quinta-feira, fevereiro 02, 2023

"Tár", algumas apalavras

 

 "Tár" é um filme, no mínimo, enfeitiçante. É uma aula sobre como atuar, sobre como insinuar certos detalhes. A atuação da excelente atriz australiana Cate Blanchett é mesmerizante. Ela ocupa todos os espaços da obra. Não há vácuos. É um verdadeiro espetáculo de como se encena; de como se leva ao extremo o significado da palavra atuar.

O filme conta a história da bem-sucedida Lydia Tár, que chegou ao cume do sucesso. Respeitada. Incensada pela "mainstream" erudito, Lydia é a materialização do êxito que certas figuras alcançaram ao longo da história da música de orquestra. Um dos casos é o de Leonard Bernstein, citado no filme.

Ela conversa com uma profundidade que impressiona sobre cultura. Possui um raciocínio e um carisma desconcertantes. É uma professora rigorosa, que foge ao radicalismo de uma visão única. Em uma aula, ela profere para um dos seus alunos, quando este informou que não gostava de Bach, pois o compositor alemão era misógino por ter quase duas dezenas de filhos: "O narcisismo das pequenas diferenças leva ao mais enfadonho conformismo". A própria Lydia era uma figura que não se conformava no mundo da música clássica. Todos sabiam do seu relacionamento homoafetivo com a "spala" da orquestra. Ela era uma mulher, em um mundo governado por homens. E, nesse sentido, parece haver uma clara ironia implícita ao padrão do macho alfa, uma referência - talvez - indireta ao regente Herbert von Karajan, que conduziu com mãos de ferro a Filarmônica de Berlim por mais de trinta anos e criou uma noção de modelo autoritário.

Além dessa força, Lydia conseguiu alcançar o posto de regente da já referida e mítica Filarmônica de Berlim, uma das mais emblemáticas orquestras do mundo. E aqui notamos a grandiosidade do trabalho de Blanchett, pois se pode observar que ela, para fazer o filme, aprendeu a reger. No filme, sua personagem após ter gravado o ciclo de sinfonias do compositor austríaco Gustav Mahler, deixou a Quinta Sinfonia por último. A Quinta é a sinfonia mais conhecida e apreciada pelos admiradores da obra do austríaco. Observa-se o trabalho sensacional de Blanchett regendo uma orquestra. A Quinta de Mahler parte de uma premissa filosófica de como a vida é atravessada pela ironia e pela tragédia. Ela subverteu a noção histórica de uma estrutura sinfônica, pois começa por uma marcha fúnebre. Até o final do século XIX, aquilo não era comum. A Quinta é de 1902 e parece fundar o moderno. Nesse sentido, ela é uma ponte de inflexão entre o clássico e o moderno. Mas para além disso, é uma metáfora sobre a existência humana. Ela é marcada filosoficamente pela sentença de que a vida é resultado de um grande devir; de que somos alvo dos fluxos aleatórios da própria vida; que o sublime, o grandioso, pode ser sucedido pelo trágico.

E é justamente isso que acontece com Lydia. Por trás dessa personalidade magmática, observa-se como o poder e a glória podem atrair o caos. Há uma cena no filme que parece ser de alegoria para o que ocorre a personagem. Ela sai à procura da jovem violoncelista Olga e adentra um espaço abandonado e caótico. Após avançar por um vão escuro, ela cai e "quebra a cara". O seu tombo parece prefigurar o que ocorre dali para frente. Seu tombo é grandioso. Ela se isola e sai de cena.

No geral, o filme é excelente. Há referências no filme a Beethoven, Bach, Mahler, Vàrese, Bernstein, Tchaikovsky, Elgar entre outros. O diretor Todd Field conseguiu trabalhar certas nuances, certas intrigas, que, quem já é afeito à música clássica, entende o que está sendo refletido. Mas isso não impede que qualquer pessoa seja capturada pelo drama em forma de tragédia; de como o poder possui uma face mutável.

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