segunda-feira, março 20, 2023

"Caminhos Cruzados", de Erico Veríssimo

 


                A década de 30 do século XX foi uma das mais ricas para a literatura brasileira. Viveu-se o que se convencionou chamar de Segunda Geração Modernista (1930-1945). A literatura produzida por aqui desenvolveu o seu engajamento. Liberdade para criar e reconhecer as contradições brasileiras ganharam forma. Tanto a poesia quanto a prosa assumiram uma posição de denúncia. Há nomes importantes na poesia – Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Murilo Mendes. Na prosa, também se observa a força, a pujança das narrativas, uma preocupação com a crítica à condição do homem numa sociedade repleta de duros antagonismos.

                No Nordeste, há nomes que impressionam pelo aspecto prolífico da produção. As questões regionais passaram a ganhar visibilidade. A seca, as desigualdades, o jogo político que fazia com o poder pertencesse a certas famílias – as velhas oligarquias, fruto da formação social e econômica do país -, são expostos por Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Amando Fontes, entre outros.

                Pode-se observar ainda um movimento que tende a revelar os dramas do homem urbano. Os escritores apontavam as lutas do homem da cidade. Suas dissonâncias. Seu mal-estar psicológico. A urbe capitalista é o espaço em que o ser humano encontra-se exposto às ambivalências; à solidão; ao aparente; à angustia. Os gestos não definem um ensaio de definição.

                Erico Veríssimo foi certamente um mestre nesse sentido. “Caminhos cruzados” foi o seu segundo romance, escrito no ano de 1935. Veríssimo à sua maneira, com uma prosa ágil, despojada, dedica atenção aos homens e mulheres da Porto Alegre da primeira metade do século XX. Erico descreve com inconformismo a realidade das vidas humanas embrutecidas ou vulnerabilizadas pela luta no palco social. Ninguém está livre da crise. Seu texto é imensamente humano.

Erico Veríssimo. 

                A paisagem urbana esconde os dilemas. O romance possui vários nichos narrativos, que funcionam como uma novela. Cada capítulo dedica-se a uma personagem. Vamos conhecendo um a um; solidarizamo-nos com um; tomamos aversão a outros. O autor parece apresentar um prédio para alguém que passa pela rua. Ele aponta o seu dedo e vai descrevendo as histórias que povoam cada apartamento. Em alguns deles, notam-se a exuberância, o luxo, a vaidade. Em outros, a singeleza, a humildade, o despojamento. Como diz Antonio Cândido, é como se o escritor dividisse as personagens em dois grupos: o grupo “A”, formado pelos ricos; e o grupo “B”, formado eminentemente pelos pobres.

                Veríssimo denuncia as desigualdades sociais e a indiferença. Em um período sensível da história nacional, que estava na iminência do golpe de Estado de Vargas, não faltou quem visse intenções revolucionárias na pena do escritor.

                O gaúcho, também autor de “Incidente em Antares”, utiliza a técnica do contraponto, segundo ele, apropriada da obra do inglês Aldous Huxley. É curioso perceber como essas personagens diversas e contrastantes se aproximam e se cruzam pela urdidura da vida social. É nesse ponto, que Veríssimo realiza o movimento primoroso do acerto, pois, ao estabelecer essas conexões, ele captura a imagem de uma sociedade inteira.

                O romance gerou escândalos e protestos. Os conservadores ciosos dos valores da família, enxergaram imoralidades. Moacyr Scliar afirma que, quando adolescente, a leitura do livro era terminantemente proibida. Despertou também furor político, pois a obra foi acusada de disseminar o comunismo. Sim. Essa palavra tão incompreendida; tão onipresente no imaginário da classe média brasileira; essa palavra cujo conceito é desconhecido por muitos. 

                 Ao lermos o romance, não notamos nada disso. Observa-se que Erico é habilidoso em realizar uma crítica firme contra um país que invizibiliza parte de sua população. Se Erico suscitou debates, é pelo fato de sua obra está entretecida pelos limites impostos pelo mundo material. As personagens do livro são motivadas pelo sonho, pela esperança, mas têm suas intenções estilhaçadas pelo mundo real. Nada mais atual que isso. E nesse sentido, este romance do autor gaúcho ainda continua dizendo muito.


terça-feira, março 14, 2023

O ganhador do Oscar 2023



Demorei mais de uma semana pra ver "Tudo em todo lugar ao mesmo tempo", ganhador da edição 2023 de melhor filme do Oscar. A história me pareceu aberrante. Não me capturou. Não conseguia acompanhar mais que 20 minutos. Muito chato. O Oscar possui a sua fórmula particular de nem sempre premiar de maneira adequada qual a melhor produção cinematográfica. É só olhar as premiações de melhor filme dos últimos anos: 2022 - "No ritmo do coração"; 2021 - "Nomadland" (que é até bonzinho)"; 2020 - acertaram; premiaram o coreano "Parasita". Houve até o chato "A fórmula da água" há alguns anos.
"Tudo em todo lugar" é um pastiche de "Matrix", feito por um adolescente que gosta de videogames e animes com pretensão a filme "cult".

Penso que "Nada de novo no front", "Banshees de Inisherin", "A Baleia", "Tár" ou "Entre Mulheres" tenham muito mais conteúdo do que o entediante ganhador de 2023.

Minha intuição é a de que, em Hollywood, há aqueles que não se satisfazem com a adequada e certeira fórmula da boa história, do bom enredo, do cinema com "c" maiúsculo. Estão apenas à cata de novidades, de excentricidades.


"Tudo em todo lugar ao mesmo tempo" é apenas isso: uma excentricidade.

quarta-feira, março 01, 2023

30 anos de um regresso

 


Minha família migrou para a Capital Federal em 1989. Eu recém completara nove anos de idade. Foi um evento grandioso, capaz de sugerir mudanças e descobertas. Eu era um sujeito matuto – e de certa forma ainda sou. Essa palavra deriva do latim “matto” (‘floresta’, ‘arbusto’), acrescida do sufixo “–uto”, cujo significado exprime ‘aquilo que se liga a algo’. Verifica-se assim que matuto é aquele que veio da zona rural, do mato; ou aquilo que faz referência ao mato. No Brasil, essa palavra ganhou acepções para indicar, de forma depreciativa, aquele que é rústico, acanhado, tímido.

                No Nordeste, a palavra possui grande resplandecência. Ser chamado de matuto indica objetivamente aquele que possui dificuldades para, como diz o antropólogo Roberto DaMatta, realizar a “navegação social”.

                Ser criança na periferia do Distrito federal no início dos anos 90 foi algo curioso. Fiquei quatro anos sem voltar ao meu Pernambuco. Esperei três anos para realizar o épico caminho da volta. Dessa vez, eu, meu irmão e minha mãe íamos na condição de visitantes. Para um sujeito recém-entrado na adolescência como eu, aquilo possuía uma inebriante fragrância. Fomentava imagens, ficções; assinalava enredos.

                Recordo precisamente o dia que saímos. Possivelmente, tenha sido numa sexta-feira à noite. Era o costume. Dessa forma, chegava-se ao Recife no domingo pela manhã. Não consigo esquecer os efeitos daquela saga. A primeira noite forneceu-nos uma acomodação ignominiosa. O ônibus ziguezagueava em meio à estrada calamitosa. A BR-020 era um queijo suíço. Os solavancos recorriam com abreviada recorrência. A suspensão mole do ônibus fazia-me crer que estava em uma gangorra. Em dados momentos, o motorista direcionava o veículo para uma estrada clandestina que se formara paralela à rodovia. Era o resultado da peleja dos outros motoristas tentando fugir da estrada com aspectos lunares.

                Tudo me parecia grandioso: o mundo, as paisagens, as paradas que aconteciam em intervalos irregulares – 15 minutos, 20 minutos, 30 minutos. O motorista da vez verbalizava: “Esta é cidade tal. Pararemos aqui por 15 minutos”. Era o tempo que os assustados, atarantados passageiros teriam para ir ao banheiro; ou espicharem o corpo cansado pela refrega contínua da viagem. Ficava de olhos arregalados. O ônibus não possuía ar condicionado. Viajávamos com as janelas abertas. Recebíamos o bafo quente, mesclado pelas partículas do tempo.

                Minha mãe com duas criaturas que não foram iniciadas no traquejo social – eu e meu irmão -  fazia advertências. Espavorido, eu arregalava os olhos. Memorizava, como se estivesse verbalizando um credo forçado, os números de registro do ônibus. Movia-me com metódico cálculo. O medo de ficar para trás era um fantasma que revoluteava como uma sacola agitada pelo vento ao meu redor. Ficávamos com os olhos grudados no ônibus da Itapemirim. Íamos assim até o nosso destino final. Toda parada envidava uma operação com estratégias estudadas com esforço.

                Transposta a tumultuada primeira noite, os passageiros gestavam uma curiosa solidariedade.  Conversavam. Pareciam velhos amigos. Entravam em minudências. Segredavam os destinos para onde iam. Compartilhavam – em certos momentos – os tímidos repastos. Minha mãe se munira com biscoitos, maçãs e farofa para realizar a heroica travessia e saciar a fome de sua prole.

                Aquela viagem me ensinou a entender o movimento de volta, o regresso. Ao voltar, nota-se o efeito do tempo. O regresso permite a gestação de expectativas. Passa-se a compreender certas coisas. Olha-se com desvelo o corriqueiro. É a saudade que nos empurra para trás. E como diz Guimarães Rosa: “Toda saudade é uma espécie de velhice”. Mais tarde, eu compreendi que por estar voltando, eu era um Ulisses com a expectativa de reencontrar a minha Ítaca.