quarta-feira, dezembro 31, 2014

Tempos de alegria - sobre dois livros de Eric J. Hobsbawm

Certamente que algumas das leituras mais interessantes que realizei neste ano de 2014 - que ainda resfolega os seus últimos estertores -, foram Tempos Interessantes - uma vida no século XX e História Social do Jazz, de Eric J. Hobsbawm. No início do ano, também li a nova edição para Bandidos, lançado pela Editora Paz Terra. Hobsbawn, falecido em 2012, era daquelas personalidades altas, que têm a chance de carregar em si o peso dos eventos históricos, por ter testemunhado e medido com os elementos exatos cada um desses fatos. Como de forma subentendida em Tempos Interessantes - sua autobiografia -, Hobsbawm foi testemunha de um século de fraturas, caos, transformações profundas em seus costumes e em sua base produtiva; um século de conflitos e de alastramento da cultura de massa.

Ao analisarmos sua vida em Tempos Interessantes, resta-nos uma conclusão: existem pelos menos três elementos que não poderiam ter sido extraídos de sua ontologia - (1) ele era comunista e assim verbaliza sobre sua crença na doutrina de Marx: "O sonho da Revolução de Outubro ainda está em algum lugar dentro de mim, assim como um texto apagado no computador lá permanece, à espera de que os técnicos o recuperem dos discos rígidos". (2002, p.73). (2) Hobsbawm era um historiador e foi por meio das ferramentas proporcionadas pela história e pelo materialismo dialético, chave com se destranca a porta do grande castelo da história, que ele olhou, pensou e analisou o mundo. ("Não se pode escapar do passado... Nossas vidas cotidianas, os países em que vivemos e os governos que nos dirigem, tudo isso está rodeado e inundado pelos produtos de minha profissão" (2002, p. 311). (3) e o grande pensador, intelectual e erudito era apaixonado por uma das maiores revoluções que marcaram a música popular - o jazz. O movimento cultural nascido nos Estados Unidos alcançou o historiador quando este tinha apenas 16 anos de idade; e surgiu como um supridor de carências emocionais e afetivas. Ele mesmo diz: "No meu caso, porém, o jazz praticamente substituiu o primeiro amor, pois envergonhado por minha aparência física e convencido de que era pouco atraente, reprimi deliberadamente a minha sensualidade e meus impulsos. O jazz trouxe a dimensão de uma emoção física sem palavras, sem questionamentos, para um vida quase completamente monopolizada por palavras e exercícios intelectuais". (2002, p. 99). 

Em outro trecho ele afirma sobre esse movimento, dizendo que o jazz não era apenas "um certo tipo de música", mas sim "um notável aspecto da sociedade em que vivemos". (2002, p. 252). Foi essa paixão pelo jazz que o levou a escrever História Social do Jazz, em 1959. Ao escrever o livro, Hobsbawm usou o pseudônimo de Francis Newton (em homenagem a Frankie Newton, nome de um trompetista que tocara com Billie Holiday, um dos poucos músicos de jazz sabidamente comunistas). A grande questão em torno do livro é o fato de ter sido escrito em 1959, deixando de levar em conta a transformação por que passou o movimento a partir dos anos de 1960 - principalmente com a ascensão do rock. Segundo o historiador o historiador diz em Tempos Interessantes, o rock "em poucos anos quase matou o jazz". A revolução foi insuperável. O fenômeno da nova música, reforçada pela energia jovem e contagiante, fez com que os músicos de jazz vivessem um período de ostracismo musical. Muitos deles migraram para a Europa. O movimento poderoso e avassalador vivido pelo jazz em 20 anos, principalmente entre 1940 e 1960, foi substituído pelo febricitante movimento de corpos estimulado pelo rock. No prefácio à edição de 1989 de a História Social do Jazz, Hobsbawm diz que: "as vendas de discos nos Estados Unidos, que tinham aumentado de US$ 227 milhões em 1955 para US$ 600 milhões em 1959, ultrapassaram os US$ 2 bilhões em 1973. Setenta e cinco a 80% dessas vendas representavam gravações de rock ou gênero afins". E esse fenômeno avassalador não deixou o jazz intacto. Como é típico dos processos dialéticos, os movimentos incorporaram os elementos do rock e o jazz acabou vivendo a sua fase experimentalista. O fusion é uma dessas manifestações, que acabou levando os puristas a aumentarem a quantidade de cabelos brancos por causa de suas preocupações em manter o movimento sem a influência, segundo eles, "perniciosa" desse movimento "maculador". 

Para Hobsbawm, entre os vários motivos que levaram a ascensão do rock, três eram os principais: (1) o tecnológico, que acabou possibilitando o grande avanço da música eletrônica. O rock foi um dos movimentos musicais a utilizar uma engenharia capaz de produzir para as grandes massas. (2) dizia respeito ao conceito de conjunto, pois o movimento não precisava de virtuoses como o jazz a exibir as suas habilidades. Estrutura do rock (baixo, bateria, guitarra, voz) possuía uma aspecto absurdamente simplificador. Nesse sentido, o rock era mais democrático, pois qualquer sujeito "amador" ou formalmente "analfabeto" para as convenções musicais poderia montar o seu conjunto e "gritar" para o mundo. (3) dizia respeito ao ritmo "insistente" e "palpitante". Tal fato, fez com uma multidão cada vez mais densa de jovens, principalmente adolescentes, visse no movimento a expressão do seu universo de desejos, instintos, sentimentos e aspirações. O jazz passou, a partir daí, a ser encarado como música de intelectuais ou de velhos. 

Mas de onde veio o jazz? E é para responder a essa pergunta que existe como substrato em toda a obra, que o grande historiador marxista gasta boa parte de seu tempo. Para ele, o jazz é uma manifestação social alijada a um herança africana. As melodias complexas. A energia vibrante. A estrutura harmônica. E a sua estrutura inconfundível atestam a sua essência revolucionária. Talvez, seja uma das manifestações mais revolucionárias da música ocidental, pois surgiu no seio da cultura negra, visto pela mainstream hegemônico como forma inferior. Sua força vem justamente do grito oprimido dos negros. Vem dos spirituals americanos. Dos cultos protestantes gritados, angustiados, no qual o pregador encarna a energia a serviço do fervor da palavra. O jazz é essa força, esse espírito carregado de energia esfuziante, capaz de revelar a intimidade daquele que externa a sua manifestação. Não é uma manifestação contida. O jazz assim como o blues, que é o seu parente mais próximo, são feitos para que o ouvinte sinta. 
Apesar de ter surgido nesse meio carregado de fervor religioso, o jazz estava carregado de uma energia antipuritana, secularizante, sensual ao extremo. E, talvez, tenha sido por isso que migrou para os bares de Chicago; para os cabarés de St. Louis; para os prostíbulos de New Orleans; para os guetos e passou a ser associado a música de negro. Nomes como Louis Armstrong, Thelonius Monk, Charlie  "Bird" Parker, Miles Davis, Eric Dolphy, Art Blakey, John Coltrane, Ornete Coleman, Dizzy Gillespie etc estão amarrados à história do movimento. São figuras icônicas, as quais não se pode desvencilhar a identidade do movimento. 

Resta apenas me aproximar do jazz com o máximo de reverência como um ser apaixonado que se aproxima de uma ninfa jovem, mas sendo sabedor do potencial de amor que ela guarda em si. Estou ouvindo Somethin' Else, de Miles Davis, em um disco que traz nomes como Cannonball Adderley, Art Blakey e o próprio Miles Davis e tenho certeza que Hobsbawm faria um sinal com a  cabeça em sinal de aprovação e balançaria a perna, gesto consequente quando ouvimos uma música como essa Somethin' Else. 

quarta-feira, dezembro 24, 2014

O Natal como (res)surgimento de um novo tempo

"Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra". 
Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas".

Os homens não poderiam viver sem fé, crença e esperança. A fé é um pressuposto necessário. Quando me refiro à fé, não quero deixar a ideia de que se trate apenas de fé convencional, institucional. Não há ou houve uma cultura em que algum tipo fé não estivesse presente. Existe aquela passagem emblemática do livro bíblico de Eclesiastes que diz que "Deus colocou a eternidade no coração do homem". Independente da relação que o homem tenha com a divindade - de crença ou não crença - parece existir um desejo por segurança no coração de todos nós. A fé gera, necessariamente, essa segurança. Ela cria uma sensação de pertencimento e conduz o sujeito a "descansar" de seus medos e infortúnios. 

É mais fácil caminhar quando se tem um destino determinado, uma estrada que conduz a um fim estabelecido. A religião, nesse sentido, é construtora de estradas. É uma bússola capaz de orientar a consciência daquele que crer. O sujeito religioso é aquele que cria âncoras psicológicas para navegar no oceano revolto da existência. Quando as dúvidas surgem; quando o medo da morte, da doença e os seus efeitos, das angústias variadas aparecem, o sujeito que tem uma crença, enfrenta com maior ousadia e determinação o seu obstáculo. Existe aquela passagem marcante do livro de Habacuque, profeta bíblico do antigo testamento, que diz mais ou menos assim: "Ainda que não haja gado no curral; ainda que o produto da oliveira minta; ainda que não haja fruto na vide, eu me alegro no Senhor". Essa passagem ilustra bem essa certeza do ente religioso. 

Por mais que a sociedade tecnologizada e afeita à técnica queira decretar o funeral de Deus, como bem havia observado Nietzsche no final do século XIX, a fome pelo sagrado continua viva. O sujeito pode até se afirmar ateu, agnóstico ou outra coisa; pode até negar a existência de qualquer discurso universal ou apelo absoluto; todavia, em algum momento esse sujeito coloca, ergue para si um altar que o alimenta existencialmente. Pode não seguir os parâmetros determinados pela religião convencional, mas existe algo, lá no fundo, que faz com que o sujeito oriente a sua vida. Como disse Ludwig Feuerbach, aquele amante inveterado desse mistério, no final do século XIX, no seu livro "A essência do cristianismo": "Religião, o solene desvelar dos segredos ocultos do homem, a revelação dos seus pensamentos mais íntimos, a confissão pública do seus segredos de amor".

Tenho minhas desconfianças para com a religião oficial. Vejo-a caricata, castradora, dogmática, mas essa é a sua essência. Quando se crer e se ama algo, rapidamente se arregimenta formas para proteger aquilo que se ama. É, por isso, que os homens colocam proteção em torno dos jardins. É para proteger sua beleza frágil. Por sua vez, quando se crer em algo, também, rapidamente, criam-se "fórmulas de certezas", os dogmas, que são declarações, afirmações irrefutáveis sobre determinado assunto. Um dogma existe para não ser questionado. Existe para ser obedecido. Ninguém em juízo pleno pode tentar questionar o dogma. Os conflitos por causa da religião surgem por causa desse fato. Aqueles que não dão a mínima para o dogma, acabam insultando aqueles que vivem para o dogma. 

Mas, por que escrevo essas garatujas errantes? Ora, pelo fato de hoje a cristandade oficial celebrar o nascimento de Cristo, que é o ponto fundante e miraculoso da experiência legitimadora da fé e, que, mais tarde, transformou-se em dogma. Ao pensar sobre isso, não posso deixar de entender que a fé é um evento circunstancial, pois se tivesse nascido no Japão, na Índia ou no interior da China, não estaria me preparando para esse evento. Faz lembrar aquela velha afirmação: "Se os cavalos pensassem como os homens, seus deuses teriam a forma de cavalo". E, nesse sentido, é impossível não voltar a pensar em Feuerbach. 

Não desprezo o momento. Já fui crítico da ocasião. Já achei em minha presunção que, aqueles que comemoravam o Natal, eram sujeitos alheios ao verdadeiro fato histórico que representa o Natal. Já alimentei o pensamento de que os homens fracos sempre criam a ideia de um deus forte; que os oprimidos, sempre erguem o papel de um deus vitorioso; que os feios constroem um deus que representa o belo. Não que, no fundo, tal compreensão não esteja grávida de uma certa coerência. Mas é preciso reconhecer a oportunidade que se tem, nesta data, o Natal, de se poder encontrar pessoas. Confraternizar com aqueles que não vemos a maior parte do ano. Existe um elemento simbólico-poético potencialmente grávido de despertamentos no Natal. É importante não deixar que ele murche.

É o momento de interiorização, de olhar para a consciência e julgá-la pelos fatos realizados. Acredito que precisemos mais desses rituais. Como dizia Durkheim, o homem é o único ser capaz de analisar o exterior e o interior de si mesmo, diferente dos outros animais, que vivem apenas o exterior. A modernidade açambarcou a capacidade do homem olhar para o seu interior. De fazer reflexões. De ler poesias. A capacidade de contemplar a natureza. De trabalhar a dimensão do numinoso existente em cada um de nós. A estesia vivida como resultado dos grandes momentos. 

O Natal, como a indústria capitalista quer nos fazer crer, não é uma corrida desvairada e caótica ao templo do consumo. Mas é um momento para fazer renascer a possibilidade de um recomeço em torno de todas as coisas. É o momento para abraços. Para confissões não enunciadas em outros momentos em decorrência do embrutecimento da vida. É o momento para que se abra o coração para que o cheiro jasminesco da solidariedade entre e faça morada, enfrentando aquela força chamada "desencantamento do mundo" por Max Weber. Natal é renascimento, despertar, caminhada, reinauguração daquilo que já existiu e estava adormecido na insensibilidade dos dias de aniquilamento da esperança. Comemoremos o Natal - nem que seja como uma metáfora de um novo tempo.

domingo, dezembro 21, 2014

Surpreendido mais uma vez

C.S. Lewis (1898-1963)
O tempo é uma entidade curiosa. Parece que hoje eu tenho uma noção de que ele se pulveriza bem mais rapidamente do que em outras épocas. Dormimos. Acordamos. Realizamos meia dúzia de atividades com completa desconexão, apenas seguindo aquela força maquinal do cotidiano e, de repente, temos que dormir novamente para acordar e reiniciar todo evento circular. 

Constato que tenho lido numa velocidade cada vez menor. Fazendo isso, sigo uma via paradoxal em relação à consciência que tenho do tempo. Estou lendo três livros ao mesmo tempo. No passado, eu já cheguei ler cinco ou seis. Era um frenesi constante. Chegava a vencer nove ou dez em um único mês. Atualmente, tenho lido muito pouco. E isso acaba gerando em mim uma indignação silenciosa, dessas que se alastram como fumaça e deixa a gente com os seus efeitos duradouros. A despeito disso, resolvi iniciar a leitura de um livro que há muito eu procurava. 

Enquanto eu era um estudante de teologia, lá pelos idos de 2003, li Surpreendido pela Alegria, de C.S. Lewis. E, a primeira vez que o li, fui como sugerido pelo título, "surpreendido" por uma estilo agradável e por uma narrativa autobiográfica de grande qualidade. Lewis diz no início da obra que não pretendia escrever um tipo de livro que se assemelhasse às Confissões de Santo Agostinho ou às Confissões de Rousseau. Penso que neste ponto resida uma humildade fingida da parte do inglês, posto que o livro possui uma leveza poética e uma qualidade que nos faz desconfiar que por trás daquelas letras do autor, há alguém saturado dos aromas da literatura. 

Já estava procurando o livro há uns seis anos. Entrei em contato com a Livraria Mundo Cristão, responsável pela publicação em 1998, mas eles me informaram que não havia nenhuma previsão de reimpressão da obra nos próximos anos. O exemplar que li pertencia à biblioteca do Seminário Presbiteriano de Brasília. 

Todavia, os ventos venturosos trazidos pelos deuses vieram até mim e eu o achei na rede. O livro inteiro em uma versão em PDF. Sei. Não é a mesma coisa que o objeto físico. Ler no computador não é uma das melhores coisas. Já li livros na tela, seguindo aquele fluxo de letras miúdas e luminosas - O crime do padre Amaro (Eça de Queirós), A peste (Camus), O Anticristo (Nietzsche) entre outros - e a experiência não é a mesma que ter em mãos o livro. Atualmente, ando lendo O homem desenraizado, de Todorov, também na tela do meu notebook. E tenho planos de ler O descobrimento da América do mesmo autor. É cacete ler no computador. Mas vamos lá...

Li, hoje à noite, as primeiras vinte páginas do livro de Lewis (assim que terminar pretendo fazer uma pequena resenha) e me detive nas palavras abaixo. Ao ler essas palavras, embarquei em uma viagem que me levou ao passado. Recordo-me de que quando li cada uma delas pela primeira vez, tomei as palavras como um valor quintessencial que me seguiria pela vida a fora.  Sempre desejei, desde o dia que li isso, tornar em uma verdade inseparável, inarredável. Ou seja, jurei nunca me afastar dos livros. E, hoje, lendo essas palavras, não deixo abrir os lábios em um sorriso de satisfação por algo que vivi, que descobri - e que foi bom. Ah! o tempo...

"[...] Meu pai comprava todos os livros que lia e jamais se livrou de nenhum deles. Havia livros no escritório, livros na sala de estar, livros no guarda-roupa, livros (duas fileiras) na grande estante ao pé da escada, livros num dos quartos, livros empilhados até a altura do meu ombro no sótão da caixa-d'água, livros de todos os tipos, que refletiam cada efêmero estágio dos interesses dos meus pais-legíveis ou não, uns apropriados para crianças e outros absolutamente não. Nada me era proibido. Nas tardes aparentemente intermináveis de chuva, eu tirava das estantes volume atrás de volume. Encontrar um livro novo era para mim tão certo quanto, para um homem que caminha num campo, é certo encontrar uma nova folha na relva.". (C.S. LEWIS, 1998, 20).


domingo, dezembro 14, 2014

Que tipo de educação queremos: aquela que defende o consenso ou aquela que enxerga a história como um palco de atuação e transformação?

Essa é a ideia de educação que as elites brasileiras ainda sustentam - e que o Estado propagandeia -, deixando clara a sua posição acerca de um conformismo; uma defesa explícita do consenso em torno de um tipo de educação alienada, tecnicista, fordista em sua concepção para as classes populares. 


Publicidade realizada pela Prefeitura do Rio de Janeiro, publicada no Jornal O Globo em 07/12 (o que coaduna com a alma ideológica do veículo publicizante) e que mostra crianças numa linha de produção. 


Faz lembrar isso:

sexta-feira, dezembro 12, 2014

A fala de Bolsonaro contra Maria do Rosário e a lógica da violência

Acabei de ler o texto Lógica do Estupro, da filósofa Márcia Tiburi e fiquei a pensar o quanto existe de dimensão psicológica em nossos comportamentos aprendidos - e o quanto isso é externalizado em nossos preconceitos e pré-compreensões que emulam os comportamentos sociais. Nesta semana que finaliza, um dos acontecimentos que geraram reações escandalizantes em todo o país foi a fala truculenta, massiva em seu nível mais profundo de primitividade do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) contra a deputada Maria do Rosário (PT-RS). A fala em si é condenável e digna de cominação legal. Mas o que me chama a atenção é o que está por trás da verbalização do parlamentar da bancada da bala. 

Lendo alguns comentários nas redes sociais sobre a repercussão da fala do truculento político, percebi a defesa implícita da atitude do deputado por parte de algumas pessoas. Algo assim: "Mas ela em outra situação o chamou de estuprador". Se a deputada havia agido dessa forma, que ele procurasse a justiça para reivindicar seu direito. A fala do deputado, enunciada do púlpito do plenário, não é justificável nem aqui no planeta terra, nem em qualquer outro lugar do universo. Outro sujeito chamou a deputada de "desgraçada". E fiquei a pensar sobre isso.

Na verdade, o que faz com que o deputado afirme: "Não a estupro porque você não merece" está centrado em duas realidades interpretativas, notadas até por um aluno de ensino fundamental: (1) ele é um estuprador; (2) a deputada não é digna de ser estuprada, mas há outras mulheres que são. Dita em um ato de desvario ou em sã consciência, a fala de Bolsonaro deixa latente, como diz Marcia Tiburi, citando o caso Gervais de Tilbury, personagem do livro Eva e os padres, de Georges Duby, grande medievalista, que o estuprador reivindica a lógica da força por ver na mulher um ser estuprável. Em entrevista ao Jornal Zero Hora, ele reitera o que disse, fazendo uma nova afirmação ("Ela não merece porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia. Não faz meu gênero. Jamais a estupraria"). Com isso, ele exalta a prerrogativa de que é "macho", homem, potente, que encerra em si força superior. Age assim por ser um autoritário, que não consegue enxergar no outro a dignidade ou um sujeito de direitos em sua humanidade singular. O estupro é uma das maiores violências encontradas nas relações anômalas ditadas no mundo social. Ela é antiga. Cruel. Violenta por subjugar o outro e desonrá-lo. Torná-lo em um ser abjeto, subserviente, que estar ali apenas para ser um brinquedo descartável que servirá ao jogo de diversões egoístas do valentão. 

No fundo, o estuprador é um sujeito fraco, que não conseguiu sair da animalização para a humanização. É misógino. Ver a mulher e qualquer realidade que externe a figura do feminino como algo frágil. É, por isso, que ele ver no homossexual um ser desprezível, porque deixou de ser homem. Se há sexo entre homens (relação homoafetiva), ele acha desprezível. Mas, se ao contrário, a mesma relação se der entre mulheres, ele julgará como sendo menos nociva. Ou seja, o que sustenta tal comportamento é a força legitimidadora do falo. Quem tem e usa é "homem de verdade".  Subutilizá-lo é ser visto como ser reprovável, pois tal subutilização caminha em direção ao feminino. Isso explica, por exemplo, porque existe a figura do homem predador que sai na noite e diz que "comeu" muitas mulheres. Quanto mais se "pega", mais forte e viril é o sujeito nessa espiral gradativa da infantilização. E, como diz a Marcia, quando isso acontece, fica a demonstração da 'miséria subjetiva, no narcisismo infantilóide (por que parece com uma caricatura infantil da época em que ele mostrava sua genitália aos coleguinhas no banheiro) que, arranjados na lógica do estupro definem a condição inumana na qual ele se compraz'. 

É essa relação que define, por exemplo, o tratamento do estado para com os pobres. Do valentão da escola. Do marido que bate na esposa. Da polícia que bate em negro, que violenta os pobres da periferia. Vez ou outra os sentimentos do valentão vem à tona pelo simples fato de o sujeito ter um pênis e uma impressão que pode fazer determinadas coisas por ser homem. Já ouvir algumas pessoas afirmarem: "Mas ele é homem. Ele pode fazer. Não vai acontecer com ele". A estrutura psicológica dessa frase foi construída histórica e socialmente. Quando isso acontece a lógica do estuprador se instalou.

quarta-feira, dezembro 10, 2014

O cinema em novembro

O mês de novembro acabou. Sei. É uma obviedade desnecessária. O fato é que não cheguei fazer alguns daqueles comentários magros que me dispus a realizar. É que passei a levar o cinema muito a sério. Acabei fazendo uma daquelas promessas bobas, que geram obrigações pequenas, mas necessárias. Desde o mês de agosto, tenho visto, em média, dez filmes por mês. Mês passado eu assisti a treze no total. E o destaque fica por conta das produções argentinas. Foram cinco no total. Comentarei três desses filmes mais à frente - Relatos Selvagens, Um conto chinês e Medianeras - Buenos Aires na era do amor virtual

O primeiro filme que vi no mês de novembro foi Poesia (2010), de produção sul-coreana. Poesia é um filme delicado. É a história de uma senhora de 67 anos que resolve aprender poesia, ingressa em um curso e passa olhar o seu dia a dia com outra perspectiva. É um bonito filme! 

Dois filmes brasileiros apareceram no menu - Menino de Engenho (1965), que busca retratar um dos principais romances de José Lins do Rego. Quem já leu a obra vai perceber que essa produção do Cinema Novo, realizada por Walter Lima Jr. - e com participação na produção de Glauber Rocha - leva em conta os aspectos mais relevantes da obra do escritor paraibano. Trata-se de uma interpretação lírica da vida de Carlos Eduardo, o menino que vivia em meio aos canaviais do Engenho Santa Rosa e descobria os encantos da infância. A outra obra é Pra frente, Brasil (1982), que revela as arbitrariedades da Ditadura Militar no Brasil. O filme mostra como os cidadãos eram vulneráveis à selvageria e a brutalização patológica dos agentes do estado. Excelente filme - apesar de alguns problemas técnicos. 

Os outros filmes foram: O assassinato de Trotsky (1972), que mostra como o assassino covarde e de personalidade fraca e niilista matou, a mando das autoridades soviéticas, uma das mentes mais pujantes e brilhantes da primeira metade do século XX. Vi ainda o eletrizante Cidadão Kane (1941), de Orson Welles; Mel de Laranjas (2012), que aborda a vida de um soldado que tergiversa entre a vida como militar e como militante de um grupo esquerdista durante a Guerra Civil Espanhola. O bonito e delicado Pequena Jerusalém (2005), que mostra a vida de uma estudante de filosofia, amante de Kant, que tem que conviver, na periferia de Paris, com as tradições do seu povo e a austeridade da razão. Surge daí um conflito existencial. A obra mostra como a religião acaba delimitando o mundo das pessoas. 

Mas, o mês de novembro foi rico em produções argentinas, como enunciei no início. Disse há alguns dias que o cinema argentino está bem à frente do cinema nacional. Entre boas e excelentes atuações de Ricardo Darín, o cinema argentino "vai revelando" para o mundo boas histórias; enredos fortes e resultados de excelência. Vi, assim, Elefante Blanco (2012), que conta a história de um padre que trabalha em uma favela em Buenos Aires. Kamchatka (2002), talvez tenha sido, das produções que vi, aquela que se mostrou mais modesta. O filme narra a história de uma família que se ver perseguida e busca arrumar alguns esconderijos para que os filhos não percebam o que acontece durante o período da Ditadura Militar na Argentina. Nesse sentido, gostaria de fazer alguns comentários (não extensos) sobre três dessas produções: 

(1) Relatos Selvagens (2014) - já comentei sobre o filme em outro post, mas a obra se revela como um melhores filmes que vi nos últimos anos. O filme possui a cronicidade de um conto de Júlio Cortazar ou o poder labiríntico, enfeitiçante, de uma história de Borges. E penso que talvez resida aí a superioridade do cinema argentino. Se pesarmos a quantidade de escritores bons que saíram - e ainda escrevem - daquela terra, chegamos a uma conclusão: os argentinos sabem o que fazem em matéria de cinema e literatura. Um país que produziu um Borges, um Cortazar, um Sábato, um Adolfo Bioy Casares, um Alan Pauls, um Ricardo Piglia etc, com certeza, possui instrumentos inauditos para criar obras refinadas. Penso que essa querela criada pela imprensa brasileira em torno de uma suposta rivalidade, na verdade, seja um recalque - ou, ainda, uma isca futebolística com finalidades comerciais. Admitamos: os argentinos, do ponto de vista cultural, estão à nossa frente. Por exemplo, enquanto lemos, em média, 1,9 livros por ano, eles leem 7. 

(2) Um conto chinês (2011) - este filme é uma delícia. Mostra como a rotina draconiana do personagem encenado pro Ricardo Darín, acaba sendo balançada pelo inusitado. E, acima de tudo, revela como o inusitado (lei de Murphy?) pode juntar aquilo que está separado. Ou ainda: como o objeto que transforma a vida de alguém em tristeza, pode se transformar em ponto de encontro ou marco que dar início a uma nova jornada. Atuação genial de Darín. Excelente filme!

(3) Medianeras - Buenos Aires na era do amor virtual (2011) - Medianeras não é um filme feito apenas para a gente pensar. Há graça nele! Mas, o centro da obra é a vida citadina e seu niilismo que afasta as pessoas. A cidade é uma redoma de tensões, de separações, de encontros epidérmicos, casuais e aparências que ocultam aquilo que é mostrado na superfície. A vida na cidade é cercada pela deletério. Pelo medo. Pela enfermidade. O homem da cidade, conforme diz uma das personagens, é aquele que não consegue se afastar do vício virtual. "A internet me aproximou do mundo mas me afastou da vida". Cena curiosa é aquela em que uma das personagens vai lançar fora as fotos que estavam no celular e observa em palavras carregadas de efeitos reflexivos: "380 fotos; 38,9 megas de história são apagados num ato simples e irreversível", fazendo-nos pensar sobre como nossas existências estão presas a censores ou a transistores. Como a tecnologia se incorporou ao nosso próprio respirar. Medianeras são aqueles lados feios, caricatos, onde não se pode achar graça. Os lados esquecidos dos prédios que são aproveitados para afixar publicidades. O lugar onde não se pode colocar uma janela ou permitir que o ar entre. Pois, quem vive em uma cidade parece lidar constantemente com o fato de que as medianeras asfixiam a nossa vida.  Ou a própria medianera é uma metáfora da vida colapsada pela morbidez do niilismo. Não quero deixar aqui nenhum spoiler. Veja o filme, se há interesse em minha recomendação! Está no Youtube

domingo, dezembro 07, 2014

O exercício inquieto...

"O cronista é um escritor crônico". Affonso Romano Sant'Anna

Este espaço tem estado entre o abandono completo e o relapso do seu postador oficial. Não gostaria que fosse assim. A indisciplina me priva completamente de aparecer mais vezes. Não é falta de motivos, nem de ideias. Talvez seja a quantidade de trabalho e exigências. Todavia, se há foco, esse obstáculo também é contornado. Na próxima semana entrarei de férias. Por isso, penso em comparecer de forma mais recorrente por aqui. Há ainda uma expectativa de estudos. Vou me auto-exilar em uma biblioteca pública todas as manhãs no meu período de recesso.

Pretendo retornar aos textos magros, ao olhar míope, crivado de clichês e a emitir opiniões sobre as notas que escuto com uma audição deficiente. Não escrevo para que haja leitores. Intenção não tenho de que este espaço se torne um recanto de curiosos. Até me falta a suficiente musculatura intelectual para empreender grandes maratonas literárias. A irregularidade das leituras me aborrece. Meus muitos livros comprados em 2014 são uma efígie em minha consciência. Estão prestes a me devorar por completo. Não restará um tecido sequer. Impaciento-me.

Mas a literatura é um labirinto. É como naquele conto do Cortazar - A continuidade dos parques. Eu leio o autor que me lê através do seu personagem. Ela é uma porta dimensional que conecta o real e a representação do real, suscitada pela narrativa.  Há pouco estava lendo o livro O homem desenraizado de Todorov e tropecei nessa pequena parte do livro. Estou até agora pensando sobre o que li. O autor franco-búlgaro faz um pequeno resumo de um conto de Maupassant, chamado de A joia. A literatura é a construtora e a destruidora de mundos. E é essa emersão que realizamos em espaços como este, todas as vezes que lemos um livro que possui uma força verrumadora. Olha o que diz Todorov:

"Uma jovem mulher de origem modesta pede emprestado a uma conhecida rica um colar de diamantes para usá-Io no baile; por infelicidade, o colar é roubado. A mulher toma como questão de honra devolver a joia: pede emprestada uma soma enorme e compra um colar idêntico. O resto da vida transtornou-se: ela passa os anos seguintes a reembolsar a dívida contraída. Anos mais tarde, quando sua vida já está em declínio, ela reencontra a antiga benfeitora e lhe relata fielmente o incidente. "Minha pobre amiga", exclama a outra, "os diamantes eram falsos, o colar não valia nada." (Todorov, Tzvetan. O homem desenraizado. Editora Record, 1999, p. 73)

Isso é atordoante!


terça-feira, novembro 18, 2014

Um adorável marxista: Leandro Konder (1935-2014) - por José Paulo Neto

Li o texto abaixo hoje à noite e senti uma vontade enorme de compartilhá-lo. Foi escrito por José Paulo Neto, um dos mais profundos estudiosos de Marx em nosso país. José Paulo Neto presta uma singela homenagem a Leandro Konder, morto a semana passada. Konder é um escritor que aprendi a admirar. Devo ter quase dez ou mais livros dele em minha biblioteca. Sua epistemologia está fincada no materialismo histórico dialético, apesar disso não é um ortodoxo duro. Consegue dialogar com a ciência histórica marxista, mas consegue imergir em temas da literatura e da estética, por exemplo. Recordo-me que tenho aqui em casa livros sobre Benjamin, sobre Kafka e sobre Brecht escritos por ele. Apenas para exemplificar, um dos livros expressivos que li este ano foi dele: "Os sofrimentos do homem burguês", que, no título, já faz uma referência explícita aos Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. Além disso, há um outro livro dele que julgo essencial: "O marxismo na batalha das ideias". 

Abaixo, o texto de José Paulo Neto, extraído do site da Boitempo.

As lutas de classes, especialmente nas conjunturas sociais tensas e mais crispadas, afetam diretamente os comportamentos das mulheres e dos homens que estão na linha de frente dos confrontos políticos. Quem deles participa sabe como é difícil manter a firmeza de princípios e de posições ao mesmo tempo em que se conservam a serenidade pessoal e o trato urbano – seja com inimigos, adversários e mesmo companheiros. Sem paixão não há combate revolucionário pelo socialismo, mas a paixão, tomada em si mesma, não é qualidade revolucionária: só o é quando dirigida por uma racionalidade (envolvente de meios e fins) que implica, necessariamente, a mediação da cortesia e – tomemos a palavra tão desusada hoje – gentileza.
Pois bem: o falecimento de Leandro Konder, cerca de um mês e meio antes de completar 79 anos, vitimado há mais de uma década por uma enfermidade cruel (a qual resistiu com inenarrável estoicismo, graças também à dedicação de Cristina, sua extraordinária companheira), empobrece substantivamente o marxismo e a esquerda brasileiros: com ele se foi um homem que soube, como muito poucos, combinar a firmeza de princípios e de posições com a gentileza, a polidez e a generosidade em todos os níveis das relações humanas. Morreu um adorável marxista.

Não me cabe, nesta hora triste, deter-me na sua obra – tema de outras intervenções minhas em oportunidades anteriores[*]. O decurso do tempo permitirá, estou certo, avaliar a relevância efetiva de suas várias dezenas de livros e ensaios (e centenas de artigos, numa carreira de escritor iniciada precocemente no final dos anos 1950) com rigor e justiça. Mas há três planos da sua atuação sobre os quais o juízo dos contemporâneos parece-me conclusivamente estabelecido.

O primeiro diz respeito ao seu papel agregador na frente cultural democrática que se articulou na imediata sequência ao golpe de 1º de abril de 1964: militante do PCB (ao qual esteve ligado até os inícios da década de 1980) desde adolescente, Leandro foi protagonista daquela paradoxal hegemonia (estudada por R. Schwarz em texto antológico de 1969) de que a esquerda brasileira desfrutou na cultura brasileira entre 1964 e 1968.
O segundo é relativo ao seu desempenho no magistério universitário, no qual ingressou em 1982; por mais de vinte anos, foi professor literalmente adorado por estudantes, querido pelos pares e respeitado pelos adversários.

E o terceiro está vinculado à sua atividade de publicista: foi notável o seu trabalho como competente tradutor de expressivos autores marxistas (especialmente de G. Lukács, de cujo pensamento foi um dos introdutores no Brasil, além de ter vertido ao português textos de Marx e Engels  e ainda, entre muitos, de E. Fischer, R. Garaudy), como informado divulgador de temas palpitantes da tradição marxista clássica (alienação, estética) e como didático analista de autores/obras de grande complexidade (Marx, Hegel, F. Kafka, W. Benjamin, B. Brecht).   

Penso mesmo que é precisamente na sua publicística que Leandro, em uma atividade cuja característica central foi a de um verdadeiro pedagogo, ocupa um espaço absolutamente indisputado. Como publicista, no trato dos marxistas, exercitou a divulgação com um espírito aberto, avesso a qualquer tom dogmático; com os não-marxistas, estabeleceu uma interlocução compreensiva, despida de preconceitos, não doutrinária. E sempre se expressando numa escrita cristalina, fresca, bem-humorada, acessível ao comum dos leitores – uma linguagem para transcender os círculos dos “iniciados”. Neste campo, Leandro rompeu com um viés de polêmica que falsamente identificava firmeza teórica com argumentação grosseira e agressiva. Aqui, antes que uma lição, Leandro lega aos  pósteros um exemplo.

Redijo esta brevíssima nota em meio ao desconsolo e à tristeza. Aqueles que, como eu, ainda na adolescência quando eclodiu o golpe de 1964 e então se voltaram para atividades de natureza político-cultural, todos tivemos – sem prejuízo de outros intelectuais e pensadores brasileiros de peso – em Leandro, e em figuras como Carlos Nelson Coutinho (nome tão ligado ao dele!), Fernando Peixoto e Aloísio Teixeira homens que nos influenciaram decisivamente. Perdemos os quatro em dois anos.

No meu caso particular, vínculos para além dos políticos e intelectuais acabaram por me vincular a estes quatro extraordinários brasileiros. O desconsolo deve-se a que são insubstituíveis num panorama cultural que reclama imperiosamente protagonistas do seu quilate. E a tristeza porque, com  eles, se foi parte significativa da minha vida – a juventude – , aquela em que eles me ajudaram, e muito, a construir o meu (pobre) jeito de estar no mundo.



sábado, novembro 15, 2014

Relatos Selvagens - a superioridade do cinema argentino e a natureza humana



[...] cada homem é um ser social, dotado de um papel e de um estatuto particular; mas cada homem é também “algo além” [...] Georg Simmel, pensador alemão.

Ontem à noite, saí do Espaço Itaú Cinema, aqui em Brasília, com uma certeza: o cinema argentino está a algumas galáxias à nossa frente. Ainda ficamos engatinhando em pastelões com roteiros ruins, do tipo besteirol; ou na estética da violência que vem da favela. É só analisar, por exemplo, a lista de filmes que encabeçou as grandes bilheterias aqui no país nos últimos dez anos. Nesta semana, eu tive a oportunidade de assistir a três longas argentinos: Elefante Blanco (2012), Kamchatka (2002) e o visceral Relatos Selvagens (2014), a qual pretendo fazer algumas considerações. Mas, o que dizer ainda de Tese sobre um homicídio (2013) ou O segredo dos seus olhos (2009)?

Com direção de Damían Szifrón e produção do espanhol Pedro Almódovar, Relatos Selvagens é construído por seis histórias curtas e independentes, reveladoras de absurdos ou situações extremas com as quais as personagens devem conviver - ou pelo menos arranjar uma solução. Curiosamente, as soluções revelam o lado primitivo e animalesco do mundo humano. A tese que fica é a de que os homens não se diferenciam dos outros bichos quando são colocados em situações que exigem uma iniciativa rápida. Pois há vingança, humor invertido, fúria, corrupção extrema e uma sensação profunda de que existimos entre o senso de civilização e barbárie, fazendo ecoar aquela sentença de Nietzsche de que o homem é uma corda atada entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre um abismo.

As seis histórias são surreais. A primeira (bastante curta) demonstra uma situação em um avião. O comissário de voo queria se vingar daqueles que zombaram dele. Por isso, consegue armar uma situação para tirar a limpo toda a humilhação sofrida no passado. Ou a história macabra de um restaurante de beira de estrada, em que a garçonete atende o sujeito mafioso que arruinara a sua família. E sente um desejo de vingança. A cozinheira gorda e ex-detenta rapidamente toma a iniciativa de arquitetar como seria morte do sujeito. As cenas que se seguem são de tirar o fôlego.

Ou ainda a história de um ricaço que segue em seu Audi em uma autoestrada e pede passagem para um sujeito que segue em um carro em péssimo estado. A despreocupação do ricaço e a lentidão do outro gera uma situação em que os piores sentimentos do ser humano acabam vindo à tona, como acontece tantas vezes nas grandes cidades. O motorista do Audi dá luz alta várias vezes. Irritado, o condutor do carro que estava à frente, sente-se molestado. O ricaço consegue a ultrapassagem, mas insulta o pobre. Mais à frente, o pneu do carro do Audi fura e a partir desse fato a barbárie se instala de forma completa. O desfecho é dos piores possíveis.

A história protagonizada pelo sempre presente nas produções argentinas - o excelente Ricardo Darín - é revestida de humor invertido e moral kafkafiana. Um engenheiro bem sucedido que trabalha com implosões se ver metido numa trama invísivel, com os requintes mais bizarros da impessoalidade da burocracia. Seu carro é guinchado, mesmo ele tendo estacionado em local apropriado. A partir daí começa a sua luta pessoal contra as garras morosas e asfixiantes do Estado, representado pelas figuras pachorrentas e arrogantes dos seus agentes. A quem se deve pedir satisfação, quando na sua individualidade, você tem os seus direitos atingidos? A quem reclamar? Ao presidente da República? À vaguidão da lei? O Estado com a sua máquina é o Leviatã hobbesiano, monstro que não se preocupa com os estertores do cidadão oprimido. Faz lembrar K., personagem de Kafka em O processo. Em meio à ciranda caótica e estressante das grandes cidades, sendo vitimado pela inércia, pela corrupção de uma sistema intangível, o cidadão se sente asfixiado e arruma saídas estapafúrdias, como fica demonstrado no desenlace da pequena história. Lembrei-me de Os contos da era de ouro.

Ou a história de uma família rica de Buenos Aires: o filho atropela uma mulher grávida após ter bebido e o pai tenta construir uma espiral corruptora com a ajuda do advogado da família. A situação é pagar 500 mil dólares ao caseiro da família para assumir o crime no lugar do filho. Mas o plano é descoberto pelo investigador (figura do estado), que aos poucos é cooptado pelo jogo sujo da advogado, que faz o papel de hiena - a se aproveitar do cadáver da situação. O desenlace também é de impressionar. 

A última história é aquela em que os aspectos mais profundos da psicologia humana são trabalhados. Retrata um casamento e o desfecho da cerimônia, que vai do tragicômico à reação intempestiva, quando o  inesperado se faz presente. Nesse espaço, convivem o cômico, o trágico, o forte tom farsesco e o demônios dostoievskianos.

Relatos Selvagens é construído de modo que os espectadores não tomem fôlego. Uma história é colada à outra de forma rápida, sem que haja tempo para respiração. A finalidade é fazer com que quem está do lado de cá experimente a diluição dos aspectos humanos das personagens, que se mostram como sujeitos normais, dentro de aconetcimentos normais, com as quais todos nós (que estamos do lado cá) experimentamos na cotidianidade individualizada da modernidade, mas que acabam se desdobrando em situações que fogem aos ditames da razão. Nesse sentido, o senso de massificação, exatidão, dinheiro, racionalização e anonimato, que são construtores da alma e do caráter do homem moderno, são desconstruídos pelo aspecto primitivo de nossa natureza. Curiosa é a cena que se segue logo após à primeira história do filme. À proporção que os créditos com o nome dos atores são anunciados, alguns animais são anunciados numa clara explicitação metalinguística - hienas, crocodilos, ursos, leopardos, águia etc - como se dentro nós morasse a personalidade de cada um deles. Vivendo em sociedade, o homem passa a ser fera. ("O Homem, que, nesta terra miserável,/ Mora, entre feras, sente inevitável/ Necessidade de também ser fera". - Augusto dos Anjos). 

Ainda estou pensando sobre o o filme. Excelente! 

domingo, novembro 09, 2014

Algumas fotos emblemáticas do século XX

Ao presenciar as imagens abaixo, fiquei impressionado com a evocação que cada uma delas nos transmite. Retirei-as de um site de história, que traz 42 fotos marcantes do século XX, um século marcado pelo conflito, pelo genocídio, pela face extrema da barbárie, pela opulência/miséria e pela consolidação do capitalismo como sistema capaz de engendrar dramas; capaz criar um estilo de vida completamente desumanizador.

Campo de Concentração de Buchenwald, Alemanha, 1945.

Garoto inglês abandonado sobre os escombros da Segunda Guerra, 1945.

Adolf Hitler, 1939.

Alemanha Nazista, 1939.

Florence Owens Thompson, 1936, Oklahoma, EUA. Segundo informações, ela tinha pouco mais de 30 anos. Mas o sofrimento e a pobreza imprimiram rugas profundos em seu rosto.

Claude Monet, 1923.

Nova York, primeira década do século XX.

Albert Einstein, o cientista pop, exibindo suas belas canelas em Long Island, EUA, 1939

Big Jay McNelly, no Olympic Auditorium, Los Angeles, EUA, numa apresentação de Jazz, 1953. Curiosa são as feições dos apreciadores da música diante do esforço performático extremo do artista. 

Nova York, 1910

Stalin, Truman e Churchill, na Conferência de Postdam, 1945, que definiria os rumos da Segunda Guerra Mundial

Jovens americanas treinam boxe, 1930. A década de 20 trouxe mudanças profundas no comportamento feminino.

Martin Luther King, Marcha sobre Washington, 1953. 
Crianças novaiorquinas brincando perto de um cavalo morto, primeira década de 1900.

Menina descalça trabalha em uma fábrica têxtil da Nova Inglaterra, 1910


sábado, novembro 08, 2014

Uma afirmação de Eric Hobsbawm

Ando lendo o livro Tempos Interessantes, de Eric Hobsbawm, uma mente com uma história pessoal bastante privilegiada. Neste livro é possível perceber a honestidade e a integridade desse sujeito que soube analisar, medir e pensar as marcas contraditórias do seu tempo, que segundo ele foram "extremos", mas também foram "interessantes". Assim que concluir a leitura pretendo fazer algumas considerações esparsas sobre essa fascinante obra. Lendo o capítulo 17, capítulo este em que o famoso historiador radicado na Inglaterra fala sobre a atividade dos historiadores no século XX, encontrei as belas palavras que se seguem abaixo. É possível perceber a impressão de forte emoção e sinceridade.

[...]"Os negócios da humanidade são hoje conduzidos especialmente por tecnocratas, revolvedores de problemas, e para os quais a história é quase irrelevante; por isso, ela passou a ser mais importante para o nosso entendimento do mundo do que anteriormente. Silenciosamente, em meio à discussão sobre a existência objetiva do passado, a mutação histórica se tornou componente principal das ciências naturais, evoluindo da cosmogonia para um darwinismo ressuscitado.Com efeito, por meio da biologia molecular e evolutiva, da palentologia e da arqueologia, a própria história humana está sendo transformada, está sendo reinserida no arcabouço da evolução global, e mesmo cósmica. O DNA a revolucionou, Assim, sabemos agora como é extraordinariamente  jovem o Homo sapiens como espécie. Saímos da África há 100 mil anos. Tudo o que se descreve geralmente como 'história' a partir da invenção da agricultura e das cidades não chega a pouco mais de quatrocentas gerações humanas, ou 10 mil anos, uma piscadela para o tempo geológico. Dada a dramática aceleração do ritmo do controle da humanidade sobre a natureza nesse breve período, especialmente nas últimas dez ou vinte gerações, o conjunto da história até agora pode ser visto como uma explosão de nossa espécie, um tipo de supernova bissocial que se expande para um futuro desconhecido. Esperemos que não seja catastrófico. Enquanto isso, e pela primeira vez, dispomos de uma estrutura adequada para uma história genuinamente global, restaurada a seu devido lugar central, nem englobada nas humanidades ou nas ciências naturais e matemáticas, nem tampouco separada delas, porém essencial a ambas. Gostaria de sr jovem o bastante para poder escrevê-la.

Mesmo assim, foi bom ser historiador, mesmo em minha geração. Acima de tudo, foi agradável. Numa conversa sobre seu desenvolvimento intelectual, meu amigo Pierre Bourdieu, certa vez disse:

Vejo a vida intelectual como algo mais próximo da vida do artista do que da rotina da academia [...] De todas as formas de trabalho intelectual, o ofício de sociólogo é sem dúvida aquela cuja prática me trouxe felecidade, em todos os sentidos da palavra

Substituindo o sociólogo por 'historiador', eu digo amém".

sexta-feira, outubro 31, 2014

Alguns filmes de outubro

O mês de novembro chega à curva do caminho. Aos poucos vai morrendo. Não mais existirá um outubro de 2014, significando que este mês é marco realizável, mas que não será mais experienciável - apenas em 2015, 2016 etc. O mês de outubro foi carregado de emoções. Mês de eleições. Para presidente foram dois turnos, em que se pôde presenciar de tudo: mentiras, dissimulações e tentativas de golpes por parte da mídia nacional. Fiz uma militância sem igual. Emendei críticas contra raciocínios pequenos; contra visões afetadas pela miopia política e filosófica. Estive com o coração aos saltos em alguns momentos, principalmente, domingo, 26, dia decisivo do segundo turno.

Além dessas atividades, assisti a doze filmes. Tomei a firme resolução de ver dois filmes, no mínimo, por semana sempre que possível. Claro, em alguns momentos a conta foi exacerbada. Alguns filmes eu revisitei como, por exemplo, o sempre aprazível O nome da rosa e os bons filmes brasileiros Desmundo e Mauá: o imperador e o rei. Estiveram ainda na linha de ação: o brasileiro Carlota Joaquina; o surpreendente filme alemão A onda; os hollywoodianos O preço do amanhã, que se mostrou interessante pela trama distópica, mas que encerra com aqueles finais previsíveis; e o fraquíssimo - e também distópico - O doador de memórias (Meryl Streep já esteve melhor); assiti à sensacional pintura política em forma de comédia de Kubrick, o Dr. Fantástico; o sensacional Nebraska, um road movie de fina sensibilidade, do diretor Alexander Payne; o filme possui uma trilha sonora (que tenho escutado bastante) arrebatável, entre o folk americano e a reflexão onírica e impressionista encontrada nas cenas filmadas em preto e branco;  vi o épico A Infância de Ivan, de Tarkovski; esteve também em meu cardápio o bom filme uruguaio O quarto de Leo, que aborda a temática homossexual. Todavia, dois filmes me deixaram muito feliz - o filme chinês O caminho para casa e o franco-belga Violette, bastante denso e de uma visceralidade arrebatadora.

Não pretendo dar spoilers sobre os filmes. Quero apenas apontar algumas impressões sucintas:

Violette (2013), de Martin Provost, é um daqueles filmes que embriagam. A começar pela belíssima fotografia da França da Segunda Guerra Mundial. O diretor nos coloca em uma Paris com laivos suburbanos. Uma cidade melancólica, porém charmosa e de febricitante produção intelectual; uma cidade de casas com aquecedores problemáticos e papéis de paredes mofados. Provost já havia conseguido esse recurso no bonito Séraphine (2008) e o repetiu agora. O filme mostra a personalidade conturbada e o drama pessoal de Violette Leduc até que esta se torne a escritora bem sucedida de A Bastarda. Inclusive, procurei o livro para comprar na Estante Virtual. Não tive êxito. Há a notificação de que existem alguns exemplares, mas não conseguimos efetivar a visualização da disponibilidade. O filme põe no centro a aproximação intelectual de Leduc com Simone de Beauvoir (a companheira de Sartre), uma feminista no sentido lato do termo. É nesse período conturbado do século XX, que Beauvoir está escrevendo O segundo sexo, uma das obras fundamentais do século passado, que debate o papel da mulher na sociedade burguesa. De certa forma, o papel de Leduc é simbólico para o desenho da obra que Beauvoir escreve. Leduc é uma personagem de personalidade complexa: abortara na juventude. possuía inclinações homossexuais; é perseguida por tramas mentais que colocam mulheres em posição de vanguarda em um ocidente cristão machista e conservador. Enfim, é um filmaço!

O caminho para casa (2000), de Zhang Yimou, é uma experiência singular de fina poesia e beleza. Há algum tempo atrás vi Balzac e costureirinha chinesa (2002), do diretor Dai Seiji, e fiquei impressionado com a suavidade da obra. A cena final do filme é uma das cenas mais sublimes que já vi: a personagem caminha pelas montanhas de uma China que vive sob o maoísmo e um dos Concertos para violino de Mozart (não lembro qual) toca e aquilo vai se rarefazendo, mostrando o poder infinito da beleza. Já no filme de Yimou, temos novamente uma China rural, bucólica, singela. O filho vem de uma cidade  grande para o enterro do pai.. Ao chegar encontra a mãe desconsolada. O que ela queria era fazer com que o marido viesse pela estrada que levava ao povoado (ele estava morto em outro lugar). Nesse ponto, o filho, como um narrador em off, começa a contar como se dera o romance entre a mãe e o pai - que viera ser professor no pequeno povoado. Curioso recurso é utilizado pelo diretor: o início e o final do filme foram filmados em preto e branco e, no meio, onde encontramos a construção do romance, o filme ganha cores (primeiro do outono e depois do inverno), talvez para mostrar a relação construída por eles. Belíssimo filme!

segunda-feira, outubro 27, 2014

Uma resposta, um esclarecimento

Os dois textos abaixo são resultado de uma resposta a um comentário que fiz; e, logo abaixo, uma réplica feita por mim. Escrevi algo no Facebook que gerou uma crítica. Nesses dias em que a falta de inteligência e o preconceito tomaram de conta do Brasil, fui chamado de forma subliminar de ignorante. Abaixo, veio a minha resposta. 

A resposta de alguém que não concordou com aquilo que escrevi: 

A esquerda demonstra certa altivez ao pensar que quem crítica os escritos de Marx, Engels, Gramsci, Weber, e demais, o faz por não ter lido detidamente seus tratados. Em muitos casos, ocorreu foi o contrário. E além desses autores, gastou-se tempo lendo também, Von Mises, Hayek, Smith, Friedman dentre outros. Autores esses que refutaram aqueles, com certo triunfo. 

Como disse, a julgar pelos argumentos que leio aqui, não se conhece bem uma das duas (ou as duas), (1) a história da luta de esquerda, e as consequências que ela traz; (2) a comosvisão cristã. Dogmas existem tanto à direita, quanto à esquerda. O esquerdismo em si não seria um? 

Por que digo isso? 

Porque as lutas de esquerda, no médio e longo prazo, deixaram mais sequelas do que benefícios. Pegue a questão da fome na Ucrânia, o chamado Holodomor, que matou, segundo sustentam alguns, mais de 3 milhões de pessoas. Acrescente-se a incapacidade com que governos de esquerda demonstra em lidar com a liberdade de pensamento, de ir e vir, religiosa etc. 

Vocês, de ideologia de esquerda, reduzem o debate à ajuda aos necessitados. E isso é um erro tremendo, posto que os fins não justificam os meios. Há muito mais coisa na esquerda que vai para o lado oposto daquilo que sustenta luta cristã. 

Cristãos de esquerda confundem ALTRUÍSMO com ASSISTENCIALISMO (a caixa alta é apenas para realce, uma adaptação para o "negrito"). O primeiro é fruto de um espírito grato pela salvação que recebeu. O segundo, um programa de estado, que em certos casos é legítimo. 

O amigo que lê os profetas confunde, até mesmo, o contexto de tais escritos. Comete um anacronismo histórico, não observa as nuances textuais, que devem ser observadas para uma boa interpretação de qualquer texto, eclesiástico ou não. 

Aqueles homens denunciavam a corrupção moral dos líderes daquelas nações, a falta de temor ao Deus da aliança com o povo escolhido e a mistura ideológica deles com os povos que não estavam debaixo do mesmo pacto. Por causa disso Deus os julgaria. E os profetas denunciavam isso. 

Deveria ser considerado por vocês que, por exemplo, nenhum país de herança protestante nasceu, se construiu e se tornou potência debaixo dos ideais de esquerda. Nenhum! Não há nem um exemplo sequer. 

A história mostra o contrário. Países de esquerda se tornam intolerantes com os cristãos. O próprio Karl Marx, um dos proeminentes do pensamento esquerdista, cunhou, em plena Alemanha protestante, de maioria cristã, a célebre frase "a religião é o ópio do povo". O ideal socialista nasce nesse berço. 

Por outro lado, vemos que os países mais filatropos do mundo são justamente os que vocês, de esquerda, definem como neoliberais. São os que mais enviam dinheiro para os lugares onde a fome e a miséria são latentes, como a África de maneira geral. 

Dizer que as ações sociais da igreja são tacanhas é desconsiderar, mais uma vez, o que ensina a história. Quantos hospitais construídos mundo à fora? Quantas escolas também? Quantas universidades nasceram pelo esforço de cristãos (como exemplo, cito apenas o pastor John Harvard, que fundou a universidade com seu sobrenome), observe o índice de recuperação dos presos nos presídios administrados por cristãos na Coréia do Sul, país com forte presença cristã protestante e veja que tudo isso depõe contra o que foi alegado aqui. 

Há, ainda, o fato de que os países onde existe mais igualdade social são exatamente os países que nasceram em berço cristão, sobretudo o protestante. Como exemplo, dentre os muitos possíveis, temos Suíça, Suécia, Noruega, Holanda e EUA. Se tornaram ricos, não nasceram ricos. 

Enfim, um pouco mais de atenção aos bons livros de História e vocês perceberão que o cristianismo, no âmago, não possui nenhum vínculo ideológico com a esquerda, a principiar pelas motivações. 

Para o cristianismo, restauração material, intelectual e espiritual andam de mãos dadas. Para a esquerda, a restauração material basta (no campo ideológico. No prático, nivela-se por baixo, empobrecendo o rico, ao invés de enriquecer o pobre). Eis a aí o cerne do descompasso.

Minha réplica em forma de resposta:

Li atentamente o seu texto e percebi a contumácia, a obstinação, que é tão típica em pessoas que acreditam que estão com a verdade. A certeza da verdade gera conforto. Isenta-nos de investigações. Faz com que durmamos de forma tranquila. Quando somos sabedores que não temos mais sobre os ombros o susto da dúvida e que todos os nossos caminhos são luminosos, viver passa a ser um gesto de profunda leveza. Ou seja, eu tenho a verdade, mas os outros... ora, os outros são os outros.  Notei a vaidade da fala de um protestante por trás de cada uma das vírgulas, das letras, das sentenças, das orações, dos períodos “firmemente” construídos. 

Permita-me apontar alguns problemas conceituais no seu texto: 

(1) Você colocou Marx, Engels, Gramsci e Weber como sendo de “ideologias ditas de esquerda”, algo que é problemático. Weber não pertence a esse grupo. Quando se fala em nomes que constituem o pensamento marxista (digo: marxismos), Weber não se encontra entre eles. Se pelo menos aqueles que são críticos da “famigerada” esquerda, lessem Weber, teríamos mais facilidade para entender alguns processos como, por exemplo, o desencantamento do mundo, as sociedades modernas sobre o influxo do capitalismo, a burocratização das sociedades e a base motivacional das sociedades ditas desenvolvidas. Depreende-se disso que misturar Gramsci, Engels, Marx e Weber é um problema de quem não leu nem este nem aqueles. 

(2) Os economistas citados são em sua essência liberais. Sua refutação aos comentários acima demonstra a sua crença em um tipo de modelo econômico absurdamente problemático para países como o nosso. Inclusive, o nosso país é vítima desse modelo econômico.  O liberalismo é um modelo que otimiza o primado do individualismo em detrimento da solidariedade (Como disse George Kennan, um dos fundadores do neoliberalismo via Consenso de Washignton: “paremos de falar de valores vagos e poucos realistas como direitos humanos, a elevação do nível de vida e a democratização”). As nações europeias o praticaram de forma profunda em suas histórias, principalmente a partir do século XVIII, quando a burguesia se apropria do mundo e dos mercados. Após a Revolução Francesa, alguns economistas entenderam que era necessário que houvesse liberdade para que as mercadorias circulassem. Todavia, por trás da assunção do discurso da ordem e do progresso, havia uma brutal luta pela sobrevivência. Mas isso não era um problema para o liberalismo. A Inglaterra das máquinas, da Revolução Industrial, era um antro em que crianças de 8, 9, 10 anos, se embrenhavam em buracos para retirar carvão por 8 ou 10 horas por dia. Homens e mulheres trabalhavam de forma escrava para receber um emolumento ordinário. A burguesia se apropriou do poder e percebeu que precisava de liberdade e mercados para que os seus produtos escoassem. Ou seja, é justamente aí que reside o problema, pois passa a haver uma classe explorada e uma que se beneficia da exploração. O individualismo, o mérito, a iniciativa pessoal, eram meios necessários ao fortalecimento da atuação do capitalismo que se robustecia dia a dia. Esses sujeitos citados buscaram desenvolver teorias para tornar a exploração e o domínio meios de legitimar teoricamente o sistema, para fazer valer o lucro acima de todas as coisas. Os países do continente latino-americano, da África e boa porção da Ásia foram as geografias que serviram de centros produtores de matéria prima para gerar a riqueza dos países centrais – europeus e os Estados Unidos. Portanto, se eles refutaram Marx, o fizeram apenas com um intento: justificar o lucro, as novas formas de robustecer o sistema e legitimar a propriedade privada dos meios de produção. 

(3) A generalização é outro problema, pois se chama de esquerda todo movimento existente. De qual esquerda se fala? Ou: o que é à esquerda? A nomenclatura “esquerda X direita” passou a ser utilizada na Revolução Francesa. Do lado direito ficavam aqueles que queriam a manutenção do Antigo Regime, que via no absolutismo do rei a sua força e, do outro, à esquerda, aqueles que queriam mudanças. Ora, utilizemos esse raciocínio: analisando Jesus e seus contemporâneos, quem estava à direita e quem estava à esquerda? Os fariseus representavam quem? Ora, os profetas, sei, no fundo, buscavam fazer uma pregação moral para que o povo se voltasse para Javé, mas de que lado eles estavam?  Quando vociferam contra a injustiça e a malevolência das elites aristocráticas que viviam bem, enquanto o povo passava fome, de que lado estavam?  Hobsbawn diz que o livro de Amós parece “um discurso bolchevique inflamado”. O grande problema é ler sempre os textos históricos com uma determinação dogmática, despolitizando-os. Por trás de toda sociedade, existe um contexto de lutas sociais. Existe um governo constituído, valores, embates, contradições. São essas contradições que permitem o avanço da história. A história é justamente o resultado da colisão de fatos, que fazem originar situações novas repletas de elementos dos processos anteriores. O que é a cosmovisão cristã, senão uma maneira de olhar de forma etnocêntrica para o mundo? Senão uma forma de torná-lo em vontade e representação? Submetê-lo a uma linguagem? Uma forma de se achar dono de todas as interpretações históricas, pois para o cristianismo dogmático, a história já está encerrada, afinal: (a) existe um Deus que é providencial e já determinou todas as coisas; (b) existe uma teofania; (c) uma epifania; (d) existe uma ascensão profética, por isso, se diz: “Vejam! A volta de Jesus está próxima. Não há mais soluções para o mundo”. Ou seja, interpretações dos fatos da eternidade pelos fatos da história; (e) essa revelação do fim da história é salvífica; (f) é apocalíptica; (g) ela é universal, pois compreende toda realidade conhecida; e (h) e é completa, pois tudo se consumará. Ora, tais apontamentos devem gerar certezas e afirmações repletas de juízos com relação àqueles que não estão conscientes disso. Se tudo está determinado de forma positivista, por que se importar com a história e com a luta do oprimido?  

(4) Parece que consigo notar um outro tipo de generalização muito costumeira, que é a comparação, deixando de lado o significado histórico de cada movimento dito de esquerda,  aonde ele aconteceu. Quero crer que se faça aqui menção à União Soviética, a Cuba, à Coreia do Norte, ao Vietnã, à antiga República Democrática Alemã etc. É preciso ler um pouquinho os textos de Marx para perceber que esses supostos movimentos não chegam nem perto daquilo que o alemão apontou em seus escritos. Marx nos propôs um projeto de emancipação para a humanidade, uma espécie de desafio muito parecido com aquele proposto pelo Evangelho. Ou seja, um projeto de liberdade, de generosidade, de solidariedade. Nesse sentido, Marx está mais perto de Jesus do que Friedman, Ricardo ou Smith. Estes propunham a lei do mais forte – pois no fundo é isso que é o liberalismo – e aquele propunha um projeto de emancipação do ser humano. Quando leio o evangelho, eu não consigo visualizar outra coisa senão isso.  Acredito que o problema esteja no modo como se interpreta. Quando leio o segundo capítulo de Atos, não vejo nada diferente de uma sociedade comunal. 

(5) O processo de desconstrução da suposta esquerda apontada por você começou a após a Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, os EUA saíram como a nação mais forte da Guerra. Antes da Guerra eles já eram fortes, mas se consolidaram como vendedores de armas e exportadores de produtos para o mundo todo. O anti-comunismo (esquerdismo?) ficou mais forte após a divulgação dos Relatórios Krushev, em 1956.  Após as várias Ditaduras instaladas na América Latina pelos Estados Unidos, a esquerda passou a ser vista como inimiga, como monstro, como “comedora de criancinhas”, mito que muitos defendem ainda hoje. Nessa época, o primado da liberdade e da democracia estavam assentados na família, na fé cristã e na propriedade privada. Ou seja, o seu pensamento faz jus a isso. Não o culpo. Você é vítima de um projeto anti-esquerdista. Outra questão: aqueles que se dizem anti-esquerda, só fazem referências às mortes provocadas pela suposta “ditadura do proletariado”. Quantas? 50 milhões? 60 milhões? E quantos agora estão morrendo nos continentes africano e latino-americano por causa da ingerência capitalista? A suposta “filantropia” alegada é uma farsa, posto que os países centrais acabaram com esses continentes e, hoje, ficam enviando migalhas (que servem para distencionar crise estabelecida na relação capital-trabalho) sobejadas da mesa lauta deles. Isso é bem a cara do cristianismo institucional. 

(6) Se eu errei cometendo um “anacronismo”, o que dizer quando uma pessoa cita Marx, ignorando o contexto da fala do autor? Pois fique sabendo, que com essa fala, Marx não estava condenando a religião – ou a possibilidade de se seguir uma. Nos escritos de Marx, ausente das relações estranhadas, o homem pela manhã trabalharia e, à tarde, ouviria música, plantaria um jardim, comporia poesias, iria para a sua paróquia, ou seja, ele pode “ser-mais”. A frase “A religião é o ópio do povo” é como aquela frase de Nietszche (“Deus está morto!”), que crente adora citar em Escola Dominical, mas que desconhece o significado delas.  

(7) Citar a Universidade de Havard ou os fundadores dos EUA, acredito que não cabe aqui. São contextos completamente diferentes. Foram sociedades construídas com finalidades bem distintas. A sociedade americana segue a sua própria história como uma religião. Ela está fundada em ideias como fé cristã, individualismo, liberdade (palavra que possui um valor simbólico, já que deve ser entendida como a possibilidade de não coibir o sujeito para as iniciativas a que ele se determinar), moralismo e crença em um destino como terra capaz de subjugar todas as demais. A suposta “caridade” realizada por esses países é “mesquinha”, “pequena”, pois não toca na principal questão para acabar com a desigualdade, que a existência de um modo de produção que fulmina com a vida de milhões de pessoas todos os anos. Cerca de 1 bilhão de pessoas da humanidade passam fome. Ou seja, será que essas pessoas são culpadas ou existe uma razão para isso? E aí começam a surgir as perguntas. Coreia do Sul, a Suécia, a Suiça, enviam mantimentos, mas quantas multinacionais desses países estão instaladas em lugares pobres e miseráveis, subtraindo as riquezas dos povos. Por exemplo, só a Suécia são mais de 300 empresas que estão instaladas pelo mundo afora, inclusive aqui no Brasil. Não acredito que o verdadeiro Jesus aprovasse isso. 

(8) Suas palavras são coerentes com o espírito da fé protestante, que gera “descompassos”, pois é arrogante e individualista. E se existe algo que a fé protestante fez foi sacralizar a consciência e dessacralizar o mundo. Ao acontecer isso, a humanidade como um todo perdeu o seu valor sacral, magnânimo. O mundo tornou-se um fim para o utilitarismo. Uma aposta para o acentuamento da desigualdade e da indiferença.  Em um mundo em que todas as coisas são medidas segundo a sua utilidade, até mesmo o homem corre o risco de se perder. Foi a fé protestante que serviu de cimento ideológico para a racionalização econômica do ocidente. Foi ela que permitiu o surgimento do liberalismo, que funciona em sociedades como a americana ou a inglesa, locais estes onde não houve acontecimentos dramáticos como os que se deram aqui no Brasil ou em qualquer país da América Latina. Nesse sentido, aconselho que você leia um livro de Jean Delumeau, chamado de “Nascimento e Afirmação da Reforma”. 

(9) E outro erro conceitual é acreditar que o PT seja um partido de esquerda. Isso é um desconhecimento profundo da história do Partido dos Trabalhadores e das determinações que ele veio a tomar, sobretudo, com a Carta ao povo brasileiro. Talvez, o PT não chegue a ser nem mesmo um partido social-democrata, embora tenha algumas aproximações. O PT hoje assumiu uma posição de centro, com nuances progressistas e desenvolvimentistas. Fez acordos com os setores econômicos mais conservadores. Se existe um partido com os quais os capitalistas lucraram, esse foi o PT. Nos últimos 10 anos, as ações da bolsa de valores brasileira, somente perdeu para a China e para o Índia. Os bancos nunca lucraram tanto. Nunca se pagou tanto os juros da dívida pública, que chega a consumir cerca de 42% da arrecadação. Mas, por que então tirar o PT? Hoje, o PT ainda defende posições que incomodam o grande capital, principalmente, com o modelo econômico que mantem os níveis de emprego e uma preocupação – mesmo que incipiente – com a distribuição de renda.  

Gostaria de finalizar. Não estou disposto continuar esse bate-papo. Não levará a lugar nenhum. Você pensa com a sua “cosmovisão cristã” e, eu, com algumas categoriais com as quais você não corrobora. Então, enquanto falarei sobre o dia, você falará sobre a noite; enquanto você discursar sobre o céu, falarei sobre a terra; enquanto você discursar sobre a metafísica como elemento que determina a materialidade, falarei das relações materiais que se dão na história.