sexta-feira, maio 29, 2015

O cinema em março - 2015

A belíssima Rachel Weisz no papel de Hipatias
O blog e o blogger atravessam um período de indigesta preguiça para com a escrita, apesar da leitura ser um gesto quase diuturno. Tenho me ocupado com muitos afazeres. O mês passou célere. A azáfama diária nos joga em um cipoal de responsabilidades que vai nos consumindo; roendo a substância física e espiritual. É preciso estar atento. Desperto. Não permitir que o aquebrantamento seja maior do que a força para a inspiração. Algumas ideias com asas curtas e ralas sobrevoaram a superfície da mente, mas não suportaram a refrega por muito tempo. Não dei atenção a elas. Não as alimentei. E elas acabaram se dissipando com a tempestade inexorável das horas. 

Apareço por aqui hoje para escrever  linhas inexpressivas sobre alguns filmes a que assisti no mês de março. Esses relatórios magros e ordinários têm surgido desde o final do ano passado. Vinha produzindo com a regularidade e o entusiasmo necessários, todavia, uma lassidão me acometeu e acabou roendo por completo as cordas da disciplina. 

Se no mês de fevereiro eu vi seis filmes, no mês seguinte eu consegui assistir a dez. Não farei resumos, posto que o momento me impede de tal empreendimento. Estabelecerei apenas uma lista ordinal. Nela, colocarei aquilo que foi mais relevante, marcante; aquilo que produziu mais estesia no momento em que vi a obra. Há na lista o kitsch hollywoodiano como, por exemplo, Sniper Americano (2014) ou O último samurai (2003); destaco a maviosidade do último e a tragédia bélica, transformada em louvor heroico por uma sociedade que aprendeu que a guerra é a forma de se relacionar com diferença que há no mundo, no segundo. 

No segundo plano, vem De repente num domingo (1983), que apesar de ser um noir de François Truffaut, pareceu-me maçante e de história bastante confusa. Logo em seguida, posiciono Lugares Comuns (2002), filme argentino, que nos dá uma ideia clara do que foi a crise econômica no início do século XXI, crise esta cujas consequências ainda estão postas na combalida sociedade portenha. Podem ser colocadas mais duas obras nesse plano intermediário: Apocalipto (2006) e O jogo da imitação (2014). O primeiro possui o "selo-Mel Gibson de qualidade", ou seja, muito sangue, encaixe de câmeras que provocam efeitos no telespectador e um fundo moral cristão, apesar da história se passar em uma América pré-colombiana. O filme possui uma dualidade: (1) o diretor conseguiu reproduzir plasticamente, com bastante felicidade, os principais aspectos da cultura e dos rituais maias; (2) todavia, permitiu que sua perspectiva religiosa da história prevalecesse ao deixar bem claro que são os descalabros morais, que levam uma civilização ao colapso implacável, como deixa bem claro na epígrafe escrita pelo historiador inglês Will Durant, no início da obra. Já em O jogo da imitação, uma película de grande densidade dramática, o principal personagem, baseado na vida do brilhante matemático inglês Alan Turing, que pagou um preço altíssimo por ser homossexual numa sociedade conservadora e que sedimenta dogmas históricos como é o caso da sociedade inglesa. Caso semelhante havia se dado com o autor de O retrato de Dorian Grey, Oscar Wilde, que amargou a  prisão após o seu romance homo-afetivo ter sido descoberto. O filme busca mostrar como o genial e operoso matemático lidou por anos, até o desfecho medonho perpetrado pelos médicos ingleses, contrários aos impulsos da natureza.

As obras que  podem ser colocadas em um plano mais alto são: (1) Stálin (1992), uma fantástica recriação de como foi o surgimento, a ascensão calculada e o desfecho do coveiro chamado Koba, que se auto-denominou Stálin ("aço") e se tornou o chefe supremo do Partido Comunista da União Soviética. O filme busca descrever a desconcertante ambivalência da personalidade desse, que é um dos mais emblemáticos personagens do século XX. E como ele conseguiu trilhar o caminho do poder. (2) Bashu (1989), um filme iraniano, um dos primeiros daquele país a fazer sucesso no ocidente. O diretor Bahram Beizei construiu um filme singelo, mas de funda beleza poética. Bashu é um menino que foge ocultamente do norte país em um caminhão, após ver a sua família morrer em uma guerra estúpida. Ele acaba atravessando o país e indo para o sul. Lá, ele encontra uma mulher que se afeiçoa dele. Ele passa a viver no sítio dela, apesar dos dois não dominarem o dialeto um do outro.

(3) Alexandria (2009), de Alejandro Amenábar, um filme para ver, pensar e refletir sobre os limites da ignorância e a fragilidade da vida. A obra conta a história de Hipatias de Alexandria, uma das mulheres mais sensacionais que já passaram por esse planeta. Hipatias representa o arquétipo do sábio, do erudito, do sujeito que devota a existência ao conhecimento. Ela substituíra o neoplatônico Plotino, na intectualmente vulcânica Alexandria, um dos locais onde mais se reuniu o saber na antiguidade. Lá estava a mítica biblioteca de Alexandria. Hipatias ensinava com a inquietação característica das grandes mentes. Essa sua característica contrariava a visão tacanha e machista, um pressuposto básico na história. Quando olhamos para a história, não notamos a presença feminina exercendo um protagonismo claro, pois a história foi dominado pelos homens. Pois naqueles dias do segundo século depois de Cristo, Hipatias já antecipava a teoria heliocêntrica, sendo que mais de mil anos mais tarde seria defendida por Copérnico e Galileu Galilei; e punha em xeque a "arrogante" teoria geocêntrica de Ptolomeu, também defendida pela Igreja. O objetivo desta teoria era dar dignidade ao homem. Tirar a terra do centro significava não atribuir o devido valor pretendido pela fé cristã. Todavia, o que fica provado no filme é que determinadas compreensões radicais e fechadas são mais fortes do que a ebulição racional de uma mente que está a serviço da sensatez e do conhecimento. Hipatias sofre duplamente: sofre por ser mulher e sofre por ser alguém de postura independente com o seu pensamento. Maravilhoso esse filme!

(4) Ladrões de Bicicleta (1948) - após Ladrões de Bicicleta, de Vittorino de Sica, fiquei com a certeza de que vi um dos mais belos filmes da minha vida. O filme italiano é uma verdadeira aula de cinema, de um cinema engajado, mas que não perde a ternura. De Sica consegue expor com um realismo dramático a vida do humilde trabalhador Antonio Ricci, um sujeito crédulo e simples, que vive em um subúrbio com a sua mulher e o seu filho. Há um crise na cidade. Os trabalhos são escassos. São anos difíceis em uma Itália esfacelada por conta dos resultados da Segunda Grande Guerra. Ricci consegue um emprego após muito sacrifício. Anima-se. Todavia, para tornar esse emprego efetivo precisa de uma bicicleta. Sua esposa bastante ciosa consegue arranjar o necessário para a bicicleta. A noite anterior ao primeiro dia de labor fora de risos, de contentamento familiar, pois o emprego daria a dignidade, a possibilidade da manutenção do projetos da família. Poderiam comer. E lá se vai Antonio Ricci bastante feliz para o seu primeiro dia de trabalho.  A atividade se resumia a colar cartazes pela cidade. Acontece, porém, que, no primeiro dia, Ricci tem a sua bicicleta furtada. E a partir daí que começa o seu calvário pelas ruas da cidade em busca da bicicleta. Há um misto de beleza e dor nessa incursão de Ricci. De Sica com essa película colocou-se como um dos grandes diretores de todos os tempos. O que conta mesmo no filme é o drama existencial vivido pela personagem. Ou seja, como reage a alma do sujeito que não consegue trabalhar na sociedade capitalista, vivendo em uma sociedade miserável em que os valores se tornam relativos e volúveis de acordo com a necessidade; como a ausência de dinheiro faz convalescer; como a sociedade capitalista trata aqueles que não conseguem consumir as mercadorias. O capital cria a desigualdade e, ao mesmo tempo, numa relação diretamente proporcional, afirma por meio dos valores criados pela sociedade de consumo, que aquele que não consome é anormal, não serve para ser incluído no jogo social. Belíssima obra!