segunda-feira, outubro 27, 2014

Uma resposta, um esclarecimento

Os dois textos abaixo são resultado de uma resposta a um comentário que fiz; e, logo abaixo, uma réplica feita por mim. Escrevi algo no Facebook que gerou uma crítica. Nesses dias em que a falta de inteligência e o preconceito tomaram de conta do Brasil, fui chamado de forma subliminar de ignorante. Abaixo, veio a minha resposta. 

A resposta de alguém que não concordou com aquilo que escrevi: 

A esquerda demonstra certa altivez ao pensar que quem crítica os escritos de Marx, Engels, Gramsci, Weber, e demais, o faz por não ter lido detidamente seus tratados. Em muitos casos, ocorreu foi o contrário. E além desses autores, gastou-se tempo lendo também, Von Mises, Hayek, Smith, Friedman dentre outros. Autores esses que refutaram aqueles, com certo triunfo. 

Como disse, a julgar pelos argumentos que leio aqui, não se conhece bem uma das duas (ou as duas), (1) a história da luta de esquerda, e as consequências que ela traz; (2) a comosvisão cristã. Dogmas existem tanto à direita, quanto à esquerda. O esquerdismo em si não seria um? 

Por que digo isso? 

Porque as lutas de esquerda, no médio e longo prazo, deixaram mais sequelas do que benefícios. Pegue a questão da fome na Ucrânia, o chamado Holodomor, que matou, segundo sustentam alguns, mais de 3 milhões de pessoas. Acrescente-se a incapacidade com que governos de esquerda demonstra em lidar com a liberdade de pensamento, de ir e vir, religiosa etc. 

Vocês, de ideologia de esquerda, reduzem o debate à ajuda aos necessitados. E isso é um erro tremendo, posto que os fins não justificam os meios. Há muito mais coisa na esquerda que vai para o lado oposto daquilo que sustenta luta cristã. 

Cristãos de esquerda confundem ALTRUÍSMO com ASSISTENCIALISMO (a caixa alta é apenas para realce, uma adaptação para o "negrito"). O primeiro é fruto de um espírito grato pela salvação que recebeu. O segundo, um programa de estado, que em certos casos é legítimo. 

O amigo que lê os profetas confunde, até mesmo, o contexto de tais escritos. Comete um anacronismo histórico, não observa as nuances textuais, que devem ser observadas para uma boa interpretação de qualquer texto, eclesiástico ou não. 

Aqueles homens denunciavam a corrupção moral dos líderes daquelas nações, a falta de temor ao Deus da aliança com o povo escolhido e a mistura ideológica deles com os povos que não estavam debaixo do mesmo pacto. Por causa disso Deus os julgaria. E os profetas denunciavam isso. 

Deveria ser considerado por vocês que, por exemplo, nenhum país de herança protestante nasceu, se construiu e se tornou potência debaixo dos ideais de esquerda. Nenhum! Não há nem um exemplo sequer. 

A história mostra o contrário. Países de esquerda se tornam intolerantes com os cristãos. O próprio Karl Marx, um dos proeminentes do pensamento esquerdista, cunhou, em plena Alemanha protestante, de maioria cristã, a célebre frase "a religião é o ópio do povo". O ideal socialista nasce nesse berço. 

Por outro lado, vemos que os países mais filatropos do mundo são justamente os que vocês, de esquerda, definem como neoliberais. São os que mais enviam dinheiro para os lugares onde a fome e a miséria são latentes, como a África de maneira geral. 

Dizer que as ações sociais da igreja são tacanhas é desconsiderar, mais uma vez, o que ensina a história. Quantos hospitais construídos mundo à fora? Quantas escolas também? Quantas universidades nasceram pelo esforço de cristãos (como exemplo, cito apenas o pastor John Harvard, que fundou a universidade com seu sobrenome), observe o índice de recuperação dos presos nos presídios administrados por cristãos na Coréia do Sul, país com forte presença cristã protestante e veja que tudo isso depõe contra o que foi alegado aqui. 

Há, ainda, o fato de que os países onde existe mais igualdade social são exatamente os países que nasceram em berço cristão, sobretudo o protestante. Como exemplo, dentre os muitos possíveis, temos Suíça, Suécia, Noruega, Holanda e EUA. Se tornaram ricos, não nasceram ricos. 

Enfim, um pouco mais de atenção aos bons livros de História e vocês perceberão que o cristianismo, no âmago, não possui nenhum vínculo ideológico com a esquerda, a principiar pelas motivações. 

Para o cristianismo, restauração material, intelectual e espiritual andam de mãos dadas. Para a esquerda, a restauração material basta (no campo ideológico. No prático, nivela-se por baixo, empobrecendo o rico, ao invés de enriquecer o pobre). Eis a aí o cerne do descompasso.

Minha réplica em forma de resposta:

Li atentamente o seu texto e percebi a contumácia, a obstinação, que é tão típica em pessoas que acreditam que estão com a verdade. A certeza da verdade gera conforto. Isenta-nos de investigações. Faz com que durmamos de forma tranquila. Quando somos sabedores que não temos mais sobre os ombros o susto da dúvida e que todos os nossos caminhos são luminosos, viver passa a ser um gesto de profunda leveza. Ou seja, eu tenho a verdade, mas os outros... ora, os outros são os outros.  Notei a vaidade da fala de um protestante por trás de cada uma das vírgulas, das letras, das sentenças, das orações, dos períodos “firmemente” construídos. 

Permita-me apontar alguns problemas conceituais no seu texto: 

(1) Você colocou Marx, Engels, Gramsci e Weber como sendo de “ideologias ditas de esquerda”, algo que é problemático. Weber não pertence a esse grupo. Quando se fala em nomes que constituem o pensamento marxista (digo: marxismos), Weber não se encontra entre eles. Se pelo menos aqueles que são críticos da “famigerada” esquerda, lessem Weber, teríamos mais facilidade para entender alguns processos como, por exemplo, o desencantamento do mundo, as sociedades modernas sobre o influxo do capitalismo, a burocratização das sociedades e a base motivacional das sociedades ditas desenvolvidas. Depreende-se disso que misturar Gramsci, Engels, Marx e Weber é um problema de quem não leu nem este nem aqueles. 

(2) Os economistas citados são em sua essência liberais. Sua refutação aos comentários acima demonstra a sua crença em um tipo de modelo econômico absurdamente problemático para países como o nosso. Inclusive, o nosso país é vítima desse modelo econômico.  O liberalismo é um modelo que otimiza o primado do individualismo em detrimento da solidariedade (Como disse George Kennan, um dos fundadores do neoliberalismo via Consenso de Washignton: “paremos de falar de valores vagos e poucos realistas como direitos humanos, a elevação do nível de vida e a democratização”). As nações europeias o praticaram de forma profunda em suas histórias, principalmente a partir do século XVIII, quando a burguesia se apropria do mundo e dos mercados. Após a Revolução Francesa, alguns economistas entenderam que era necessário que houvesse liberdade para que as mercadorias circulassem. Todavia, por trás da assunção do discurso da ordem e do progresso, havia uma brutal luta pela sobrevivência. Mas isso não era um problema para o liberalismo. A Inglaterra das máquinas, da Revolução Industrial, era um antro em que crianças de 8, 9, 10 anos, se embrenhavam em buracos para retirar carvão por 8 ou 10 horas por dia. Homens e mulheres trabalhavam de forma escrava para receber um emolumento ordinário. A burguesia se apropriou do poder e percebeu que precisava de liberdade e mercados para que os seus produtos escoassem. Ou seja, é justamente aí que reside o problema, pois passa a haver uma classe explorada e uma que se beneficia da exploração. O individualismo, o mérito, a iniciativa pessoal, eram meios necessários ao fortalecimento da atuação do capitalismo que se robustecia dia a dia. Esses sujeitos citados buscaram desenvolver teorias para tornar a exploração e o domínio meios de legitimar teoricamente o sistema, para fazer valer o lucro acima de todas as coisas. Os países do continente latino-americano, da África e boa porção da Ásia foram as geografias que serviram de centros produtores de matéria prima para gerar a riqueza dos países centrais – europeus e os Estados Unidos. Portanto, se eles refutaram Marx, o fizeram apenas com um intento: justificar o lucro, as novas formas de robustecer o sistema e legitimar a propriedade privada dos meios de produção. 

(3) A generalização é outro problema, pois se chama de esquerda todo movimento existente. De qual esquerda se fala? Ou: o que é à esquerda? A nomenclatura “esquerda X direita” passou a ser utilizada na Revolução Francesa. Do lado direito ficavam aqueles que queriam a manutenção do Antigo Regime, que via no absolutismo do rei a sua força e, do outro, à esquerda, aqueles que queriam mudanças. Ora, utilizemos esse raciocínio: analisando Jesus e seus contemporâneos, quem estava à direita e quem estava à esquerda? Os fariseus representavam quem? Ora, os profetas, sei, no fundo, buscavam fazer uma pregação moral para que o povo se voltasse para Javé, mas de que lado eles estavam?  Quando vociferam contra a injustiça e a malevolência das elites aristocráticas que viviam bem, enquanto o povo passava fome, de que lado estavam?  Hobsbawn diz que o livro de Amós parece “um discurso bolchevique inflamado”. O grande problema é ler sempre os textos históricos com uma determinação dogmática, despolitizando-os. Por trás de toda sociedade, existe um contexto de lutas sociais. Existe um governo constituído, valores, embates, contradições. São essas contradições que permitem o avanço da história. A história é justamente o resultado da colisão de fatos, que fazem originar situações novas repletas de elementos dos processos anteriores. O que é a cosmovisão cristã, senão uma maneira de olhar de forma etnocêntrica para o mundo? Senão uma forma de torná-lo em vontade e representação? Submetê-lo a uma linguagem? Uma forma de se achar dono de todas as interpretações históricas, pois para o cristianismo dogmático, a história já está encerrada, afinal: (a) existe um Deus que é providencial e já determinou todas as coisas; (b) existe uma teofania; (c) uma epifania; (d) existe uma ascensão profética, por isso, se diz: “Vejam! A volta de Jesus está próxima. Não há mais soluções para o mundo”. Ou seja, interpretações dos fatos da eternidade pelos fatos da história; (e) essa revelação do fim da história é salvífica; (f) é apocalíptica; (g) ela é universal, pois compreende toda realidade conhecida; e (h) e é completa, pois tudo se consumará. Ora, tais apontamentos devem gerar certezas e afirmações repletas de juízos com relação àqueles que não estão conscientes disso. Se tudo está determinado de forma positivista, por que se importar com a história e com a luta do oprimido?  

(4) Parece que consigo notar um outro tipo de generalização muito costumeira, que é a comparação, deixando de lado o significado histórico de cada movimento dito de esquerda,  aonde ele aconteceu. Quero crer que se faça aqui menção à União Soviética, a Cuba, à Coreia do Norte, ao Vietnã, à antiga República Democrática Alemã etc. É preciso ler um pouquinho os textos de Marx para perceber que esses supostos movimentos não chegam nem perto daquilo que o alemão apontou em seus escritos. Marx nos propôs um projeto de emancipação para a humanidade, uma espécie de desafio muito parecido com aquele proposto pelo Evangelho. Ou seja, um projeto de liberdade, de generosidade, de solidariedade. Nesse sentido, Marx está mais perto de Jesus do que Friedman, Ricardo ou Smith. Estes propunham a lei do mais forte – pois no fundo é isso que é o liberalismo – e aquele propunha um projeto de emancipação do ser humano. Quando leio o evangelho, eu não consigo visualizar outra coisa senão isso.  Acredito que o problema esteja no modo como se interpreta. Quando leio o segundo capítulo de Atos, não vejo nada diferente de uma sociedade comunal. 

(5) O processo de desconstrução da suposta esquerda apontada por você começou a após a Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, os EUA saíram como a nação mais forte da Guerra. Antes da Guerra eles já eram fortes, mas se consolidaram como vendedores de armas e exportadores de produtos para o mundo todo. O anti-comunismo (esquerdismo?) ficou mais forte após a divulgação dos Relatórios Krushev, em 1956.  Após as várias Ditaduras instaladas na América Latina pelos Estados Unidos, a esquerda passou a ser vista como inimiga, como monstro, como “comedora de criancinhas”, mito que muitos defendem ainda hoje. Nessa época, o primado da liberdade e da democracia estavam assentados na família, na fé cristã e na propriedade privada. Ou seja, o seu pensamento faz jus a isso. Não o culpo. Você é vítima de um projeto anti-esquerdista. Outra questão: aqueles que se dizem anti-esquerda, só fazem referências às mortes provocadas pela suposta “ditadura do proletariado”. Quantas? 50 milhões? 60 milhões? E quantos agora estão morrendo nos continentes africano e latino-americano por causa da ingerência capitalista? A suposta “filantropia” alegada é uma farsa, posto que os países centrais acabaram com esses continentes e, hoje, ficam enviando migalhas (que servem para distencionar crise estabelecida na relação capital-trabalho) sobejadas da mesa lauta deles. Isso é bem a cara do cristianismo institucional. 

(6) Se eu errei cometendo um “anacronismo”, o que dizer quando uma pessoa cita Marx, ignorando o contexto da fala do autor? Pois fique sabendo, que com essa fala, Marx não estava condenando a religião – ou a possibilidade de se seguir uma. Nos escritos de Marx, ausente das relações estranhadas, o homem pela manhã trabalharia e, à tarde, ouviria música, plantaria um jardim, comporia poesias, iria para a sua paróquia, ou seja, ele pode “ser-mais”. A frase “A religião é o ópio do povo” é como aquela frase de Nietszche (“Deus está morto!”), que crente adora citar em Escola Dominical, mas que desconhece o significado delas.  

(7) Citar a Universidade de Havard ou os fundadores dos EUA, acredito que não cabe aqui. São contextos completamente diferentes. Foram sociedades construídas com finalidades bem distintas. A sociedade americana segue a sua própria história como uma religião. Ela está fundada em ideias como fé cristã, individualismo, liberdade (palavra que possui um valor simbólico, já que deve ser entendida como a possibilidade de não coibir o sujeito para as iniciativas a que ele se determinar), moralismo e crença em um destino como terra capaz de subjugar todas as demais. A suposta “caridade” realizada por esses países é “mesquinha”, “pequena”, pois não toca na principal questão para acabar com a desigualdade, que a existência de um modo de produção que fulmina com a vida de milhões de pessoas todos os anos. Cerca de 1 bilhão de pessoas da humanidade passam fome. Ou seja, será que essas pessoas são culpadas ou existe uma razão para isso? E aí começam a surgir as perguntas. Coreia do Sul, a Suécia, a Suiça, enviam mantimentos, mas quantas multinacionais desses países estão instaladas em lugares pobres e miseráveis, subtraindo as riquezas dos povos. Por exemplo, só a Suécia são mais de 300 empresas que estão instaladas pelo mundo afora, inclusive aqui no Brasil. Não acredito que o verdadeiro Jesus aprovasse isso. 

(8) Suas palavras são coerentes com o espírito da fé protestante, que gera “descompassos”, pois é arrogante e individualista. E se existe algo que a fé protestante fez foi sacralizar a consciência e dessacralizar o mundo. Ao acontecer isso, a humanidade como um todo perdeu o seu valor sacral, magnânimo. O mundo tornou-se um fim para o utilitarismo. Uma aposta para o acentuamento da desigualdade e da indiferença.  Em um mundo em que todas as coisas são medidas segundo a sua utilidade, até mesmo o homem corre o risco de se perder. Foi a fé protestante que serviu de cimento ideológico para a racionalização econômica do ocidente. Foi ela que permitiu o surgimento do liberalismo, que funciona em sociedades como a americana ou a inglesa, locais estes onde não houve acontecimentos dramáticos como os que se deram aqui no Brasil ou em qualquer país da América Latina. Nesse sentido, aconselho que você leia um livro de Jean Delumeau, chamado de “Nascimento e Afirmação da Reforma”. 

(9) E outro erro conceitual é acreditar que o PT seja um partido de esquerda. Isso é um desconhecimento profundo da história do Partido dos Trabalhadores e das determinações que ele veio a tomar, sobretudo, com a Carta ao povo brasileiro. Talvez, o PT não chegue a ser nem mesmo um partido social-democrata, embora tenha algumas aproximações. O PT hoje assumiu uma posição de centro, com nuances progressistas e desenvolvimentistas. Fez acordos com os setores econômicos mais conservadores. Se existe um partido com os quais os capitalistas lucraram, esse foi o PT. Nos últimos 10 anos, as ações da bolsa de valores brasileira, somente perdeu para a China e para o Índia. Os bancos nunca lucraram tanto. Nunca se pagou tanto os juros da dívida pública, que chega a consumir cerca de 42% da arrecadação. Mas, por que então tirar o PT? Hoje, o PT ainda defende posições que incomodam o grande capital, principalmente, com o modelo econômico que mantem os níveis de emprego e uma preocupação – mesmo que incipiente – com a distribuição de renda.  

Gostaria de finalizar. Não estou disposto continuar esse bate-papo. Não levará a lugar nenhum. Você pensa com a sua “cosmovisão cristã” e, eu, com algumas categoriais com as quais você não corrobora. Então, enquanto falarei sobre o dia, você falará sobre a noite; enquanto você discursar sobre o céu, falarei sobre a terra; enquanto você discursar sobre a metafísica como elemento que determina a materialidade, falarei das relações materiais que se dão na história.  

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