terça-feira, outubro 19, 2021

O Amanuense Belmiro. Algumas impressões

 


O Amanuense Belmiro é um livro singular. Escrito na década de 30 do século XX, o famoso “romance” de Cyro dos Anjos possui elementos  grandiosos bastantes para serem refletidos. Ponho aspas na palavra “romance”, pois denominá-lo dessa forma nos coloca diante de uma inflexão – trata-se de um diário, de um memorial ou de um romance em forma de memorial e diário?   

                Li o livro há duas semanas. A leitura é – talvez, por estratégia do escritor – aparentemente ingênua. Não há uma história mirabolante. Pontua-se, por sua vez, de que não se trata de um livro para iniciantes em literatura. O livro é repleto de sutilezas, o que nos obriga a visitar a obra mais de uma vez. Ou seja, é daqueles livros que devem ser frequentados de tempos em tempos. 

                Primeiramente, deve-se abrir uma nota sobre o autor. Cyro dos Anjos, nascido em Montes Claros, desde muito cedo recebeu uma esmerada, meticulosa educação. Formou-se em Direito. Logo depois, exerceu o jornalismo em diversos meios de comunicação.  Efetivou-se como servidor público até o final da vida. Estabeleceu um trânsito constante entre Belo Horizonte e o Rio de Janeiro. Na Cidade Maravilhosa, costurou amizades com Marques Rebelo, José Lins dos Rego, Carlos Drummond entre outros. Em 1969, ingressou na Academia Brasileira de Letras. Assumiu o lugar do poeta pernambucano Manoel Bandeira.

                O livro de Cyro dos Anjos foi publicado precisamente no ano de 1937. Em se tratando de momento histórico, um livro com as características de O Amanuense Belmiro, parecia deslocado pela força implosiva e irresistível dos romances regionalistas dos escritores nordestinos. Graciliano Ramos, neste ano de 1937, estava finalizando sua grande obra – Vidas Secas – que seria publicado em 1938. Já lançara Caetés (1933), São Bernardo (1934) e Angústia (1936). Este último com feições mais urbanas. José Lins do Rego, o criador do Ciclo da cana-de-açúcar, desvelara um nordeste profundo, singular; escancara a opulência e a decadência dos grandes engenhos, responsáveis pela formação sócio-econômica do Nordeste. Guiado pelas teses de Gilberto Freyre, o escritor paraibano descreveu de maneira febril – sem concessões – a força de um mundo que já não existia, mas que deveria ser notado pelos impactos deixados na sociabilidade do país. Em 1937, José Lins já havia escrito os cinco romances do Ciclo – Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), O moleque Ricardo (1935) e Usina (1937).  Vale mencionar nomes como os de Jorge Amado, Raquel de Queiroz, José Américo de Almeida, entre outros.

                Ao escrever O Amanuense, Cyro parecia ignorar essa pujança realista dos escritores nordestinos. Sua hipótese era urbanista. Pequeno burguesa. Belmiro Borba, a personagem principal da obra é uma figura sem brilho, um sujeito que não faz nada para ser grandioso, mas é atraente e simpático como um personagem de Charles Chaplin. 

Cyro dos Anjos, em 1992

                Sua vida é banal. O emprego em que se ocupa é resultado de uma sinecura. É um burocrata insípido. Mete-se na massa. Não faz nada de opulento. Mostra-se patético. Todavia, existe algo de heroico em Belmiro Borba. O livro nesse sentido, ganha proporções machadianas. Cyro insere pinceladas tortas, repletas de um lirismo irônico; de tiradas finas; de esquemas sutis, capazes de provocar belas risadas.

                Belmiro, o herói torto do livro, apaixona-se por Carmélia. Todavia, a personagem é apenas uma visão contemplativa do seu platonismo infecundo. Carmélia Miranda não passa de uma imagem vaporosa. Ele não consuma suas intenções. Viaja para o Rio de Janeiro a fim de vê-la partir para a Europa em lua de mel. Admira-a à distância. Certo dia, enquanto caminha como um transeunte desenxabido e anônimo pelas ruas de Belo Horizonte, um automóvel joga água após ter passado por uma poça, deixando-o ensopado. A imagem é patética. O casal que se encontra dentro do carro, vendo a imagem arremata uma desbragada risada. Ele reconhece Carmélia no banco do passageiro.

Tudo parece bastante simples, modesto em O Amanuense, mas essa é justamente a estratégia do escritor. O que vemos como simplicidade é, na verdade, uma estratégia metalinguística. Ele escreve um diário ou um memorial? Memorial é aquilo que aponta para um passado repleto de suave nostalgia. Há um aspecto mais ontologicamente preciso. Busca-se retratar fatos que possuem um painel esquemático, linear. A função das memórias é trazer à tona o passado, que deseja se tornar presente. Por sua vez, o diário é um elemento arredio e errante em sua forma. Possui uma estrutura fragmentária. Não se prende a um esquema. Belmiro pretende escrever um memorial, mas, de forma intencional, acaba se perdendo. Migra para o diário. A narrativa deixa o passado e se fixa no presente. Ele põe no papel fatos que encobrem o período de pouco mais de um ano – do Natal de 1935, até o Carnaval de 1937.

O imobilismo de Belmiro e seu caráter cético, niilista, torna a história repleta de camadas de ironia. O Amanuense Belmiro é um livro singular, pois demonstra as possibilidades da literatura. Coloca-nos diante um esquema que, na verdade, tem a intenção de enganar o leitor. Belmiro apresenta-se como um descritor de eventos, mas, no fundo, descobrimos que ele está pregando uma peça no leitor. Sua estratégia é de empulhação, pois não entrega aquilo que promete. É ele mesmo o abismo; sua vida é um esquema caótico. Sua vida possui o ritmo da melancolia; seu modo de escrever, o encontro com o fragmentário. Excelente livro.

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