sexta-feira, abril 22, 2022

Impressões sobre a releitura de "A metamorfose" de Franz Kafka



 “ – A senhora não precisa se preocupar com o jeito de jogar fora a coisa aí ao lado. Já está tudo em ordem.” Kafka em “A metamorfose”.

 

                Franz Kafka é um dos nomes literários mais importantes da história. É curioso observar que boa parte de sua obra não teria ficado para a posteridade, caso seu amigo Max Brod não tivesse levado à frente o projeto de divulgar os escritos do autor de A metamorfose. O autor nasceu em uma família de classe média. Cursou direito. Trabalhou em uma empresa que negociava seguros. Mas a sua grande paixão era a literatura; a escrita. Levava esse ato tão a sério que se comunicava com os seus amigos e familiares por meio de cartas.

                A literatura do escritor tcheco possui um imenso horizonte de interpretações. Quando analisamos sua não extensa produção, a impressão que fica é de pessimismo e niilismo. Kafka parece apontar para um aspecto da sociedade contemporânea e capitalista: existe uma mal-estar; um senso de asfixia que impede o homem de viver plenamente. Em seu texto, nota-se a presença de algo grandioso que possui uma força aterradora, que açambarca o indivíduo. O sistema é totalizante. É burocrático. Despersonalizado. Em O Processo, Joseph K.  não consegue localizar, tornar materializável, a entidade que engendrou o dispositivo judicial contra ele. A acusação surge de forma virtual. Sente-se a sua força, mas não se consegue identificá-la. O mecanismo é sempre ausente. Em O Castelo, o viajante chega ao limiar de um castelo, mas não consegue falar pessoalmente com o senhor que mora na propriedade. É o símbolo da burocracia fria, do sistema com a sua força opressora, totalizante. Essa força arquetípica é o que torna os seus textos desconcertantemente envolventes.

                A metamorfose é um dos poucos livros publicados com o escritor ainda vivo. Chegou a ter uma segunda edição, enquanto Kafka ainda vivia. Escrito em 1912 e publicado em 1915, o livro é um dos grandes acontecimentos literários do século XX. A obra tornou-se uma referência para várias áreas do conhecimento. Estudos variados foram realizados – e continuam a serem realizados.

                O livro é uma novela, aparentemente, singela. Mas, basta abrir a primeira página para que sejamos tomados pelo ímpeto das clássicas palavras: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. É curioso observar o quanto a história já inicia em um clímax. A desdita da personagem principal já é enunciada nos primeiros lances do romance. A partir desse ponto, questiona-se: o que aconteceu? O que levou Gregor a se tornar nesse “inseto monstruoso”? À medida que a leitura avança, não encontramos essas respostas. Pelo contrário, o que fica evidente é o quanto Gregor se torna alguém que incomoda. Sua distinta posição social de caixeiro viajante é esquecida. Enquanto era trabalhador, arrimo financeiro da família, Gregor era benquisto. Os seus pais o tratavam com respeito. Mas ao ser despido de sua posição de mantenedor e de uma pessoa produtiva, observa-se o quanto os papéis são trocados. Gregor não é tido mais como um membro condigno da família. Torna-se algo indesejado. Quando da sua morte, a irmã (aquela que parecia ter uma simpatia pelo irmão) diz: “Precisamos tentar nos livrar disso”. Ou o pai que diz após a morte de Samsa: “...agora podemos agradecer a Deus”.

                A desumanização da personagem é descrita com bastante frieza, como se alguém estivesse a dissecar um cadáver.  E, nesse sentido, é importante salientar a maneira como a história é contada. Há um aspecto de asfixia, como se o mundo de Gregor fosse se fechando. A maior parte do tempo Gregor está dentro do seu quarto, o espaço de seu confinamento, local este em que busca se esconder ou se proteger dos familiares ou de pessoas circunstantes – patrão, empregadas, inquilinos.

                Aos poucos, é possível observar como a metamorfose de Gregor é um evento que produz um imenso mal-estar. E, baseado nisso, é importante perguntar: o que é Gregor ou que representa Gregor? A sociedade capitalista com todas as suas técnicas, procura criar padrões, arquétipos. Esses padrões precisam criar um senso de conformação. Fugir desses padrões é experimentar o estranhamento dessa mesma sociedade. O julgamento da sociedade é implacável. Sanciona o expurgo. As comunidades humanas, geralmente, procuram eliminar a diferença. Nota-se que a uniformidade de comportamento é regra para convivência. A intolerância com o diferente é a regra do jogo.

                Kafka denuncia o exacerbamento dessa cultura da eliminação e do incômodo que o outro provoca, pelo simples fato, de possuir características destoantes dos padrões estabelecidos. É assim quando se dá a “metamorfose” para o fato de ter uma opção política ou religiosa diferente; quando se é idoso; quando se é estrangeiro; quando se é um morador de rua; quando se é alguém que pratica um crime e, mesmo tendo garantias jurídicas estabelecidas nos códigos jurídicos, há uma exigência pelo justiçamento.  As sociedades não toleram os seus metamorfoseados.

                A metamorfose é um livro rico de possibilidades. É de leitura desconcertante. Kafka o escreveu em pouca mais de vinte dias. Seu texto continua a gerar impressões variadas. Renova-se em sua potência, pois descreve de maneira magistral certo aspecto das relações humanas.  

quinta-feira, abril 14, 2022

"Sargento Getúlio", de João Ubaldo Ribeiro

 

                “Eu sou Getúlio Santos Bezerra e meu nome é um verso e meu avô era brabo e todo mundo na minha raça era brabo e minha mãe se chamava Justa e era braba e no sertão daqui não tem ninguém mais brabo do que eu, todas as coisas eu sou melhor”.

João Ubaldo Ribeiro, em “O Sargento Getúlio”

 

                O livro “O Sargento Getúlio” é uma obra moderna, escrita no ano de 1971, pelo baiano com espírito sergipano, João Ubaldo Ribeiro. O livro foi reconhecido imediatamente como uma obra de fôlego, recebendo encômios de grandes autoridades literárias como, por exemplo, Jorge Amado. Morto em 2014, João Ubaldo Ribeiro é uma das grandes figuras literárias da literatura brasileira contemporânea. Ao longo de sua trajetória, atuou em diversas áreas – foi advogado, jornalista, professor. Em 2008, ganhou o Prêmio Camões, o maior para um escritor em língua portuguesa.

                Ubaldo era um escritor que procurava fugir dos rituais. Era possível encontrá-lo na Ilha de Itaparica, na Bahia. Caminhava pela rua despretensiosamente. Conversar com ele era sempre um evento prazeroso. Assistindo à entrevista ao Roda Viva, gravada em 2012, é possível perceber o despojamento de sua linguagem e as idiossincrasias que o tornaram uma pessoa sempre de conversa agradável.   

                Ubaldo era uma figura, no mínimo, engraçada. Dono de uma voz grave, de um sotaque delicioso, ouvir João Ubaldo falando sobre qualquer tema gerava uma enorme satisfação.  Sua fala estava repleta por uma baianidade graciosa. Tenho buscado assistir aos vídeos disponíveis no Youtube que trazem palestras, entrevistas etc.

                “Sargento Getúlio” é um livro curto, aparentemente sucinto, que não impressiona em um primeiro olhar. Todavia, trata-se de um livro com enormes sutilezas e de leitura difícil. A dificuldade se expressa pelo fluxo de consciência de como a história é contada. Outro aspecto de bastante importância no livro são alguns termos regionalistas empregados pela personagem principal do romance. Alguns desses termos são de criação do próprio João Ubaldo.  Dessa forma, a leitura do pequeno livro não se torna fácil. Somos acertados por certo estranhamento no início. Mas, à medida que a leitura toma fôlego, realizamos um movimento para dentro da cabeça do personagem. Assimilamos os seus trejeitos; os aspectos mais cruentos e primitivos de sua personalidade agreste. Ele é um Paulo Honório acentuado pelo rigor moral.

                O romance é grandioso. Repleto de significados. Do ponto de vista do regionalismo, aproxima-se da linguagem de Guimarães Rosa. Do ponto de vista do enredo, aproxima-se do realismo mágico praticado por grandes escritores latino-americanos. 

                O livro inicia com uma epígrafe estranha – “Essa é uma história de aretê”. De início julguei, que fosse um termo indígena. Mais tarde, descobri que “aretê” é uma palavra grega, que designa a “excelência”, qualidade daquilo que se liga à honra. Liga-se essencialmente “a “virtude moral”, de cumprimento de um objetivo, de um propósito ou da função a que o indivíduo se destina. A epígrafe não poderia ter sido melhor escolhida, pois é ela que vai nortear todos os eventos da vida da personagem Getúlio.

                O enredo da história é bastante simples. Getúlio deve conduzir um prisioneiro de Paulo Afonso, na Bahia, a Aracaju, capital do estado de Sergipe. Ele vai acompanhada por um chofer, que dirige um Hudson, carro produzido na década de 1950, pela Hudson Motor Car Company, uma empresa automobilística estadunidense. Ao longo dessa jornada do interior para o litoral, a personagem se faz conhecer. Notamos o seu rígido código moral. Getúlio é um homem primitivo. Ele é um símbolo de um tipo de Brasil violento, desumano, afeito apenas a uma forma de existir; Getúlio é cruel. Ostenta a quantidade de pessoas que matou. Arranca alguns dos dentes do prisioneiro com um alicate. Não chama o prisioneiro pelo nome. Emprega nomes que buscam desumanizá-lo – “traste”, “coisa”, “peste”, além de outros termos.

                Um outro aspecto que deve ser pensado é a relação com “Os Sertões” de Euclides da Cunha. Na obra que descreve o conflito ocorrido, na Bahia, no final do século XIX, nota-se que o Brasil do litoral entranha o Brasil profundo do interior. No caso em questão, o Estado brasileiro leva a morte, a violência, aquilo que se convencionava chamar de modernidade para o interior do país, aniquilando os rudes sertanejos do interior. Já em “Sargento Getúlio”, a personagem leva a violência do interior para o litoral. Getúlio não se desvencilha da missão. Ele é a força indômita e bravia que revela o lado mais hostil de um país atrasado e que encontra na violência sua única linguagem e força de expressão, mesmo diante da ordem de não mais levar o prisioneiro a Aracaju.

                O romance é considerado o maior do ponto de vista da densidade entre aqueles escritos por Ubaldo. Há ressonâncias variadas que vão do campo estético, histórico e político. O autor não inova, não é criador de nada. De certa forma, tudo o que há de mais sensacional no romance, já estava disseminado na literatura brasileira. A paisagem romanesca é pintada por cores encontradas em uma Clarice, em um Graciliano ou em um Guimarães Rosa. Todavia, há uma urdidura com a fórmula que cria uma força impressionável no texto de Ubaldo.