sexta-feira, junho 29, 2018

Algumas palavras sobre "A Utopia", de Thomas Morus

Realizei mês passado, um dos meus grandes objetivos de leitor amador: deliciar-me com A Utopia, de Thomas Morus. Devo ter em minha singela biblioteca três edições do famoso livro escrito no período do Renascimento: uma edição da Ediouro, adquirida há bastante tempo; uma segunda da Autêntica, com edição bilíngue (latim e português) e uma belíssima encadernação adquirida em fevereiro deste ano; e uma terceira da L&PM, adquirida em Goiânia este ano. Foi justamente esta última que li. A edição da editora gaúcha traz a tradução de Paulo Neves e um texto bastante agradável. 

Thomas Morus é uma figura relevante da história intelectual dos últimos quinhentos anos. Foi amigo de Erasmo de Roterdã, outro intelectual de peso do período renascentista. Erasmo foi um importante teólogo e filósofo católico do período. Era um profundo conhecedor dos escritos clássicos. Erudito de profissão, Erasmo escreveu O elogio da loucura e o dedicou a Thomas Morus. O livro de Erasmo, ícone do humanismo cristão, é uma das minhas paixões. Lido há muito tempo, tensiono revisitá-lo. Tenho, também, três edições do livro grande humanista. 

Morus ocupou importantes posições políticas à época em que viveu. Possuía formação em advocacia, profissão que exerceu por certo tempo em Londres. Demonstrou estar bastante à frente do seu tempo, exigindo que sua primeira esposa estudasse. Seu objetivo era casar com alguém que tivesse condições de conversar com ele. Buscou conciliar suas atividades políticas com a vida de dedicação aos estudos. Figura bastante respeitada, tornou-se membro do Parlamento, vindo a ser conselheiro do rei Henrique VIII, em 1518. Alcançou, mais tarde, duas funções eminentes dentro do reino: presidente  do Parlamento e lorde-chanceler, a posição política de maior prestígio dentro do reino, quebrando uma tradição: foi a primeira vez que alguém alcançou o posto sem que viesse da nobreza nem fosse prelado. Morus ficou pouco tempo no cargo - de 1529 a 1532. Acabou por tomar partido nas intrigas políticas, religiosas e matrimoniais de Henrique VIII.

Thomas Morus era um abnegado católico. Henrique era casado com Catarina de Aragão, viúva de seu irmão. Apesar do enlace, o rei desejava de forma ardente se unir a Ana Bolena, dama de companhia de Catarina. Diante desse imbróglio amoroso, Henrique VIII solicitou o divórcio ao papa Clemente VII. Em situações plácidas, o papa o concederia. Havia, porém, um problema: em plena Reforma, o papa queria o apoio de Carlos V (sobrinho de Catarina), o homem mais poderoso da Europa. Carlos  V não queria o divórcio e, o papa, para não perder o seu apoio, decidiu não conceder a solicitação de Henrique VIII. Em 1532, o monarca rompe com o papado e se declara chefe da Igreja na Inglaterra por meio do Ato de Supremacia. Surgia a Igreja Anglicana. Em 1534, com a elaboração do Decreto de Sucessão, que dava à Isabel, filha de Henrique VIII com Ana Bolena, a herdeira do trono, Morus se viu enredado numa situação complicada. Tendo sido chamado para prestar reconhecimento a esse documento, acabou recusando, sendo condenado consequentemente à morte. Foi decapitado no dia 6 de julho de 1534. Em 1886, foi reconhecido como mártir e canonizado em 1935. A Igreja o reconhece como um modelo de pessoa que não tem a sua consciência traída, mesmo em face da arbitrariedade. Ele é, assim, alguém com firme convicção na Igreja e na liberdade individual. 

É importante entender este pano de fundo, para que se torne mais claro seu objetivo com um texto como A Utopia. Morus aborda a questão da cidade. É importante mencionar que Platão já fizera isso  em A República, por exemplo. A cidade é assim o seu espaço de reflexão e preocupação. O estilo de A Utopia veio a ser precursor desse tipo de literatura. Mais à frente, surgiriam outras obras com "finalidades utópicas" - principalmente, A nova Atlântida (Francis Bacon) e A Cidade do Sol (Tommaso Campanella). 

O livro é dividido em duas partes. É somente na segunda parte que encontramos a descrição de Utopia. A primeira parte é uma análise da Europa da época de Morus. Três personagens participam do diálogo - o próprio Morus, Pierre Gilles e Rafael Hitlodeu, que, na segunda parte do livro, contará a sua experiência na famosa ilha de Utopia. Desta forma, a primeira parte debate o porquê da desigualdade e da violência no continente europeu. Outro ponto discutido é a miséria na Inglaterra e seu corolário de injustiças sociais. É contundente a pergunta encontrada: "Que outra coisa vocês fazem, pergunto, senão fabricarem vocês mesmos os ladrões que a seguir enforcam?" Nota-se nesse sentido, que a miséria é fabricada por um sistema social injusto, que produz os pobres e, a seguir, acaba por condená-los.

A primeira parte é uma apresentação da situação real da Inglaterra, com a sua carga injusta de mazelas sociais. Na segunda parte, encontra-se a resposta, a antídoto contra as injustiças sociais de um sistema que tem, como consequência, o triunfo de alguns e recrudescimento da situação dos pobres. O discurso da segunda parte é idealista. Estrutura-se no ajuste, na tentativa de resolver os verdadeiros problemas que assolavam a Inglaterra: fome, desemprego, miséria, prostituição, ociosidade.

A sociedade descrita na segunda parte é estritamente comunal. Ao mencionar o termo "comunal" não se deseja explicitar uma relação de semelhança com os movimentos revolucionários surgidos no século XX. O comunismo de Morus está adstrito à coletivização da propriedade, ou seja, a comunitarização das riquezas. Para ele, a propriedade privada dos meios de produção seria o agente causador dos males sociais.

Há um desprezo pelos metais preciosos como, por exemplo, ouro e prata, tão desejados no século XVI, período das Grandes Navegações. As grandes potências da época - Portugal, Espanha, Inglaterra - disputavam a primazia da descoberta de novas terras e a exploração de metais preciosos, principalmente o ouro. Em Utopia esses metais são transformados em penicos ou algemas para escravos. Os utopianos riam daqueles que ostentavam esses metais com o objetivo de se passarem por imponentes e importantes.

Existem inúmeras regras que tornam a ilha de Utopia um espaço que busca a simplicidade e a cordialidade entre os seus habitantes. Um exemplo é a possibilidade dos habitantes trabalharem apenas seis horas por dia, investindo o outro espaço de tempo em lazer e formação intelectual. Outros costumes também divergem das práticas hodiernas aos dias de Morus. Quando alguém ia casar, fazia-se necessário que, na presença de uma pessoa idônea, a noiva ficasse nua para o noivo - vice e versa. Com essa prática buscava-se evitar qualquer problema futuro para o casal.

A sociedade ideal de Morus apresenta os limites da percepção e dos costumes do seu autor. Algumas das defesas sugeridas no livro soariam como ofensivas para um sujeito do século XXI. Um exemplo seria de a sociedade está assentado no respeito aos anciãos, aos pais etc, ou seja, numa clara defesa do patriarcado, apesar de Morus ser um homem à frente do seu tempo. É conhecida defesa dele à possibilidade das mulheres estudarem, algo incomum para a época, como mencionado acima. Outro fato é a presença dos escravos em sua obra. A indagação que surge é: como uma obra que se funda na busca de igualdade e no impedimento de injustiças, defenda a possibilidade de uma estrutura escravista? E outra: Morus era um ardoroso defensor em sua obra da igualdade entre os homens, mas atribui aos escravos determinadas práticas que os transformam em seres inferiores, menores, em relação aos cidadãos utopianos. Um exemplo é o fato destes sacrificarem animais. O argumento de Morus é que os cidadãos deveriam ser afastados da prática de atos que levassem à violência ou à incitação desta. Caberia a determinadas pessoas, o exercício dessas atividades "inferiores". Um verdadeiro paradoxo com o sentido da obra.

Um resposta é possível: como o padrão para Morus e muitos intelectuais da época era o período clássico - Grécia e Roma - defendia-se a manutenção do modelo do modo produção dessas sociedades. É conhecida, por exemplo, a existência da dependência dos escravos na Antiguidade. os escravos realizavam as mais variadas atividades. Eram a força econômica, o veículo de tração, que levava o desenvolvimento. Morus, talvez, tenha se inspirado nesse modelo surgido no período clássico, dentro do modo de produção asiático, mais tarde substituído pelo modelo feudal, assentado em um outro tipo de relação.

A Utopia é um livro instigante. Muitas das suas afirmações são provocadoras. Mesmo tendo sido canonizado pela Igreja Católica e ter se tornado uma figura de respeito dentro da Santa Sé, os soviéticos ergueram uma imagem em respeito à obra do pensador inglês. Morus se mostra à frente do seu tempo por pensar em uma sociedade que lidasse de maneira séria com a desigualdade material, fator de relevante desumanização. Todavia, a obra deve ser lido com os limites que lhe são próprios. Afinal, Morus olhava para história com as percepções do seu tempo. Utopia é mais do que uma obra que descreve uma sociedade fictícia como o próprio nome sugere, é o marco que funda o debate sobre uma sociedade em que a justiça e igualdade sejam forças estruturantes - ainda com o surgimento do capitalismo. A preocupação de Morus é o ser humano e sua dignidade. Sua relevância para o pensamento político e filosófico são indiscutíveis.