sexta-feira, agosto 14, 2020

Paradoxos angulosos


Nas atualizações de notícias que recebo todas as manhãs, alguns jornais veiculam a mais recente pesquisa realizada pelo Datafolha. 

Leio com um pasmo de perplexidade e desânimo. Segundo a Folha de São Paulo: "Aprovação de Bolsonaro sobe e é a melhor desde o início do mandato". A notícia escancara um desses paradoxos angulosos que tornam o Brasil uma estranha mistura de Caverna do Dragão (em que as personagens estão sempre lutando contra seres sobrenaturais e nunca encontram um caminho para sair do labirinto) com um daqueles desenhos japoneses de efeitos especiais sofríveis da década de 1980. Mas, quem dera fosse isso. Haveria pelo menos uma graça nonsense. 

O Brasil não é isso. Dizem os especialistas que analisaram a pesquisa, que o crescimento dos índices de popularidade está relacionado com o apoio das camadas populares. Ou seja, o auxílio emergencial foi responsável pelo soerguimento do apoio ao miliciano. Acredito que seja mais que isso. 

Como negar a gravidade das mais de cem mil pessoas mortas por causa da pandemia e uma ausência de preocupação do governo federal? Até hoje não há um ministro da saúde. Não há uma política de contenção da crise de saúde que assola estados e municípios. São dez mil mortes por semana. Em um mês, os números passam dos quarenta mil. Significa que, daqui a dois meses, o país se aproximará das duzentos mil mortes. Atualmente, são mais de 3 milhões de infectados, levando-se em conta apenas os casos diagnosticados. 

Nota-se a brutalização do discurso negacionista a cada vez que o dito presidente abre a boca. Um exemplo é a defesa peremptória da Cloroquina, como fez ontem, 13/08/2020, numa visita feita ao estado Pará. 

O bolsonarismo é um fenômeno do atraso brasileiro. É o triunfo dos desejos violentos íntimos do nosso atraso. É materialização da estupidez. É a consagração da ignorância. Da bestialização. É o desvelo incontido à indiferença. É a obstinada insistência de amasiamento com a nossa pobreza existencial. É o escancaramento de nossa nossa solidão.

A pergunta surge mais uma vez: como um governo estúpido, com tantas figuras bizarras (Guedes, Damares, Salles, Mendonça etc); um governo anti-ciência, anti-humanismo, anti-civilização, anti-povo, pode viver o seu melhor momento? Em um outro lugar do universo, talvez, isso não acontecesse. Mas, o Brasil, vive na dimensão do inominável e, aqui, tudo pode. 

domingo, agosto 09, 2020

Resumo cinematográfico

Três dos últimos filmes que vi.

(1) "A vida de Brian" (1979) - Penso que tenha sido a terceira vez que vi esse filme. É uma das produções mais irônicas, engraçadas e inteligentes da história do cinema. Em 2006, os britânicos a elegeram como a melhor comédia de todos tempos. Há uma habilidosa crítica implícita à religião, mas que não ofende. Desando em risadas todas as vezes que o vejo. A turma do Monty Python conseguia, como ninguém, construir situações e personagens inclassificáveis. Pilatos com dislalia é impagável. Na conhecida cena em que o governador romano pergunta à multidão, quem deveria ser libertado, a turma do Monty Python faz uma brincadeira. Pilatos pergunta para a multidão à semelhança do que acontece nos textos evangélicos: "Quem eu devo libertar?". A multidão faz silêncio. Até que um gaiato diz em tom de mofa, sendo que Pilatos com dislalia não conseguiria falar sem se comprometer. "Governador, liberte o Roger". Pilatos inquire: "Loger, quem é Loger?" A multidão cai em retumbante gargalhada. Até mesmo os soldados romanos não resistem. Genial.
 
 
(2) "Cidade Baixa" (2005) - filme de Sérgio Machado. Cinema nacional de ótima qualidade. "Cidade Baixa" é uma produção que impressiona do início ao fim. O excelente trio de atores - Wagner Moura, Alice Braga e Lázaro Ramos - vive uma ciranda amorosa fermentada pelo ciúme, pela desconfiança; conturbada em sua essência. O baiano Sérgio Machado foca a sua atenção na Salvador das contradições; da gente comum; do povo com sua sintaxe, com o seu dialeto característico; na luta diária pela sobrevivência. O roteiro da obra é assinado pelo talentoso Karim Ainouz (de "Madame Satã" e "O céu de Suely". Ao final da obra, há um belíssimo mosaico com imagens reais do povo da capital baiana.
 
(3) "Mary Shelley (2017) - dirigido por Haifaa Al-Mansour. Trata-se de uma obra cuja fotografia é impecável. A retratação do século XVIII é de alto nível. Traz a bella Ella Fanning no papel de Mary Shelley. O filme busca revelar as condições que levaram a jovem Mary Wollstonecraft Goldwin, filha de dois intelectuais, conhecida posteriormente como Mary Shelley, a escrever "Frankenstein: ou o Moderno Prometeu". Mary nasceu em 1797 (mesmo ano em que nasceu Franz Schubert) em Londres. Sua mãe, uma feminista de vanguarda para a época, morreu quando Mary tinha apenas dez dias de nascimento. Seu pai, o filósofo, jornalista e dono de livraria William Goldwin, deu-lhe uma educação heterodoxa, baseada em princípios liberais. A jovem Mary era uma grande leitora. Mais tarde, conheceu o poeta e boêmio Percy Bysshe Shelley. Após imensas contradições e angústias no relacionamento dos dois, Mary vai passar uma temporada na Suíça com Shelley, tendo Lord Byron como cicerone. Estando o grupo preso na casa por causa do mau tempo, Byron propõe que cada um dos convivas escreva uma obra. É, a partir desse episódio, que ela amadurece a ideia de colocar o livro no papel. O filme de Haifaa Al-Mansour é importante, pois desenha esse cenário contingente que leva a escrever a famosa obra. Resolvi pegar a minha versão de "Frankenstein" e antecipá-la em minhas intenções.

terça-feira, agosto 04, 2020

Um breve comentário...


Li metade do artigo. A análise do Piketty é certeira. Apesar de todos os erros, ainda penso do alto de minha miopia idealista, que o PT seja o que de mais "sólido", os trabalhadores, intelectuais e todos aqueles que querem um país mais justo, fraterno e democrático, conseguiram construir em 500 anos de violência, mandonismos, saques e mesquinharias das nossas elites. Você pode ser crítico ao partido, mas não pode deixar de ser honesto. 

O que acontece é que, construiu-se uma narrativa perversa, uma espécie de macartismo tropical contra o Partido, neste país em que a classe média não se reconhece como tal. É, por isso, que não tenho nenhuma paciência, quando vejo alguns tipinhos grávidos da mais enfunada ignorância atribuir todas as mazelas do país ao PT. O presente estado de coisas é resultado do movimento dialético da história, que do lado de cá, deixou um rastro de absurdos - violência, desmandos, escravagismo. Imagine uma sociedade em que, há duzentos anos atrás, um negro era considerado como "semovente"; contado entre os animais, tido como bicho, sem nenhuma dignidade. 

E, após a alegada abolição, não houve um acerto de contas com esse fato. Isso, certamente, cria uma sociedade em que não se respeita o ser humano - principalmente, os mais pobres, os mais vulneráveis. Ou que, no massacre de Canudos, 30 mil vidas foram ceifadas sem que o estado brasileiro fizesse qualquer "mea culpa". Um morticínio realizado pelo Exército Brasileiro, que do lado de cá, não existe para proteger a alegada soberania nacional, mas que ataca a própria população. Observe que ao longa da história do Brasil, as Forças Armadas sempre atuaram contra civis. Existem para proteger os interesses de certos grupos. São reacionários por excelência. Ou, como descreve a Daniela Arbex em "O holocausto brasileiro", 60 mil vidas são jogadas, empilhadas numa casa de correção, numa espécie de campo de concentração em Barbacena-MG sob a conivência do estado. 

E, hoje, vivemos como se nada tivesse acontecido. Acredito que 99% do país não sabe o que aconteceu lá entre 1930 e 1980. O problema do Brasil é histórico e a própria sociedade brasileira precisa acertar contas com o seu passado. Ao afirmar isso, é importante salientar que isso passa, principalmente, pelo combate à desigualdade; pelo entendimento de uma sociedade, para dar certo, precisa de justiça social, mas sem o mero assistencialismo, pois isso não subsiste. Os problemas do Brasil são profundos. Estão na sua fundação. Partido ou líder nenhum dará conta do problema sem um pacto para acertar as contas com o atraso - e o nosso atraso não é obra de dias. É um trabalho de séculos de nossas elites ignorantes e mesquinhas. O "impeachment" de Dilma passa por isso; a criminalização dos movimentos sociais e desconstrução do nosso mirrado estado de bem-estar-social passa por isso; e a eleição de um sujeito desprezível como o Bolsonaro é fruto desse histórico melancólico, cinzento e que permanece intocado.