgia. Há um aspecto mais ontologicamente preciso. Busca-se retratar fatos que possuem um painel esquemático, linear. A função das memórias é trazer à tona o passado, que deseja se tornar presente. Por sua vez, o diário é um elemento arredio e errante em sua forma. Possui uma estrutura fragmentária. Não se prende a um esquema. Belmiro pretende escrever um memorial, mas, de forma intencional, acaba se perdendo. Migra para o diário. A narrativa deixa o passado e se fixa no presente. Ele põe no papel fatos que encobrem o período de pouco mais de um ano – do Natal de 1935, até o Carnaval de 1937.

O imobilismo de Belmiro e seu caráter cético, niilista, torna a história repleta de camadas de ironia. O Amanuense Belmiro é um livro singular, pois demonstra as possibilidades da literatura. Coloca-nos diante um esquema que, na verdade, tem a intenção de enganar o leitor. Belmiro apresenta-se como um descritor de eventos, mas, no fundo, descobrimos que ele está pregando uma peça no leitor. Sua estratégia é de empulhação, pois não entrega aquilo que promete. É ele mesmo o abismo; sua vida é um esquema caótico. Sua vida possui o ritmo da melancolia; seu modo de escrever, o encontro com o fragmentário. Excelente livro.