sábado, setembro 27, 2008

Chegou a Primavera

No dia 23 de setembro teve início a primavera. O seu término se dará no dia 21 de dezembro. Poucos perceberam as mudanças que se fizeram sentir na natureza. A sinfonia das cores se multiplica em tons, nuances. Sinto-me mais feliz quando chega a primavera. A sua chegada recende à vida. Antonio Vivaldi na obra programática As Quatro Estações descreve de forma musical as estações naturais. A primavera representa os três primeiros movimentos da obra. O primeiro movimento é um Allegro. Percebe-se o canto alegre dos pássaros. O vôo da liberdade. Há a seguinte menção textual: “Chegou a primavera e alegremente a saúdam os pássaros com cantos felizes; e as fontes, com o soprar dos zéfiros, correm com doce murmúrio; no entanto, vêm, cobrindo o ar com um manto negro, os raios e trovões, anunciando tempestade. Enquanto isto, sem se importar, ficam os passarinhos, retornando ao seu encanto canoro”.
No segundo movimento anuncia-se: “E sobre os prados floridos e amenos, ao som doce do murmúrio de árvores e folhas, dorme o camponês, enquanto, ao lado, ladra o seu cão fiel”. É notório pelo Largo e pianíssimo um doce vento que atravessa os bosques floridos. No terceiro movimento, lê-se: “Ao som festivo das gaitas camponesas, dançam as ninfas e os pastores, sob o ansiado céu de Primavera, a surgir, brilhante”. Trata-se de uma Danza PastoraleAllegro. A alegria reverente e reflexiva da música faz perceber a comemoração dos camponeses que celebram a chegada da primavera. A música de Vivaldi nos permite, pelo seu encanto, alegria e leveza, tatear o espírito da época. O compositor argentino Astor Piazzolla também compôs uma peça chamada As Quatro Estações. Não possui as mesmas características da de Vivaldi. Piazzolla a revestiu da tristeza e a da tragicidade própria do tango.
Diz Cecília Meireles numa efusão lírica na crônica denominada “Primavera”: “Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol (...) com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz”. A beleza, a simplicidade, alegria, a docilidade de como Cecília retrata chegada desta estação tão eivada de vida, enche-nos de calma e silêncio – de um espírito contemplativo. E de fato a primavera nos passa a impressão de que começou um novo ciclo na natureza e no coração dos homens.
Esta é a época em que a maioria das árvores florescem, todas se preparando para liberar a semente da vida. É a época do amor, da procriação. Muitos animais se reproduzem nesta época. As chuvas surgem pelo final da tarde, por causa do calor e da umidade alta. Isso propicia um reverdecimento da vegetação queimada por conta das condições severas da estiagem – que o diga o Centro-Oeste.
Duas estações bem definidas no hemisfério norte permitiu que o antigos dividissem o ano em duas fases: (1) a veris que era o “tempo bom”, ensolarado; e (2) hiems, conhecido “como mau” tempo. Por conta da alegria que surge neste período, a estação foi chamada de primo vere, que significava “início da boa estação” e mais tarde passou a ser denominada “primavera”. As estações do ano constituem as personalidades da natureza. Temos o inverno que simboliza a rigidez, a gravidade; o outono que é a metáfora da tranqüilidade, da reflexão; o verão que é lúbrico, cheio de força luminosa; e a primavera que é a alegria, a leveza, a vida no cio.
Vou ao texto de Cecília e eis que leio: “Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação”. E assim fico com a certeza de que “as festas da perpetuação” se apresentam com viço. Nada enche mais meus olhos do que isso.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: sábado, 27 de setembro de 2008, 00:42:13.

Texto extraído do livro "Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 366.

* A Tela acima chama-se "Primavera", de Claude Monet, pintada no ano de 1886.

sexta-feira, setembro 26, 2008

Ode ao Burguês nº 2


Encontrei esta fantástica releitura do texto de Mário de Andrade "Ode ao Burguês". Trata-se de uma versão feliz, atualizada do poema. Mário mostra no poema "Ode ao Burguês" que a burguesia é uma das classes mais famigeradas da História. Uma classe "adiposa de valores estéreis"; prostituída pelo egoísmo, com a alma neurotizada pelas conveniências; incapaz de satisfazer-se. Vive de aparências. Persegue as trivialidades do mundo. Julga que todas as coisas pertencem a ela - as florestas, os animais, as riquezas, os outros seres, o planeta, a alma do universo. A burguesia é uma classe pernóstica por natureza. A saga fáustica da burguesia mostra os valores e tormentos que habitam suas disposições. Burguesia funesta. Logo após a releitura está o poema original de Mário de Andrade. O poema tem um significado relevante para os jovens intelectuais paulistas que deram início a um novo ciclo nas produções artísticas no século XX aqui no Brasil, que se fazem sentir até hoje. A tela ao lado retrata o intelectual paulista Mário de Andrade e foi pintada por Tarsila do Amaral. A anarquia vanguardista dos modernistas furou o umbigo do conservadores. Boa leitura. Poemas disponivéis em: http://www.culturabrasil.pro.br/burgues.htm

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Eu odeio burguês!

Burguês-centavos-contados.

Indigesto burguês brasileiro.

Classe nédia, adiposa, delicada,

Classe sem classe, burguesia medrosa.

Eu odeio burguês!

Burguês-medo, burguês-cautela.

Burguês fáustico, pomposo e circunstante.

Bela aparência, completamente oca.

Burguês é sepulcro caiado.

Burguês chora ao ver naufragar o Titanic

E manda à polícia o pedinte à porta do cinema.

Porque no Titanic morreram burgueses.

Poucos, mas todos burgueses.

E mendigo não compreende essas coisas...

Eu odeio burguês!

Burguês cheio de regras,

Cheio de nove-horas,

Burguês que "trabalha por amor"

Depois apresenta a conta:

"_ É que estou de saída para a Europa..."

"_ É que tenho de trocar os fru-frus da cortina da sala..."

"_ É que vou a Miami comprar orelhas de Mickey Mouse para minha filha..."

Vai, burguês idiota!

Vai botar orelha de rato imperialista no teu rebento!

Burguês fútil, burguês frágil, burguês covarde, burguês de nada!

"Ouviram do Ipiranga às margens poluídas,

Do herói cobrado – coitado - o brado retumbante:

_ O sol da liberdade em raios fugidios

Brilhou em outra pátria muito distante!"

E assim a burguesia (de lá) tomou conta do pedaço (daqui)

Eu odeio burguês!

Burguês Celular, burguês Pentium, burguês FMI...

Burguês tecnologia, burguês veloz,

Que viaja de Omega mas não sabe soletrar a palavra

V-O-L-A-N-T-E...

Burguês filhinho-de-papai,

Passa de carro com o som estourando.

E a batida do som revela sua fragilidade burguesa:

"_ Quero parecer moderno e perigoso, mas aqui dentro, protegido,

Lembro fetal as batidas do coração materno: tum-tum, tum-tum..."

Insulto e ódio! Insulto e ofensa! Insulto e mais insulto!

Morte cruel ao burguês ateu!

Deus existe burguês estúpido!

E como Deus existe o povo o suprimirá a golpes de foice e de martelo.

Desaparece, burguês!

Viva o povo brasileiro!


Por Lázaro Curvêlo Chaves

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Aqui está o poema de Mário no original.


Ode ao Burguês


Mário de Andrade


Eu insulto o burguês! O burguês-níquel

O burguês-burguês!

A digestão bem-feita de São Paulo!

O homem-curva! O homem-nádegas!

O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,

é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!

Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!

Que vivem dentro de muros sem pulos,

e gemem sangue de alguns mil-réis fracos

para dizerem que as filhas da senhora falam o francês

e tocam os "Printemps" com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!

O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!

Fora os que algarismam os amanhãs!

Olha a vida dos nossos setembros!

Fará Sol? Choverá? Arlequinal!

Mas à chuva dos rosais

o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!

Morte às adiposidades cerebrais!

Morte ao burguês-mensal!

Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!

Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!

"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?

— Um colar... — Conto e quinhentos!!!

Más nós morremos de fome!"

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!

Oh! purée de batatas morais!

Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!

Ódio aos temperamentos regulares!

Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!

Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados

Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,

sempiternamente as mesmices convencionais!

De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!

Dois a dois! Primeira posição! Marcha!

Todos para a Central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!

Morte ao burguês de giolhos,

cheirando religião e que não crê em Deus!

Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!

Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!...



terça-feira, setembro 23, 2008

Algumas palavras sobre Nietzsche

Dentre os clássicos da filosofia moderna, Nietzsche talvez seja o pensador mais incômodo e provocativo. Sua vocação crítica cortante o levou ao submundo de nossa civilização, sua inflexível honestidade intelectual denunciou a mesquinhez e a trapaça ocultas em nossos valores mais elevados, dissimuladas em nossas convicções mais firmes, renegadas em nossas mais sublimes esperanças. Essa atitude deriva do que Nietzsche entendia por filosofia.

Para ele, filosofar é um ato que se enraíza na vida e um exercício de liberdade. O compromisso com a autenticidade da reflexão exige vigilância crítica permanente, que denuncia como impostura qualquer forma de mistificação intelectual. Por isso, Nietzsche não poupou de exame nenhum de nossos mais acalentados artigos de fé. O destino da cultura, o futuro do ser humano na história, sempre foi sua obsessiva preocupação. Por causa dela, submeteu à crítica todos os domínios vitais de nossa civilização ocidental: científicos, éticos, religiosos e políticos.


Nietzsche é um dos grandes mestres da suspeita, que denuncia a moralidade e a política moderna como transformação vulgarizada de antigos valores metafísicos e religiosos, numa conjuração subterrânea que conduz ao amesquinhamento das condições nas quais se desenvolve a vida social. Nesse sentido, ele é um dos mais intransigentes críticos do nivelamento e da massificação da humanidade. Para ele, isso era uma conseqüência funesta da extensão global da sociedade civil burguesa, tal como esta se configurou a partir da Revolução Industrial.


Nietzsche se opõe a supressão das diferenças, a padronização de valores que, sob o pretexto de universalidade, encobre, de fato, a imposição totalitária de interesses particulares; por isso, ele é também um opositor da igualdade entendida como uniformidade. Assim, denunciou a transformação de pessoas em peças anônimas da engrenagem global de interesses e a manipulação de corações e mentes pelos grandes dispositivos formadores de opinião.
O esforço filosófico de Nietzsche o levou a se confrontar com as grandes correntes históricas responsáveis pela formação do Ocidente: a tradição paga greco-romana e a judaico-cristã; e o que resultou da fusão entre as duas.

Ao longo desse seu confronto com o conjunto da herança cultural de nossa tradição, Nietzsche forjou conceitos e figuras do pensamento que até hoje impregnam nosso vocabulário e povoam nosso imaginário político e artístico. Tais são, por exemplo, as noções de Apoio e Dionísio, transformadas em categorias estéticas, os conceitos de vontade de poder, além-do-homem (Übermensch), eterno retomo e niilismo e a figura da morte de Deus.
É impossível se colocar à altura dos principais temas e questões de nosso tempo sem entender o pensamento de Nietzsche. Ateísta radical, ele atribui ao homem a tarefa de se reapropriar de sua essência e definir as metas de seu destino. Dele afirma o filósofo Martin Heidegger: "Nietzsche é o primeiro pensador que, perante a história universal pela primeira vez aflorada em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e a reflete internamente em toda a sua extensão metafísica. Essa pergunta reza: como homem, em sua essência até aqui, está o homem preparado para assumir o domínio da terra?"[1]

Nesse sentido, Nietzsche é o pensador de nossas angústias, que não poupou nenhuma certeza estabelecida — sobretudo as suas próprias convicções — e desvendou os mais sinistros labirintos da alma moderna. Com a paixão que liga a vida ao pensamento, Nietzsche refletiu sobre todos os problemas cruciais da cultura moderna, sobre as perplexidades, os desafios, as vertigens no fim do século 19. Dessa sua condição, postado entre o final e o início de duas eras, Nietzsche esboçou um quadro que, em todos os seus matizes, nos concerne ainda, na passagem a um novo milênio, em direção a um destino que ainda não se pode discernir.
A despeito de sua visão sombria, Nietzsche tentou ser, ao mesmo tempo, um arauto de novas esperanças. Sua mensagem definitiva — a criação de novos valores, a instituição de novas metas para a aventura humana na história — é também um cântico de alegria. Essa é uma das razões pelas quais o estilo de Nietzsche resulta da combinação paradoxal de elementos antagônicos: sombra e luz, agonia e êxtase, gravidade e leveza.

Isso explica por que, para ele, o riso e a paródia são operadores filosóficos inigualáveis: eles permitem reverter perspectivas fossilizadas. Nietzsche, o impiedoso crítico das crenças canônicas, é também um mestre da ironia. Sua ambição consiste em tomar superfície o que é profundidade, restituir a graça ao peso da seriedade filosófica.
Opositor ferrenho da dialética socrática, Nietzsche reedita, no mundo moderno, o gesto irônico do pai fundador da filosofia ocidental. Decisivo adversário de Platão, sua filosofia talvez possa ser caracterizada como uma inversão paródica do platonismo. Definindo-se como o mais intransigente anticristão, dá, no entanto, á sua autobiografia intelectual, escrita no final de sua vida, o título Ecce Homo ("Eis o Homem") — expressão empregada por Pilatos ao apresentar Jesus a seus algozes, pouco antes da Paixão.

Nietzsche, o filósofo-artista, um poeta que só acreditava numa filosofia que fosse expressão das vivências genuínas e pessoais, vendo na experiência estética uma espécie de êxtase e redenção, é, por isso mesmo, um precursor da crítica a um tipo de racionalidade meramente técnica, fria e planificadora. A despeito da profundidade e da gravidade das questões com que se ocupa, sempre as tratou em estilo artístico, poeticamente sugestivo; só acreditava na autenticidade de um pensamento que nos motivasse a dançar. Ele mesmo imagina sobre sua porta a inscrição:


Moro em minha própria casa

Nada imitei de ninguém

E ainda ri de todo mestre

Que não riu de si também.[2]


Sem extravasar os limites dos livros desta série, Folha Explica Nietzsche se propõe a ser uma apresentação geral do homem e do filósofo Friedrich Nietzsche. Seu objetivo é fazer com que o leitor se familiarize com os conceitos, as figuras e o estilo de Nietzsche — não para depois encerrá-los em qualquer câmara da memória, mas sim para despertar seu interesse e estimulá-lo a seguir adiante. Aceitar o desafio de Nietzsche implica, sobretudo, pensar independentemente; e por isso, ás vezes, também contra Nietzsche.


[1] Heidegger. "Wer ist Nietzsches Zarathustra?"; em: Vorträge und Aufsätze. Pfullingen: Neske Verlag, 1954; p. 102.

[2] Epígrafe de A Gaia Ciência; em Nietzsche. Obra Incompleta. Trad. Rubem Rodrigues Torres Filho. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974: p 195.

Extraído do livro: GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche - São Paulo: PUBLIFOLHA, 2000, p. 6-8. (Folha Explica).



sábado, setembro 20, 2008

Quando...


Quando a incrível certeza virar incerteza.

Quando todos os rios da vida correrem para o mar

Das mais genuínas e lamentáveis dores e lágrimas.

Quando todas as palavras do mundo não te compreenderem.

Quando vida tornar-se incrivelmente indecifrável.

Quando as tuas mais fulgurantes expectativas apodrecerem.

Quando nas manhãs tenebrosas da vida sentires ânsias de

Vomitar a vida que te fez mal.

Quando sentires a cabeça zonza por causa dessa ressaca e desse

Porre do nada.

Quando deitares na cama mais escura da dor e da angústia.

Quando as palavras e os sentimentos já não existirem.

Quando a fé for apenas uma mancha na parede da existência.

Quando os vários caminhos que tiveres à tua frente não te

Levarem a lugar nenhum.

Quando os livros passarem a ter apenas letras mortas e

Sem expressão de conhecimento.

Quando conselhos e filosofias mofarem e enrugarem.

Quando perversões saquearem as boas virtudes

E promoverem um completo pós-modernismo de valores e conceitos

Dentro da ti.

Quando já não souberes quem és.

Quando os bufões e palhaços contratados para divertirem as realezas

Que existem em ti já não forem mais engraçados.

Quando existir um pântano mal-cheiroso por trás daquele jardinzinho

Plantado e cultivado por ti.

Quando existir um Vietnã de batalhas dentro de ti.

Quando a África das inanições e privações não estiver fora, mas dentro de ti.

Quando a loucura e a fome já não forem realidades completamente distantes,

Mas passarem a ser as tuas companheiras mais achegadas.

Quando todos os dias do ano for inverno dentro de ti.

Quando pivetes, meninos de rua, morarem na praça mal administrada

Do teu coração.

Quando as flores do teu jardim não cheirarem a vida.

Quando fores traído pelas convicções falidas e pela fome da verdade.

Existe uma solução quando te achares assim:

Lava-te com as águas dos silêncios.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque

Data: 6/4/2004 09:19:08, quarta-feira.

segunda-feira, setembro 15, 2008

Amores brutos

Amores brutos, ternamente intensos.

Relações melífluas, sanguinárias.

Encontros que antecipam com densidade

O desencontro.

Apertos lestos, insanos, fugazes.

Idas e vindas que se sucedem

Com regularidades desafiadoras.

A malha fina do desejo que não

Consegue penetrar no território

Guarnecido de sentinelas do orgulho,

O desejo que não avança.

Perdido na incontinenti questão de

Não ir e se deixar levar.

Na distância mais próxima está a

Possibilidade aguda do conserto.

Mil outros concertos tocam aqui

Dentro e dizem: “Vai”.

Os pés não obedecem o desejo

Ralo, que se dissipa, torna-se

Fumaça, vai ganhando o vazio

Numa ascensão gasosa.

As palavras selvagens que defloram

O silêncio.

OS lábios convulsos, trêmulos

Que não acertam ou concatenam

Um sentido sequer no gesto vocabular.

O cansaço espraia-se, derrama-se

Pelos territórios inteiros do ser possível.

O desejo continua suas investidas esperançosas.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

Data: 30 de junho de 2008.

terça-feira, setembro 09, 2008

O "Epiríto da Época (Zeitgeist) do bloco Realista-Naturalista enquanto movimentos estéticos.

Nietzsche costumava dizer que quem escreve quer ser lido. Ele enfrentou sérios dilemas com relação aos seus textos, que foram pouco lidos ou comentados enquanto o filósofo estava vivo. O filósofo alemão tornou-se uma unanimidade apenas a partir da segunda década do século XX. Não quero me comparar a Nietzsche, pois me falta todo um cabedal crítico e filósofico. Ser igual a Nietzsche exige mais do que uma postura filósofica. Exige renúncia e radicalidade. Algo a que o homem comum não está preparado para enfrentar. Mas passa em mim a tristeza de que poucos são aqueles que lêem aquilo que escrevo. Que não entendam essa afirmação como algo lânguido e cheio de ressentimentos. Isso contrariaria o meu espírito nieztscheniano. Pois para Nietzsche somente os fracos e anêmicos ressentem-se. Os impávidos caminham para frente a despeito dos obstáculos. Todavia, fica assim. Em outro momento voltarei a escrever sobre essa facticidade. O texto abaixo é resultado de uma pequena pesquisa que fiz. Aborda "o espírito do tempo" (o zeitgeist - termo alemão) dos períodos das artes conhecido como Relismo e Naturalismo. Talvez hajam erros no texto - ensaísticos e conceituais. Fica como está. Resolvi colocar a tela de François Millet, um dos mais famosos pintores do período. A tela chama-se As Respigadeiras e marca uma nova atitude estética por parte dos artistas do século XIX. Àqueles que tiverem coragem de ler o texto, fica o abraço mais genuíno da minha alma nietzscheniana.

INTRODUÇÃO:

O século XIX constitui um período singular do ponto de vista das produções humanas e estéticas. Pode-se afirmar que foi um século romântico. O Romantismo permitiu uma nova maneira de se fazer arte. O artista colocava a subjetividade como grande tema a fim de apreender e se comunicar com a realidade. O individualismo era a ferramenta ser considerado como o objeto a ser analisado. A grande preocupação do romântico era externar as suas visões interiores. Quanto mais essas visões estivessem ligadas a um senso ilógico, de uma oscilação entre alegria profunda e desolação melancólica aguda, mais existosas eram essas produções. O que se percebe é que as características mais acentuadas deveriam ser cheias de grande mistério, o que fazia com que o espírito romântico fosse atraído pelas matérias ocultas da existência; de sonho, que representava um abandono do mundo e a criação de um universo de mitos e símbolos; de escapismo, ou seja, de fuga da realidade e criação de um lugar ideal onde o romântico pudesse se abrigar das intempéries da vida; de culto à natureza, ou em outras palavras, a natureza era um lugar puro, não contaminado pela sociedade, lugar de cura física e espiritual; de exagero, o romântico buscava retratar com perfeição um mundo em que colocava tudo de bom, de bravo, de puro, de belo, no passado, no futuro, ou em um lugar distante, um mundo de perfeição e sonho; de fé, acreditava no espírito e na capacidade de mudar o mundo; de pitoresco, o romântico era atraído pelo espaço, o gosto pela floresta das longínquas terras selvagens, orientais, ricas de contornos imaginosos, ou seja, era a relação do romântico com a natureza que interessava, pois gerava melancolia, saudade e dor da ausência (COUTINHO, 1990, pp.146-147). Estas foram características mais marcantes na estética das produções românticas do fim do século XVIII e início do século XIX.
Esses atribustos são o eixo que abrigava o interesse do romântico. O que move a construção da arte para o romântico era justamente uma espécie de elocução própria, um desejo de retratar suas emoções e reflexões. Nisso residia o centro de gravitação de suas preocupações . Ele não lidava necessariamente com o fato, mas com o ideal, com a projeção, com os aspectos mais densos do mundo existencial, que se fazia conhecido e extravasado para o mundo.
Deve ser mencionado que esse apanágio do Romantismo, enquanto movimento estético, com o tempo foi perdendo completamente a sua razão de ser. Novos eventos e preocupações históricas fizeram rebentar uma plêiade de características novas, que pouco a pouco foram enfraquecendo o movimento romântico enquanto movimento estético. Novos ventos sopraram e constituíram uma mutação nas mentalidades. Imprimiram uma nova sensibilidade.

A CIÊNCIA COMO RAZÃO SISTEMATIZADA

Fazendo uma rápida digressão, pode-se afirmar que o Iluminismo do século XVIII havia infundido uma preocupação diferente, uma outra celebração no campo do pensamento. Os iluministas entendiam que a humanidade precisava passar de um estágio de obscurantismo para o século das luzes, onde o que triunfaria seria a razão, a ciência e uma era de respeito aos ideais de um novo projeto para a humanidade. Essas preocupações atingem um ápice quando da Revolução Francesa, que de certa forma constitui um capítulo singular na História do Ocidente. Se os grandes pensadores (Descartes, Hobbes, Locke, Rousseau, Newton, Galilei Galileu, Diderot, Montesquieu, D’Alambert, Voltaire) dos séculos anteriores haviam construído os alicerces para o avanço da razão cientifica, o século XIX permite a eclosão dos vários movimentos filosóficos e científicos que irão consagrar-se ao triunfo da Ciência.
Vale mencionar que quando se fala em Ciência estamos lidando basicamente com as razões lógicas em torno dos fatos, da realidade. A ciência como diz Carl Sagan tem por finalidade descortirnar o mundo assim como ele é. “A ciência baseia-se na experiência, na disposição de desafiar os velhos dogmas, numa abertura que permita ver o universo como ele na realidade é” (SAGAN, 1997, p. 15). A discussão é mais densa, quando se trata de uma definição ou de uma mera classificação, pois no século XX vai surgir justamente um debate em torno das razões da verdade e da exatidão da ciência (ALVES, 1981, p. 139). Não é o objetivo desse breve ensaio se estender até esses arraiais vastos. Ciência pode ser compreendida como, em seu sentido amplo, como qualquer conhecimento sistematizado e que costuma ser aplicado sobretudo à organização da experiência sensorial objetivamente verificável. A ciência busca o maior empenho possível a fim de organizar “as verdades” descobertas em sistemas.

Por exemplo, todos nós possuímos uma série de conhecimentos sobre os fatos da natureza: as forças, o movimento, e assim por diante. Qualquer motorista sabe, que se ele brecar bruscamente o carro, seu corpo será “empurrado” para frente. Todos nós sabemos que a Terra gira em torno do sol (...) O cientista aspira a organizar seus conhecimentos em sistemas. Por sua vez, deseja que suas afirmações sejam verdadeiras (LUNGARZO, 1989, pp.41-42).

Essa busca faz do cientista alguém que analisa os fatos, a realidade, que perscruta com imparcialidade e neutralidade a fim de encontrar nos eventos “a verdade” que move o universo. A ciência em sua busca deve fornecer respostas universais, independentes dos pontos de vista subjetivo, moral ou religiosos (GLEISER, 1997, p. 21). Para que haja credibilidade o cientista deve se munir de neutralidade.
O processo de renovação científico e das mentalidades está presente fortemente no século XIX. A Ciência abrangeu os aspectos mais gerais das produções humanas. Essa preocupação também se fez sentir no campo das produções artísticas, especialmente na literatura. Houve, assim, uma transferência do espiritualismo, das realidades intangíveis, incognoscíveis, metafísicas, para um tipo de preocupação com a matéria. Esse movimento de “mecanização da percepção”, ou seja, essa preocupação com a objetividade consagra a vitória da matéria sobre a subjetividade. Os elementos individualistas são substituídos pela crença na observação e no rigor cientifico que devia ser o eixo de gravitação da arte.
De um modo geral, transferiam do metafísico, incognoscível à mente humana, para o natural, acessível ao nosso conhecimento, a explicação do universo, cuja substância se traslada do espírito para a matéria. Se nem todos colocavam na matéria a essência do mundo, a ela cifravam a nossa cognoscibilidade, afastando de nossas cogitações, por conseguinte, toda especulação sobrenatural, por despicienda, pelo menos provisoriamente, no estado em que no momento se encontravam as indagações da razão humana; a qual deveria guiar-se pelo espírito científico, que é positivo e se coloca no terreno dos fatos, e apoiar-se nos métodos de experimentação objetiva obediente a normas impessoais e isenta de qualquer prévia interpretação subjetiva (PACHECO, 1971, p. 12).

Esta ânsia ou essa busca da impessoalidade exaltou aquilo que Afrânio Coutinho denomina de “fatualismo científico” (COUTINHO, 1990, 182). Esse ideário cientificista revolucionário era guiado por uma nova forma de interpretar a realidade. Haviam razões ideológicas nessa nova postura. A ciência era a ferramenta capaz de fazer “destrancar” o mundo e revelar os segredos ocultos. Era preciso decompor, analisar, dividir em partes a fim de que o mundo fosse estudado anatomicamente como um corpo. Isso pode ser constatado no pensamento do biólogo alemão Ernst Heinrich Haeckel que tentou conciliar por meio de uma teoria que unificasse biologia, ciência e religião.
O que deveria merecer atenção para o homem era a natureza do qual provinha pela seleção natural (não divina) da espécie; Os fenômenos naturais, segundo a compreensão, se ofereciam imediatamente aos sentidos, enquanto o espírito escapava à captação racional, permanecendo imponderável e inapreensível. Há assim nos espaços imediatos à realidade um determinismo mecanicista, que evolui do mais simples para o mais complexo, do homogêneo para o heterogêneo. Esse senso científico como instrumento aferidor da realidade era tanto mais exato quanto menos subordinado ao sujeito, ao individual, quer dizer, quanto mais neles prevalecesse o objeto em análise. O conhecimento processava-se pela razão, como intérprete capaz de apreender o real, e orientava-se indutivamente pela observação e da experiência para a generalização (PACHECO, 1971, pp. 12-13).
Essa compreensão de que havia um senso lógico que movia o mundo passa a ser uma determinante de análise retilínea. Ou seja, o que se quer dizer com isso é que as leis que estão presentes na natureza (kosmos) estão presentes também no mundo, na sociedade criada pelos homens. “As ciências sociais aliaram-se às ciências naturais, físicas e biológicas: economia, sociologia, estatística, biologia, psicologia, ciências naturais, geografia, antropologia e etnografia” (COUTINHO, 1990, p. 183). Assim passou-se a entender eram transformações científicas de ordem técnica que afetavam diretamente o dinamismo da sociedade.
Essa convergência de ciências vai permitir um modo muito peculiar de se ler a realidade. Essas transformações técnicas fornecem possibilidades para que se veja as estruturas que moviam o mundo. Ou seja, “essa revolução (...) suscita novas formas de atividade profissional, modifica as condições de trabalho, dá origem, por um encadeamento de causas e de conseqüências, a novos tipos sociais” (RÉMOND, 1990, p.53). Essas amarras vão conferir um apego acentuado aos aspectos técnicos, progressistas da ciência e se constituir naquilo que José Veríssimo chama de “infalibilidade da ciência e exagerada opinião da sua importância” (www.dominiopublico.gov.br). As leis naturais indicavam, segundo o entendimento, que havia uma uniformidade no mundo, que representava um sistema fechado. Sob a influência do pressuposto das causas naturais em um sistema fechado, a máquina não se limita a englobar só a esfera da física; ela abrange tudo. Esse pressuposto vai estabelecer o seguinte postulado: o que é, certo é. Ou seja, o que a natureza impõe pela sua força é totalmente coerente. Esse entendimento bania com as razões românticas que valorizavam profundamente a alma e o espírito (SCHAEFFER, 2002, pp. 49-50).
Logo, a sociedade torna-se um organismo vivo e pulsante em constante evolução, e a luta entre indivíduos passa a ser vista como uma luta de forças e classes antagônicas, da mesma forma que os animais selvagens competem entre si guiados pelo instinto. A aplicação da metodologia científica às ciências sociais foi acontecimento mais determinante para a orientação das produções humanas: ciência, política, religião, artes (SENRA, 2006, p.11).

OS “ISMOS” DA CIÊNCIA

Essa orientação promoveu um desapego às crenças tradicionais ou políticas. Várias foram as correntes científicas que surgiram a fim de explicar a realidade com suas tangências. Desde um acatolicismo a um monismo ou ainda a um determinismo . Assim, não se pode fazer uma análise das produções do homem do século XIX sem deixar de compreender os movimentos de cunho científico surgidos naquele presente histórico. Determina-se a realidade a partir de um fator determinante permanente na natureza que com suas leis fixa critérios mensuráveis.
As mudanças do ambiente despertam novas necessidades, as necessidades criam novos órgãos, os órgãos desenvolvem-se pelo uso e atrofiam-se pelo desuso. As transformações individuais provenientes da ação destes fatores são depois fixadas pela herança, que as transmite aos descendentes (FRANCA, 1990, p.202).

Como se pode constatar, buscava-se a fixação de uma complexa explicação que abrangesse “todo o homem no conjunto de sua existência” (ROVIGHI, 2001, p.193). Essa nova sociedade, com novas estruturas conceituais, serve de pano de fundo para uma reinterpretarão da realidade, que gera teorias de variadas posturas ideológicas (NICOLA, 1998, p. 178). Para isso surgem essas escolas de caráter cientifico, que inquestionavelmente estão ligadas à história do século XIX. Escolas como o positivismo, o evolucionismo, o materialismo histórico e o darwinismo social se constituirão nas raízes semânticas de interpretação filosófica e científica. Essas escolas se coligam no ideal de evolução nos trabalhos de Darwin , Taine , Spencer e Comte (COUTINHO, 1990, p.184).
O evolucionismo legitimava a condição do mundo ocidental. De certa forma se constituía numa escola de cunho funcionalista. A ideologia hegemônica da civilização européia passou a ser uma idéia comprovada cientificamente comprovada por “leis naturais”, que determinava o rumo da história dos povos. Assim como na natureza há leis que impulsiona a presença do mais forte, a sociedade humana também seria regida por esta lei de manutenção. Isso conflagra naquilo que Darwin chama de “luta pela existência”. Os mais fortes ou favorecidos seguiriam uma tendência natural de beneficio da natureza (DARWIN, 2005, p.79).
A idéia básica do darwinismo social seria de que as circunstâncias históricas externas determinam a natureza de qualquer ser vivo e amplia-se a ponto de análise dos acidentes geográficos, do ambiente e da natureza propiciar não apenas caracteres psicológicos, como o comportamento social. Estudava-se o ambiente do homem para que se pudesse compreender o seu comportamento como o de um mero animal (SENRA, 2006, p.12). O mundo passa a ser encarado como um processo de crescimento e evolução. “A sociedade foi encarada, sob o influxo da biologia, composto por células de funcionamento harmônico e obedecendo às leis biológicas de lei e morte” (COUTINHO, 1990, p.183). Em suma, conforme continua expressado Coutinho (1990, p.184), “as circunstâncias externas determinam rigidamente a natureza dos seres vivos, inclusive o homem, e de que nem a vontade, nem a razão podem agir independemente de seu condicionamento passado”.
Já para o positivismo de Augusto Comte, que foi amplamente divulgado no século XIX como construto científico por excelência, considerava precipuamente que a metafisica e a teologia eram sistemas de conhecimentos imperfeitos, pois não poderiam ser explicados pela razão positiva. O filósofo francês entendia que somente a razão positiva era capaz de conduzir o homem a um novo estágio de lei, progresso e ordem. Para ele, não se devia reduzir o mundo apenas a um princípio (Deus, Homem ou Natureza). Tal forma de construção estaria equivocada, pois a construção de um novo estágio de civilização não devia ser feito de forma individual ou isolada. Em seja, qual fosse o campo, uma metodologia idêntica iria produzir convergência e homogeneidade de teorias, possibilitando, assim, que a filosofia positiva fosse o “fundamento intelectual da fraternidade entre os homens, possibilitando a vida prática em comum” ( 2005, p.10).
De fato o grande ideal de Comte era fundar uma religião que teria a ciência como principal personagem que orquestraria a humanidade. Ele enxergava certo determinismo entre os povos, uma amarra que ligava por meio de uma coexistência de todos os povos do globo. Ou seja, dessa forma o “encadeamento estabelecido segundo a sucessão dos tempos pode ser verificado pela comparação dos lugares” (COMTE, 1972, p.18). Para Comte, a história seria constituída por um conjunto de fases imóveis em si mesmas, que num contínuo substituem umas às outras, de forma que cada estágio superior ao anterior, decorrência necessária deste e preparação, também necessária, para o próximo estágio, até que se chegue, finalmente, ao estado superior (ANDERY; SÉRIO, 2004, p.379).
O materialismo histórico foi desenvolvido por Karl Marx como uma teoria crítica permite que se leia a história como uma intensa luta de classes. O que se estabelece a priori é que há aqueles que dominam e aqueles que são dominados, pois o que determina a organização de qualquer sociedade é o estado de suas forças produtivas. Quando se muda esse estágio, inevitavelmente se muda a organização social. O movimento da matéria move a história. Os fatos históricos não são determinados pela consciência sobre as coisas materiais, mas a consciência é determinada pela ingerência direta da matéria. Portanto, as forças sociais estão em constante estado de mudança quando as forças produtivas da matéria se estabelecem (PLEKHANOV, 2006, pp.80-81).
Essas concepções vão está presentes também na estética das artes, principalmente na literatura. Os escritores dessa época a partir desse ideário passam a valorizar esse cientificismo acentuado e fazem dos seus personagens bonecos sem livre-arbítrio ou os reduzem a um ambiente onde as forças hereditárias imprimiam caráter, ações, destino.

O REALISMO E O NATURALISMO.

Falar desses movimentos estéticos é perceber essa cristalização de caracteres cientificistas impressos nas páginas. O mundo vaporoso dos românticos foi ordenado e reduzido a construtos da ciência. Já não se priorizava o que o indivíduo tinha a dizer, mas o que os fenômenos naturais ou sociais diziam. O homem, afinal, nada mais era do que uma engrenagem na grande máquina, no mecanismo que é o mundo. Tais ordenações podem ser observadas textos produzidos nesse período. Isso pode ser visto, por exemplo, no Naturalismo e o Realismo que foram produções estéticas que buscaram realçar essas características.
O Naturalismo é o termo que designa uma ciência (natural + ismo) e significava uma filosofia, na qual nada tem uma explicação supranatural, e, portanto as leis científicas e não as concepções teológicas da natureza, é que possuem explicações válidas. Em literatura, é a teoria que explica que a arte deve conformar-se com a natureza, utilizando-se dos métodos científicos de observação no tratamento dos fatos e dos personagens (COUTINHO, 1990, p.188). Essa visão determinou uma possibilidade de fazer dos personagens meros caprichos do ambiente, que os condicionava. Isso fica patente nos escritos Émile Zola.
Nos meados do século XIX, a ciência fez novos progressos e as idéias mecanicistas voltaram a estar na moda. Dessa vez, porém, vinham de outra parte – não da Física ou da Matemática, mas da Biologia. A teoria da Evolução teve efeito de reduzir o Homem, da estatura heróica a que os românticos haviam procurado exaltá-lo, ao aspecto de um animal indefeso, mais uma vez minúsculo dentro do universo à mercê das forças que o circundavam. A humanidade era o produto acidental da hereditariedade e do meio ambiente, em cujos termos se tornava explicável. Esta doutrina chamou-se, em Literatura, Naturalismo, e foi posta em prática por romancistas como Zola, que acreditava serem idênticas a composição de um romance e a realização de um experimento de laboratório: bastava apenas fornecer às personagens um meio ambiente e uma hereditariedade específicos e depois acompanhar-lhes as reações automáticas. E por historiadores e críticos como Taine que asseverava serem a virtude e o vício produtos de processos automáticos, tanto quanto álcalis e ácidos, e que buscava explicar as obras-primas com estudar as condições geográficas climáticas dos países onde haviam sido produzidas (WILSON, 1993, pp.12-13).

Ou seja, esse axioma do Naturalismo permitia a arte se ligar à ciência e torná-la qual documento objetivo, de análise de fatos sociais.
O Realismo, por sua vez, conforme narra Coutinho (1990, p.185) derivava real, oriundo do adjetivo do baixo latim realis, reale, por sua vez derivado de res, coisa ou fato. Assim, seria a palavra que indicaria a preferência pelos fatos e a tendência a encarar as coisas tais como elas são na realidade. “Em Literatura, Realismo opõe-se habitualmente a idealismo (e a Romantismo), em virtude da sua opção pela realidade tal como ela é e não como deve ser” (1990).
O realismo logrou impor a pintura verdadeira das condições de vida dos humildes e obscuros, homens e mulheres que habitualmente são ignorados pelos olhos das elites. É uma literatura, enquanto tendência, um temperamento, uma forma de se posicionar no mundo, que buscava apresentar a verdade, uma busca de tratar com o máximo de verossimilhança, sem artificialismos ou sentimentalidades; buscava pintar retratos fiéis de seus personagens, são personagens concretos, não genéricos; encarava a vida objetivamente, de modo que o autor não confundia seus sentimentos e pontos de vistas com emoções e motivos das personagens; retratava a vida contemporânea, não se fiava pelo passado ou o futuro; tirava o maior número de detalhes específicos; a narrativa se desenrolava lentamente, pois buscava mais caracterizar do que narrar as ações; apoiava-se mais nas impressões sensíveis; escolhia uma linguagem mais próxima do real.
Como se pode ver tanto o Naturalismo como o Realismo buscavam uma visão claramente objetiva para lidar com a realidade. Essas características são advindas daquilo que pode ser denominado espírito da época.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O século XIX constitui um momento singular na História da Humanidade, pois permitiu que surgisse uma importante desejo por se compreender as razões lógicas que moviam o mundo. Para isso, a ciência surgiu como um grande vulto que possibilitava a construção de uma base para se chegar a essa ordenação ou ideal criador. Este empreendimento buscava dissipar os aspectos meramente não naturais, não materiais como a teologia e a metafísica como possibilidade explicativa da realidade.
Com isso surgem diversas escolas cientificas que priorizam a aplicação do método cientifico como axioma absoluto para gerir a economia, a política, as artes, a religião. Tais construtos determinaram uma visão objetiva da história que passou a ser vista como um palco da matéria. Pensadores como Darwin, Marx, Comte, Spencer e Taine foram responsáveis por uma visão por empreender uma luta ideológica na construção de seus empreendimentos filosóficos.
A literatura não ficou como um terreno neutro. O espírito da época influeenciou também os escritores que se utilizaram claramente da objetividade da ciência para nos seus escritos. Isso fica claro, por exemplo, com o Realismo e com o Naturalismo, que são escolas estéticas profundamente tangenciadas pelo zeitgeist daquele momento histórico.
Compreender esse espírito da época possibilita ter uma visão mais abrangente desse momento tão singular da literatura da segunda metade do século XIX (pós-romântica). Pois um autor ao escrever uma obra está querendo ou não influenciado por determinadas circunstâncias históricas. A obra não se limita a um tempo, pois é matéria imorredoura, por isso, é arte. Todavia, o autor possui uma referência histórica que guia o seu pensamento e suas noções.

REFERÊNCIAS

ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência – Introdução ao Jogo e Suas Regras. São Paulo. Editora Brasiliense. 1981. 176p.

ANDERY, Maria Amália e etc. Para compreender a ciência – uma perspectiva histórica. São Paulo/Rio de Janeiro. EDUC – Editora da PUC-SP/Editora Garamond. 2004. 436p.

COMTE, Augusto. Opúsculos de Filosofia Social. Porto Alegre/São Paulo. Editora Globo/Editora da Universidade de São Paulo. 1972. 233p.

COUTINHO, Afrânio, Introdução à Literatura no Brasil, Editora Bertrand Brasil S.A. – 15ª. Edição: Rio de Janeiro, 1990, p. 213.

DARWIN, Charles. A origem das espécies por meio da seleção natural ou a preservação das raças favorecidas na luta pela vida – tomo I. São Paulo. Editora Escala. 2005. 192p.

DICIONÄRIO AURÉLIO ELETRÔNICO. Versão 3.0. Lexikon Informática Ltda. Novembro 1999.

ENCICLOPÉDIA. Microsoft ® Encarta ® Encyclopedia 2002. © 1993-2001 Microsoft Corporation.

FRANCA, Leonel. Noções de História da Filosofia – 24ª. Edição. Rio de Janeiro. Agir. 1990. 384p.

GIANNOTTI, José Arthur. Augusto Comte – Vida e Obra – Os Pensadores. São Paulo. Editora Nova Cultural. 2005. 336p.

GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo – dos mitos de criação ao Big Bang. São Paulo. Companhia das Letras. 1997. 425p.

LUNGARZO, Carlos. O que é ciência. São Paulo. Editora Brasiliense. 1989. 88p.

NICOLA, José de, Literatura Brasileira – das origens aos nossos dias, Editora Scipione, São Paulo, 1998. 503pp.

PACHECO, João. O Realismo – volume III. São Paulo. Editora Cutrix. 1971. 206p.

PLEKHANOV. O papel do indivíduo na História. São Paulo. Editora Expressão Popular. 2006. 160p.

RÉMOND, René. O Século XIX – de 1815 – 1914 – introdução à história do nosso tempo. São Paulo. Editora Cutrix. 1990. 208p.

ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Contemporânea – do século XIX à neoescolástica. São Paulo. Edições Loyola. 2001. 662p.

SAGAN, Carl. Cérebro de Broca. Lisboa – Portugal. Gradiva Publicações. 1997. 203p.

SENRA, Flavio Pereira. A herança do período naturalista nas letras do século XX. Tese de mestrado em Literatura Comparada apresentada à coordenação dos cursos Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho. 2006. 114p.

SCHAEFFER, Francis A. A morte da razão – a desintegração da vida e da cultura moderna. São Paulo. ECC. 2002. 112p.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

WILSON, Edmund. O Castelo de Axel – estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930. São Paulo. Editora Cutrix. 1993. 224p.

www.dominiopublico.gov.br, acessado dia 9 de junho de 2008, ás 18:00.

quinta-feira, setembro 04, 2008

Tempo de delicadeza

Li o livro tremendamente delicado de Affonso Romano Sant’Anna Tempo de Delicadeza. Impossível ler tal livro e não ser acometido por uma frescura delicada. Affonso é mineiro, da terra de Drummond, Guimarães Rosa e Rubem Alves, homens excessivamente delicados com o trato verbal. Há muito tempo eu vinha intentando colocar um texto de Affonso neste espaço e essa manhã eu fui acometido por um ímpeto de delicadeza. Decidi fazê-lo. Certa vez tive o privilégio de falar com o senhor Affonso Romano de Sant’Anna. Ele palestrara sobre Machado de Assis. Ao final de sua fala, decidi tietá-lo (talvez esse seja um termo indelicado, mas fica como está). Era uma sexta-feira airosa e eu perto daquele homem me senti mais docemente delicado. A sua voz grave, pronunciada com uma pausalidade, quase que cenográfica, causou-me impressão profunda. Ele de fato sabe ser um indivíduo delicado. Autografou um livro que estava em minha mão. Fiquei excitado, cheio de um contentamento, de uma veneração delicada. Falei da minha admiração por ele e o percebi educadamente delicado do alto de sua sobrancelha hirsuta.
Trata-se com certeza de um dos mais valorosos intelectuais vivos aqui no Brasil. Vale a pena ler as suas crônicas, poesias e textos científicos. É um homem catedrático, de erudição delicada. Ele herdou a tradição de Rubem Braga e Fernando Sabino para escrever coisas bonitas, doces, de fatos corriqueiros, porém vestidos por uma delicadeza profunda. O texto está abaixo. Ao lê-lo, temos a impressão de que estamos ouvindo uma ária de Mozart ou Bach. Leia o texto e seja remetido a um tempo de delicadeza.

Segue o texto: Tempo de Delicadeza


Sei que as pessoas estão pulando na jugular uma das outras.

Sei que viver está cada vez mais dificultoso.

Mas talvez por isso mesmo ou, talvez, devido a esse maio azulzinho, a esse outono fora e dentro de mim, o fato é que o tema da delicadeza começou a se infiltrar, digamos, delicadamente nesta crônica, varando os tiroteios, os seqüestros, as palavras ásperas e os gestos grosseiros que ocorrem nas esquinas da televisão e do cinema com a vida.

Talvez devesse lançar um manifesto pela delicadeza. Drummond dizia: "Sejamos pornográficos, docemente pornográficos". Parece que aceitaram exageradamente seu convite, e a coisa acabou em "grosseiramente pornográficos". Por isso, é necessário reverter poeticamente a situação e com Vinícius de Morais ou Rubem Braga dizer em tom de elegia ipanemense:

Meus amigos, meus irmãos, sejamos delicados, urgentemente delicados.

Com a delicadeza de São Francisco, se pudermos.

Com a delicadeza rija de Gandhi, se quisermos.

Já a delicadeza guerrilheira de Guevara era, convenhamos, discutível. Mas mesmo ele, que andou fuzilando pessoas por aí, também andou dizendo: "Endurecer, sem jamais perder a ternura".

Essa é a contradição do ser humano. Vejam o nosso sedutor e exemplar Vinícius, que há 20 anos nos deixou, delicadamente.

Era um profissional da delicadeza. Naquela sua pungente "Elegia ao primeiro amigo" nos dizia:

Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente.

E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha alma

Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre

um corpo de adúltera.

Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento.

Se me entediam, abandono-as delicadamente, despreendendo-me delas com uma doçura de água.

Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim

Deprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível

Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher

Mas com singular delicadeza. Não sou bom

Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado

Porque dentro de mim mora um ser feroz e fraticida

Como um lobo.

Está aí: porque somos ferozes precisamos ser delicados. Os que não puderem ser puramente delicados, que o sejam ferozmente delicados.

Houve um tempo em que se era delicado. E Rimbaud, que aos 17 anos já tinha feito sua obra poética, é quem disse um dia: "Por delicadeza, eu perdi minha vida."

Intrigante isso.

Há pessoas que perdem lugar na fila, por delicadeza. Outras, até o emprego. Há as que perdem o amor por amorosa delicadeza. Sim, há casos de pessoas que até perderam a vida, por pura delicadeza. Não é certamente o caso de Rimbaud, que se meteu em crimes e contrabandos na África. O que ele perdeu foi a poesia. E isso é igualmente grave.

Confesso que buscando programas de televisão para escapar da opressão cotidiana, volta e meia acabo dando em filmes ingleses do século passado. Mais que as verdes paisagens, que o elegante guarda-roupa, fico ali é escutando palavras educadíssimas e gestos elegantemente nobres. Não é que entre as personagens não haja as pérfidas, as perversas. Mas os ingleses têm uma maneira tão suave, tão fina de serem cruéis, que parece um privilégio sofrer nas mãos deles.

Tudo é questão de estilo.

Aquele detestável Bukovski, sendo abominável, no entanto, num poema delicado dizia que gostava dos gatos, porque os gatos tinham estilo. É isso. É necessário, com certa presteza, recuperar o estilo felino da delicadeza.

A delicadeza não é só uma categoria ética. Alguém deveria lançar um manifesto apregoando que a delicadeza é uma categoria estética.

Ah, quem nos dera a delicadeza pueril de algumas árias de Mozart. A delicadeza luminosa dos quadros dos pintores flamengos, de um Vermeer, por exemplo. A delicadeza repousante das garrafas nas naturezas mortas de Morandi. Na verdade, carecemos da delicadeza dos adágios.

Vivemos numa época em que nos filmes americanos os amantes se amam violentamente, e em vez de sussurrarem "I love you" arremetem um virótico "Fuck you".

Sei que alguém vai dizer que com delicadeza não se tira um MST - com sua foice e fúria - dos prédios ocupados. Mas quem poderá negar que o poder tem sido igualmente indelicado com os pobres deste país há 500 anos?

Penso nos grandes delicados da história. Deveriam começar a fazer filmes, encenar peças sobre os memoráveis delicados. Vejam o Marechal Rondon. Militar e, no entanto, como se fora um místico oriental, cunhou aquela expressão que pautou seu contato com os índios brasileiros: "Morrer se preciso for, matar nunca".

A historiadora Denise Bernuzzi de Sant'Anna anda fazendo entre nós o elogio da lentidão, denunciando a ferocidade da cultura da velocidade. É bom pensar nisso. Pela pressa de viver as pessoas estão esquecendo de viver. Estão todos apressadíssimos indo a lugar nenhum.

Curioso. A delicadeza tem a ver com a lentidão. A violência tem a ver com a velocidade. E outro dia topei com um livro, A descoberta da lentidão, no qual Sten Nadolny faz a biografia do navegador John Franklin, que vivia pesquisando o Pólo Norte. Era lento em aprender as coisas na escola, mas quando aprendia algo o fazia com mais profundidade que os demais.

Sei que vão dizer: "A burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados."

- E eu não sei?

Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados.


Extraído do Livro Tempo de Delicadeza.


SANTA'ANNA, Affonso Romano de. Tempo de Delicadeza - Porto Alegre: L&PM, 2007.