quarta-feira, dezembro 26, 2007

Sobre a religião

Andei refletindo sobre a religião este final de semana. O final de ano se apresenta como um momento para reflexões, análises, promessas, eminentemente. Como não poderia deixar de ser, a religião se mostra como uma prática que une o indivíduo aos seus desejos mais íntimos. Afinal as promessas, desejos, fantasias, expectativas são gestadas e alimentadas por uma profunda unidade mística do ser com o mundo empírico. A religião é a força que impulsiona o ser na direção das suas conquistas.


Falar sobre minha preferência religiosa é algo complexo, pois a crença em algo é um universal humano. Pelas nomenclaturas identificáveis posso ser denominado como cristão protestante. O ser humano não se contenta apenas com a explicação da matéria em si (materialismo). Ele busca uma explicação para aquilo que está além dela (metafísicameta do grego: além, para além; físico(phisys) do grego: matéria física. Ou seja, aquilo que está para além da matéria). A religião ordena o caos da matéria. Ela é um dique que represa nossas inquietações nos dando uma sensação de conforto e segurança. O caos seria insuportável. Seriamos destruídos pela anomia e pela rudeza da vida. O sagrado é a dimensão valorativa da perfeição, da pureza, do absoluto. Daí o absoluto da crença. Se não estou equivocado foi Rudolfo Otto que afirmou que a religião está em todas as coisas da vida humana; que as realizações humanas são religiosas. Mas penso como C.S. Lewis. Num sentido não muito distinto, as mesmas inquietações de C. S. Lewis, são as minhas inquietações no que diz respeito à fé. Ele escreveu em seu livro Surpreendido pela Alegria: “A maneira mais segura de estragar um prazer era[é] começar examinar a sua satisfação”. Porque

“Ninguém jamais tentou mostrar em que sentido o cristianismo cumpriu
o paganismo, ou como o paganismo prefigurou o cristianismo.
A posição aceita parecia ser a de que as religiões eram normalmente uma
Mera miscelânea de absurdos, embora a nossa – feliz exceção – fosse
Perfeitamente verdadeira. As outras religiões não eram sequer explicadas,
Segundo o primitivo modo cristão, como obra de demônios. Nisso,
Possivelmente, eu podia ser levado a crer. Mas a impressão que tive foi de que
A religião, em geral, embora totalmente, era um desenvolvimento natural,
Uma espécie de absurdo endêmico no qual a humanidade tendia a tropeçar.
Em meio a um milhar dessas religiões, lá estava a nossa, a milésima
Primeira, rotulada Verdadeira. Mas com base em que eu poderia crer nessa
Exceção? Ela obviamente era, num sentido geral, o mesmo que todas as
Outras. Por que então era tratada de modo tão diferente? Será, afinal,
que eu precisava continuar tratando-a de forma diferente?
Desejava ardentemente não ter de fazê-lo.”

Como poderemos justificar o injustificável? Exercemos fé naquilo que não vemos. E regozijamos com isto. Cremos no absurdo. Adoramos sem ter certeza táctil com relação àquilo que cremos. Fechamos os olhos e descerramos os lábios em preces quentes. Gestos ou soluços da alma. Instituições se organizam com o objetivo de defender a devoção. Pessoas matam, explodem por causa da religião. Entendem que todo sacrifício é necessário e valido para justificar a fé. Quanto maior é a dor, o dispêndio de energia, maior é a devoção. Fico aturdido com este pensamento. Imagino que esta tendência tão extremada seja apenas resultado da inventividade humana. Penso que a singularidade humana é responsável por criar todas as realidades relativas àquilo que justifica e dá sentido à existência humana. Ou seja, é o próprio homem que classifica o mundo e extrai dele os significados que deseja empregar para tornar a vida cheia de respostas eloqüentes. O mundo existe como vontade e representação, pois o homem é a medida que dá forma a todas as coisas. Assim, vou pensando enquanto entendo que estou sendo trepidado por este fato que me abraça e sufoca como uma grande serpente. A religião é um sonho que mente humana alimenta para colorir os seus pesadelos existenciais. Dar-se expressão ao injustificável. Assim, não abraço a fé com adesismos externos. Fé para mim é fé para morrer e viver. É categoria máxima, filosófica, que abarca as categorias da vida. Não identifico a religião apenas com o fato de se ir a igreja ou a qualquer lugar que se queira ir para exercer a fé. Sören Kierkegaard afirma em seus escritos que há três estágios geralmente vivencialmente vinculados ao ser humano. (1) O modo estético. Ligado ao indivíduo que se envereda pelo caminho externo dos vícios, da matéria; pela diversidade a que conduz o desejo. Esse estágio não realiza o ser humano (2) O modo ético ou moral é aquele governado essencialmente pelas normais morais. Mas a vida ética não possui um potencial de realizar os desejos humanos. E (3) o modo religioso que ela afirma como o estágio sublime. Não a religião parasitária, instrumentalizada pelos dogmas e ritos externos. Isso aparece com total evidência na sua obra Temor e Tremor onde trabalha filosoficamente sobre o significado do sacrifício de Abraão no monte Moriá. “Seu objetivo é mostrar através do sacrifício de Abraão que o estágio ético não é absoluto, pelo contrário fica até ofuscado diante de exigências superiores do estágio religioso. Como apelo à subjetividade profunda, o estágio religioso pratica uma devoção ao Deus que não aparece e comunica-se através do silêncio que provem desta relação. Isto nos faz perceber que os dois primeiros estágios são mais populares do que o terceiro. Kierkegaard entendia que os estágios estéticos e éticos não podiam existir sem o estágio religioso. Em outras palavras, o religioso estava presente tanto no estético quanto no ético. O religioso é um estágio conseqüente, pois é a partir da desordem dos estágios inferiores que se tem a possibilidade de encontrar a realidade superior da vida religiosa”. Para mim a religião só tem significado se entendida e compreendida em sua radicalidade. A fé é em si uma decisão. Uma realidade que tem que ser experienciada existencialmente. Termino com uma frase de Kierkegaard dita na sua obra O Desespero Humano: “Varia o escândalo segundo a paixão que o homem põe na admiração”.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

terça-feira, dezembro 18, 2007

O itinerário do menino


Resolvi postar esta mensagem por conta destes dias festivos. Sei que o nascimento de Jesus não se deu no dia 25 de dezembro conforme as convenções ocidentais. A data de 25 de dezembro foi arranjada por Constatino a fim de substituir uma divindade pagã, por um "deus" cristão. Com isso ele não queria provocar estranhezas àqueles que estavam se convertendo à nova fé. Isso gerou fatores mais negativos do que positivos. Mas fica a data apenas como uma oportunidade para confraternizações e uma comemoração a serviço da saúde de todos nós. Afinal, todo o dia é dia de nascimento.

Mateus 2

O Salvador entra no mundo causando frisson nas lideranças dos homens.
Ele é apenas um ente nascido, frágil ainda pela sua constituição física.
Mas já suscita preocupação aos potentados.
O Seu nascimento faz com uma estrela nasça no coração dos homens.
Ele não é um simples menino.
Ele é o Salvador.
Ele é o Pastor Divino que ajuntaria o povo disperso.
O poder religioso e o poder político da magistratura se reúnem para inquiri acerca de que Ele viria ao mundo (vv.3,4).
Aonde nasceria?
Quais seriam as características do seu nascimento?
Qual a geografia?
Herodes é uma hiena.
O medo se apodera do seu coração.
Ele teme perder o seu trono.
“Rei dos Judeus” (v.2).
Quem seria esse rei dos judeus?
Ele, Herodes, já não era o rei?
Como surgiria outro rei?
Os homens do Oriente são guiados por uma estrela.
A estrela é uma bússola que nasce na interioridade de cada um dele e os leva aonde eles querem chegar: na presença do menino (vv.9,10).
Ele é o rei, por isso as honrarias – incenso, ouro e mirra – elementos finos, dignos da Majestade das Majestades.
Jesus, o Rei Eterno que aporta na História, que nasce numa manjedoura simples, numa cidade simples, no coração da Palestina, terra de Davi.
Esse menino não era qualquer menino.
O magistrado temeroso mandar matar todas as crianças com até dois anos de idade para que o perigo seja extirpado.
Um morticínio, um infanticídio acontece num determinado dia.
De repente, soldados armados com adagas, lanças e espadas invadem as casas e matam quantos acham.
Mães desesperadas, agonizantes, desejam a mesma sorte dos pequeninos.
Mas, o Filho de Deus já estava distante dali.
Havia ido para o Egito.
Nada na sua vida acontece em vão.
Tudo é resultado de promessas que se cumprem na História.
O Deus da promessa é fiel (Hb 10).
Do Egito ele vai para a região da Galiléia;
Vai “habitar numa cidade chamada Nazaré” (v.23), situada ao norte de Israel.
Este é o itinerário do Messias.
Os trinta e três anos de existência na terra foram marcados por sucessivos fatos marcantes.
Já no seu nascimento, fica provado que não se tratava de qualquer criança.
Tratava-se do menino que veio fazer uma revolução no coração dos homens.
Veio escandalizar os orgulhosos;
Suscitar fagulhas de medo e temor na alma daqueles que amam o poder;
Veio desmantelar a religião.
Revogar os estatutos que prejudicavam a vida.
Pregar a esperança, anunciar salvação a todos aqueles que crerem.
Apontar o Caminho do Reino.
Fazer de homens pecadores, seus melhores amigos.
Tirar os homens das trevas, para o reino do Filho do Seu Maravilhoso amor.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Jesus e Javé – os nomes divinos

Breve Comentário sobre: Jesus e Javé – os nomes divinos, Harold Bloom, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2005.

O livro Jesus e Javé – Os Nomes Divinos, de Harold Bloom é um livro de provocações. Falo em provocações, porque é impossível para o indivíduo acostumado com os sistemas construídos pela teologia dogmática, manter-se intacto às enormes des-construções suscitadas pelo autor. O livro me pareceu estranho de início. A sua linguagem gerou em mim desconfiança. O que o sujeito/autor pretendia com suas proposições me parecia enigmático. Apenas afirmações que saíam cheirando a estranheza. Não entendi a maioria das afirmações. A maioria das ilações feitas pelo autor, pelo que entendi a priori, tinha/tem a sua origem numa fonte gnóstica.
Todavia, algumas afirmações fortes como a que se segue incutiram em mim o poder da reflexão: “Qual será a culpa humana que deve ser expiada pela tortura que Javé impõe a Jesus e pela crucificação de centenas de milhares de outros judeus, nas mãos das forças romanas de ocupação? De ínício, dispenso as apologias que São Paulo e Santo Agostinho fazem a Deus: na queda de Adão, todos pecamos. Os Grandes Sábios do Talmude não defendiam essa doutrina bárbara, importação helênica do mito do portador do fogo, Prometeu, atormentado por um Zeus sádico, e, no extremo, o relato xamanista e órfico da vingança de Dioniso contra os que dilaceraram e devoraram o deus infante”[1]. Querendo ou não para quem está acostumado com o dogma, com a absolutidade da regra teológica, uma afirmação destas exige um esforço na averiguação. Com isso, não quero dizer que há um abandono na compreensão da teologia como eu aprendi. Todavia, posso afirmar um dos maiores privilégios do ser humano repousa no fato de que a curiosidade deve ser estimulada e pensada em todo tempo. Sempre cri que “na queda de Adão, todos pecamos”. Esta é a compreensão que adquiri. Somos seres fadados a este sinal – queira “sim”, queira “não”. Fazer a relação do com os capítulos iniciais do Gênesis, com o mito de Prometeu, escrito por Hesíodo impressiona. O mito de Prometeu possui um elemento interessante que se assemelha em muito com a citação da Torá (os cinco primeiros livros da Bíblia) do que foi a queda humana. Segundo o mito grego – nesse sentido vale lembrar que o mito está a serviço da representação – a humanidade foi castigada porque o Titã Prometu roubou uma acha do fogo dos deuses e o levou aos homens. Sendo assim Zeus vendo-se decididamente iludido pelo Titã, não conteve o ressentimento e resolveu punir simultaneamente os homens e o protetor. Prometeu foi castigado com uma flagelo terrível, uma espécie de atrocidade constante, sempre repetitiva; aos homens foram enviados castigos e toda sorte de pungentes atrocidades, como pestes, fomes e doenças. A tragédia Prometeu Acorrentado apresentou Prometeu como um rebelde contra a injustiça e a onipotência divina, imagem particularmente apreciada pelos poetas românticos, que viram nele a encarnação da liberdade humana, que leva o homem a enfrentar com orgulho seu destino. Prometeu significa etimologicamente "o que é previdente". O mito, além de sua repercussão literária e artística, tem também ressonância profunda entre os pensadores. Simbolizaria o homem que, para beneficiar a humanidade, enfrenta o suplício inexorável; a grande luta das conquistas civilizadoras e da propagação de seus benefícios à custa de sacrifício e sofrimento.Ou seja, Prometeu em sua luta contra a tirania dos deuses, representa no insurgimento que lhe é pertinente, a própria humanidade. Essa era, em outras palavras, o significado do mito.
Vale ressaltar que a História do Gênesis possui também uma explicação ou uma significação bastante similar. Não quero discutir aqui se o relato do Gênesis possui uma dimensão histórica ou mítica. Todavia, nos dois relatos, é possível enxergar o elemento da representação, que visa explicar o mundo a partir da construção de um ideário simbólico. É a idéia do incompreendido tentando ser compreendido por construções fantásticas – isso é a religião! Devo ser honesto nesse sentido, pois o que é religião? A religião se instala como fenômeno mais subjacentemente vinculado ao ser humano, posto que o homem é em si um ser religioso. Ontologicamente, a religião está a serviço da explicação do numinoso, da explicação do inexplicável, do entendimento do próprio homem no dizer de Rudolf Otto. Os homens erguem catedrais porque dentro de si possuem gritos, sussurros, incompreensões, expectativas e todas elas em um momento ou outro são abraçadas pelo mistério. Daí, a necessidade de se construir um símbolo para a materialização ou visibilização do ser sagrado que primeiramente nasceu no centro da alma como projeção das respostas que são feitas do lado de fora do ser humano.
Diz Rubem Alves, num dos seus livros chamado, O que é religião, que a partir desta leitura da realidade, o homem dá vários significados à morte; a vida passa a ser encarada com os seus diversos matizes de acordo com a construção simbólica ou com o sentido de crença de cada individuo – o ateu diz não acreditar na existência de Deus e busca viver como se Deus não fosse uma realidade para ele. Já o crente em Deus, guia as ações da sua vida a partir desse sentido de crença. É por se guiar pela entidade-religioso-simbólica que alguém estoura como um saco carnes, espatifando nervos, aparelhos, órgãos e leva tantos quantos é capaz, porque para ele aquilo tem um sentido, ele entende que aquele tipo de atitude renderá galardões na eternidade – vide os mulçumanos. É essa construção simbólica que direcionou milhares de monges para mosteiros na Idade Média. O símbolo condiciona a vida. Ou seja, “com os símbolos sagrados o homem exorciza o medo e constrói diques contra o caos” – diz Rubem Alves.
Quando falo em religião, por exemplo, lembro de Feuerbach, o qual disse que a religião aparece como um sonho da mente humana. A religião surge como projeção do sonho, que deriva da voz do desejo. O desejo existe no interior do ser , mas que tem de se adequar ao que se coloca como realidade. A realidade é a negação do desejo. Ela duela com a própria essência do homem, o desejo. O desejo fala da própria essência do homem. Deste modo “as verdades” mentirosas devem ser abolidas para que o desejo no ser humano torne-se verdadeiramente consumado. E nisto é que Feuerbach afirma que “a religião é o solene desvelar dos tesouros ocultos do homem, a revelação dos seus pensamentos mais íntimos, a confissão pública dos seus segredos”.
A afirmação de Feuerbach remete a religião ao próprio homem, porque para ele falar de Deus é falar do próprio homem. Ter consciência de Deus é ter consciência de si mesmo. Deus no homem surge como uma imagem refletida na parede do ser, porque Deus varia no homem, de ser para ser. Existem várias consciências de Deus no homem, quantos são os homens, tantos são o número de projeções de Deus. Deus se relativiza no ser. Deus, assim, é criado pelo desejo humano. Decodificando as características ou a personalidade de Deus para uma determinada pessoa, descobri-se os desejos desta pessoa. Deus é subjetividade. O ser determina a imagem em sua objetividade e transforma-se em objeto perante a imagem, e, a imagem, por sua vez, toma forma de sujeito.
A realidade última da religião não estaria inclinada para fatores eminentemente metafísicos. A religião encerra-se aqui, na contingência do mundo humano. Não existem fenômenos do lado de lá, puramente espirituais. Lidar com o sagrado, seria em outros termos, lidar com a antropologia. Religião é antropologia. O homem é próprio ser divinizado. A necessidade de uma divindade para o homem fala dos próprios anseios humanos. A religião é um sonho que o individuo religioso não compreende. Para Feuerbach, a partir do momento que se interpreta o sonho, a necessidade de Deus e da religião deixa de existir. Mas fiz essa pequena explanação inicial para fixar atenção e indicar um exemplo de como a obra de Harold Bloom está eivada de afirmações surpreendentes. Este é apenas um exemplo das tantas citações que são feitas e que congestionam a nossa mente com a ânsia de averiguação.
Fiz estas conjecturas em torno do tema “religião”, porque ando bastante crítico com relação a este tema. Tenho lido alguns livros de filosofia e isto está me fazendo entender o que se passa com o homem religioso. Ou seja, a religião é justamente uma preocupação com o que está dentro da alma, mas, que nós enquanto, seres complexos que somos, buscamos do lado de fora, criando projeções que no fundo, são apenas criações humanas. Tenho vivido a minha fase agnóstica. O livro do Harold Bloom não teve um papel preponderante para estimular isso. Todavia, a análise que ele faz sobre as várias versões de Jesus Cristo e Javé são de fato uma grande construção crítico-literária.
De início é feita uma afirmação emblemática de Goethe: “Enquanto estudantes da natureza somos panteístas; como poetas, politeístas; enquanto seres morais, monoteístas”[2]. Trata-se de uma colocação extraordinária do poeta Goethe. Esta afirmação forma uma espécie de trilho por onde o eixo dos argumentos de Harold são firmados, estruturados e correm quais mecanismos mágicos no livro. E, de fato, não contexto esta afirmação, pois ela encerra uma verdade importantíssima: quando se estuda a natureza, a sua beleza fantástica nos lança a compreensão de que o pan é Deus (pan – “todo” – theímos – “Deus”). A extravagância profundamente simples da natureza nos faz concluir que ali está Deus. Assim, Deus é e está na natureza. Deus é a realidade primeira e última de todas as coisas e tudo está em Deus. Como compreendia o filósofo Espinoza, “Deus é a Substância, ou seja, o Ser que é a causa de si, que existe em si, e por si, que é concebido em si e por si e que é constituído por infinitos atributos, infinitos em seu gênero e cada um deles exprimindo uma das qualidades infinitas da substância. Desses atributos conhecemos dois: o pensamento e a extensão”[3]. Goethe na verdade afirma que Deus é e está em tudo. Para mentes argutas, não há como divorciar esta questão da sensibilidade inerente aos fatos. Aprendi que este pensamento é equívoco nos meus estudos de teologia. Deus não é o mundo; o mundo não é uma extensão de Deus.
O outro pedaço da afirmação de Goethe é curiosa, pois na ânsia de compreender e “poetizar” o mundo, acabamos por “poli-teizar” a existência, ou seja, atribuir “várias divindades” à compreensão do que foi criado. A natureza impressiona-nos pela multiplicidade extraordinária pela qual ela se apresenta na sua singela e complexa manifestação. Diante do “singelamente complexo”, tentamos achar ou atribuir uma paternidade ao natural. Não há condições de se dizer fortuitamente que a origem da beleza, da arte, do inexprimível é obra do acaso ou de um complexo natural. O humano assim percebe, sente, divindades brotando de todas as partes nas regiões mais estranhas e escuras da sua alma. Como nesses versos do poeta americano Walt Whitman:

Vós! Vós! A vital, a universal, a gigante força sem resistência, que não dorme, sempre calma,
Segurando a Humanidade em vossas mãos abertas, como se fora um brinquedo efêmero.
Que, doente, sempre vos esquece!
Pois que também vos esqueci,
Absorvido que estava nessas pequenas potências de progresso, política, cultura, riqueza, invenções, civilização,
Perdi o meu reconhecimento de vosso poder sempre controlador, vós, poderosos, agonia dos elementos,
No qual e sobre o qual flutuamos, no qual todos boiamos”
[4].

A outra implicação da afirmação de Goethe passa pela esfera moral, pois no mundo ocidental, a moralidade passa pelo mundo judaico-cristão. Afinal, de contas fazendo menção da afirmação de Fiodor Dostoievski de que “se Deus não existe tudo é permitido”, podemos entender o que Goethe afirma. A moral do mundo ocidental está subjacentemente vinculada com a idéia de um só Deus – e este Deus é o Deus judaico-cristão. Não há o preceito moral como resultado da vontade de várias divindades como de certa forma havia na Grécia Antiga ou em Roma - mesmo que existisse um Zeus como divindade suprema do Olimpo. A moral é a base sólida da crença. É o regulamento absoluto cristalizado como conceito mais gregário aos homens que formam a sociedade. Ela possui a importância da argamassa que sustenta os tijolos de uma construção. A moral está a serviço da instituição. A moral é a memória da sociedade em torno da instituição. É esse cimento que sustenta o todo da sociedade. Falar da divindade é falar do absoluto. Pois, conforme a noção ocidental da divindade, passa pela cristalização da regra e, portanto, do absoluto moral. A divindade é um ente de moralidade estática. Quebrar essa moralidade é transgredir a regra e, conseqüentemente, cometer o desatino, pecar. Friedrich Nietzsche em seu pensamento tentou justamente propor o conceito da divindade dionisíaca, que está afastado do conceito “anêmico” da crença cristã, conforme mesmo propôs. Falar do conceito dionisíaco da divindade é lembrar o lúdico e a liberdade como mecanismos que impulsionam o super-homem.
Bloom introjeta esta afirmação, pois quer fundamentar nas páginas iniciais do livro o que vai ser a sua tese até o final: as idéias da divindade passam pelo gnosticismo e o seu aparelhamento místico. Bloom busca em cada página fazer uma espécie de relação da literatura, como se a Bíblia fosse interpretada a partir de um enredo – se não estou equivocado em minha colocação. É patente que ele busca mostrar a identidade de vários personagens bíblicos e lhes faz uma espécie de busca nas intenções a posteriori. Busca mostrar Javé e Jesus como dois entes opostos entre si. Javé “não é a divindade universal de um planeta que se encontra conectado por meio da informação instantânea. Contudo, Javé permanece, em quase toda parte [...] Javé, de quem me esquivei ao longo de três quartos de século, tem uma capacidade impressionante de permanecer e me rondar, se bem que mereça ser condenado por deserção, não apenas por parte dos judeus, mas também de toda a humanidade sofredora. Neste livro, o intérprete é um judeu cuja espiritualidade reage com grande fervor à antiga inclinação por nós denominada gnosticismo, e que talvez não seja uma “religião”, no sentido em que o judaísmo, o cristianismo e o islamismo constituem as principais tradições religiosas ocidentais”[5]. Assim, a presença de Javé no mundo ocidental está divorciada do conceito trinitário em sua agregação com o entendimento cristão tradicional.
Quero afirmar que gostei porque mostrou uma vertente daquilo na minha compreensão. Veio a somar pelo fato de que passei a enxergar mais de perto como um gnóstico pensa. Conhecia o sistema gnóstico apenas por definições técnicas, definidas nos sistemas apologéticos de teologia. Sempre com aquele viés descontrutor o livro de Harold, como disse no início é provocativo. A minha compreensão da divindade é diferente desta apresentada na obra Jesus e Javé. Sou demasiado conservador para aceitar essa pluralidade. O gnosticismo tem ressurgido com muita força nos nossos dias pelo fato de haver uma espécie de re-diálogo com as vertentes da antigüidade. Nunca se foi tão místico, tão pluri-facetado como em nossos dias. Desagregação? Ou nascimento de uma nova compreensão acerca do que é a divindade? O tempo dirá.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: domingo, 1 de outubro de 2006, 12:16:49 P

[1] p. 175
[2] p. 15
[3] ESPINOZA, Os Pensadores, Nova Cultural, São Paulo, 2.000, pp. 14-15
[4] WHITMAN, Walt, Folhas de Relva, Martin Claret, São Paulo, 2005, p. 18.
[5] pp. 271-72

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Ocaso casual

A essas horas da tarde
O quase noite me envolve
Sinto-me livre para ouvir
A mim mesmo.
Antevejo o ócio dos braços,
Das pernas...
O amor que me beijará
As emoções.
Quem dera todas as tardes
Se vestissem com essas cores.
O sol põe cabelos de fogo
Nas árvores: o verde
Torna-se amarelo.
Escuto a mim mesmo e
Sou livre.
As nuvens altas como
Flocos de algodão – vão-se.
Todos os dias deveriam
Ser eternos.
Os jardins lá fora
Estão verdes.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque