sábado, dezembro 31, 2011

Eu, Jorge Luis Borges, Santo Agostinho e o tempo

Neste instante, em que nossa caminhada nos faz chegar aos portões de uma zona imaginária, paro e reflito sobre tal efeito simbólico - 31 de dezembro, último dia do ano. Amanhã, o hoje não mis será. Penso em Janus, deidade mítica romana, capaz de olhar para frente e para trás simultaneamente. Considera o futuro, mas ainda está preso ao passado - é presente. Janus, porteiro do Monte Olimpo, também era o deus da dúvida, pois uma cabeça considerava o passado e, a outra, o futuro. Eu, de forma semelhante, estou com os pés fincados no presente, mas os meus olhos vislumbram as colinas afastadas do futuro; a minha mente é uma porta dimensional, condutora dos fatos e eventos acontecidos - alguns que já se gastaram e foram esquecidos; outros, que ainda persistem e já se tatuaram no meu, deixando os seus efeitos. Sou o intervalo entre o ontem e o manhã no tempo, essa força invísivel, criada para nos fatigar e determinar a nossa finitude. O tempo é consciência do que se espera no hoje, sendo que no ontem eu já esperava pelo hoje, e é no hoje que se espera pelo amanhã, tendo a consciência de que se é neste momento chamado hoje e projetando uma expectativa para aquilo que ainda não é e chamamos de futuro.

"O tempo é um problema para nós, um terrível e exigente problema, talvez o mais vital da metafísica; a eternidade, um jogo ou uma fatigada esperança"

(Jorge Luis Borges, in História da Eternidade, p. 6)


"Rubayat

Volte em minha voz a métrica do persa
A recordar que o tempo é a diversa
Trama de sonhos ávidos que somos
E que o secreto Sonhador dispersa.

Volte a afirmar que é a cinza o fogo,
A carne o pó, o rio o fugidio
Reflexo de tua vida e de minha vida
Que lentamente se nos esvai logo.

Volte a afirmar que o árduo monumento
Que constrói a soberba é como o vento
Que passa e que, à luz inconcebível
De Quem perdura, um século é um momento.

Volte a advertir que o rouxinol de ouro
Canta uma única vez no sonoro
Ápice da noite e que os astros
Avaros não prodigam seu tesouro.

Volte a lua ao verso que tua mão
Escreve como transforma no temporão
Azul o teu jardim. A mesma lua
Desse jardim há de procurar-te em vão.

Sejam sob a lua das ternas
Tardes teu humilde exemplo as cisternas,
Em cujo espelho de água se repetem
Umas poucas imagens eternas.

Que a lua do persa e os incertos
Ouros dos crepúsculos desertos
Voltem. Hoje é ontem. És os outros
Cujo rosto é o pó. És os mortos".

(Jorges Luis-Borges, in Elogio da Sombra, p. 24)

"Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem o pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de constatação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria tempo presente".

(Santo Agostinho, in As Confissões p. 322)

quinta-feira, dezembro 29, 2011

Rush, mais que uma banda de rock

Esta manhã, me bateu um desejo de ouvir uma das melhores bandas de todos os tempos - o Rush. É uma das minhas paixões. O Rush possui um tipo de som bem trabalhado, que me faz muito bem. Sou capaz de ouvir um álbum seguido do outro sem me cansar. Ou ouvir o mesmo álbum, como acontece aos álbuns Hemispheres (1978), Permanent Waves (1980) ou Moving Pictures. E essa "disciplina da continuidade" é bastante rara.

Os primeiros elementos do Rush começaram a ser construídos no ano de 1968, na cidade de Toronto, maior cidade do Canadá, capital da península de Ontário. Passaram por algumas fases: hard rock, progressivo experimental, a fase progressiva com sintetizadores e teclados e de rock atual. O Rush já vendeu algo em torno de 40 milhões em sua história bem-sucedida.

O que singulariza a trajetória da banda é a qualidade. Os seus componentes ficaram marcados como extraordinários instrumentistas - Geedy Lee (baixo, vocal e teclados), Alex Lifenson (guitarra) e Neil Peart (bateria). As composições são complexas. O som é bem urdido, o que define um tipo seleto de seguidor da banda. É necessário treinar os ouvidos para ouvir os moços canadenses.

As letras sempre ecléticas abordam temas como ficção-científica, mitologia e filosofia. Músicas como 2112, do álbum homônimo de 1976, são escandalosamente belas. Uma verdadeira obra com recortes épicos e eruditos. Certamente, esta é a maior canção em extensão da banda. A música possui quase vinte minutos. No álbum A Farewell to Kings temos duas canções maravilhosas: Xanadu e Closer to the heart, esta última, uma das canções mais famosas da banda. Outra canção como La Villa Strangiatto, a primeira canção instrumental do grupo, do álbum Hemispheres, é de uma profundidade e beleza desconcertantes. É perceptível o conflito entre razão e emoção. Hemispheres é um dos álbuns que eu mais escuto. Já o álbum Permanent Waves, um disco mais comercial, traz faixas belíssimas como Freewill e The Spirit of the Radio. Mas este disco traz a belíssima Natural Sciense, uma das músicas de que mais gosto da banda.

Logo em seguida, gravaram o maravilhoso disco Moving Pictures, de grande repercusão comercial. Na abertura temos a monumental Tom Sawyer, música esta bastante conhecida aqui no Brasil - pelo menos para aqueles que foram meninos em minha geração. É de se lembrar que esta era música de abertura do seriado oitentista Profissão Perigo, do mítico personagem MacGyver. O personagem era famoso por desembaraçar-se das mais intricadas situações sem o uso de recursos técnicos. Seus conhecimentos científicos, materiais comuns e um canivete suiço, que sempre portava consigo, eram as suas armas. Tanto é assim que, ainda hoje, aqueles pessoas que possuem determinadas habilidades são chamadas de MacGyver. Mas Moving Pictures trazia as belas Limelight, Red Barchetta e Vital Signs. Em Limelight temos a bela frase: "O mundo inteiro é um palco, e nós meros participantes, intérpretes e atores".

Que bom seria se as novas gerações descobrissem a banda. Se livrassem da superficialidade e do barulho gratuito, sem propósito, das maioria das bandas frívolas da atualidade e viajassem nessa estrutura sonora repleta de símbolos e riquezas. Não entendam isso como uma ofensa. Como diz Nietzsche no seu livro Anticristo: "Há entendimentos que são admitidos com o tempo". Não é que os mais velhos tenham mais razão do que os mais jovens. Eles apenas tiveram mais tempo para pensar e refletir determinados assuntos.

A seguir, três músicas muito importantes para mim. Difícil fazer a seleção:

Tom Sawyer, do álbum Moving Pictures (1981), tradução Aqui



La Villa Strangiato, do álbum Hemispheres (1978)



2112, do álbum 2112 (1976), tradução Aqui





quarta-feira, dezembro 28, 2011

Os votos de final de ano e as crenças

Viver entre os homens é considerar comportamentos e contradições. Nos últimos dias, e com a proximidade das últimas horas que nos conduzirão ao ano de 2012, notamos o discurso do otimismo, das supertições de final de ano. No noticiário que vi esta manhã, como que por meio de uma instigação a um otimismo para fecundação de um ato, mostrava-se como as pessoas reagem ao esperarem melhores dias no novo ano que vai começar. Já me acostumei com esse comportamento de final de ano. Todos os anos essa corrida à supertição acontece.

Para alguns, a cor da roupa determina o ano que se vai ter. A peça intíma feminina também. A comida que se come também é um fator determinante àquilo que se vai ter durante todo o ano. É comum se comer lentilhas para atrair dinheiro. Alguns outros vão para a praia e depositam nas águas as suas esperanças. Outros ainda, refulgiam-se em igrejas buscando proteção divina no período de 365 dias do próximo ano. Seja uma crença institucionalizada ou não, o fato é que tudo isso é resultado de um comportamento religioso.

O que é a crença? É a percepção dos valores que sustentamos. Uma coisa só vale mais do que outra porque assim o estabelecemos e desejamos. A fé é uma disposição biológica. Parece haver no cérebro humano um lugar para o numinoso. Quando debato sobre a fé de alguém, piso no terreno do indiscutível. "Fé é porque é"; "vejo algo e dou fé do que vi". É aquilo que Kierkegaard disse certa vez: "Fé é fé e eu procuro uma que seja verdadeira para mim". Ou seja, a crença é algo vinculado ao ser humano, ao mundo humano.

No século XIX, Auguste Comte, conhecido por muitos como o pai da sociologia e também do positivismo, dizia que a religião é resultado de um primitivismo. O "primitivismo" em acepção comteana estava relacionado a um valor negativo. Não cabia ao homem moderno, na era da razão, da ciência, conviver com este "estigma" que o inferiorizava. Era preciso dar voz à razão científica. Sem perceber, invonluntariamente, Comte estava fundando uma religião - a religião científica.

O homem é, por natureza, um animal religioso. O propalado ateísmo da modernidade é, no fundo, uma crença na não-crença. O fato é que o ser humano não se acostuma com a materialidade e busca sempre um significado para aquilo que está por trás dela. Para que apazigue seu medo, sua pulsão-tensão em torno do desconehcido, cria um desejo de transferência para aquilo que está ausente dele. De maneira inconsciente, precisamos de algo que nos oriente. O caos seria insurportável. Descasamos, somos pacificados, uma carga sai dos nossos ombros, quando sentimos ou cremos que um ser superior (ou sentimento simbólico) cuida dos nossos medos, de nossa ansiedade, do desejo que se alastra pelo nosso ser. É aí, que se abre espaço para a crença, para o religioso.

Não existem seres humanos sem crenças. Crer não é, necessariamente, depositar fé em um deus, em uma religião institucional - cristianismo, judaísmo, islamismo, hinduísmo etc. Durkheim afirma que os nossos critérios de julgamento da realidade estão balizados na crença. É isso que faz criar os valores. Julgamos o que é certo e o que errado diante de validações com características duais - o bom e o ruim. Posso afirmar que sou ateu ou agnóstico, mas no fundo há reservas quanto a determinados fatos cotidianos. Se o meu time joga e desejo que ele seja campeão, deposito em relação a isso, uma confiança (crença não institucional). A minha torcida é confiante. É em outro sentido, uma confiança positiva. Se estou desempregado e busco emprego, no fundo, creio que posso encontrar um emprego. O garoto que se apaixona e investe no flerte, acredita que pode namorar a moça dos seus desejos. O jogo com a crença se estabelece como uma relação com o imaterial, com simbólico, com o intangível.

Na atualidade, há um movimento de esvaziamento da religiosidade institucional, ou seja, um movimento de "dessacralização do mundo". Mas a ideia do religioso está camuflado por trás de movimentos que se dizem laicos ou até anti-religiosos. A institucionalização do mercado não deixa de ser um evento religioso. De certa forma, este assume o poder de uma entidade absoluta, invisível, que tudo regula. Os investidores têm fé nessa força, senão ninguém arriscaria seus recursos em algo que só no futuro trará benefícios. O mercado possui sacerdotes - os economistas. Estes sacerdortes são os agentes autorizados para interpretar os humores do deus mercado. O mercado possui templos - os shopping centers - as "catedrais luminosas e limpas" do deus mercado. Richard Dawkins, um dos mais instigados defensores da ciência, no fundo, é "um religioso", que busca fundar uma outra crença: a possibilidade de que o homem possa viver no mundo sem a ideia do deus institucional.

Pensando sobre comportamento dos homens, lembro da frase daquele sofista antigo: "O homem é a medida de todas as coisas". O ser humano é o único animal capaz de criar abstratamente. De engendrar mundos. De fantasiar. De ter a consciência de que está consciente. E de criar perspectivas quanto ao seu futuro. Como o futuro é uma força indomável, preciso lhe dar com ele baseado na expectativa em torno do incerto. O futuro é incerto porque está ausente das nossas mãos. É um fato intangível. Parafraseando o filósofo pernambucano Evaldo Coutinho: "O tempo é a aproximação ininterrupta do fato".

Vivemos por causa da crença. Trabalhamos por causa da crença. Estudamos por causa da crença. Militamos em partidos políticos por causa da crença. Frequentamos igrejas e vamos ao culto ou à missa por causa da crença. Constituímos famílias por causa da crença. Votamos e esperamos uma sociedade mais justa por causa da crença. Lemos livros ou escutamos música por causa da crença. Fazemos votos de melhores dias, mesmo que não tenhamos controle sobre isso, por causa da crença.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

domingo, dezembro 25, 2011

Lolita (de Kubrick), obra menor. Imagine as maiores?

Ainda estarrecido por causa da maestria de Stanley Kubrick. Comecei a ver no dia de ontem o filme Lolita (1962) do diretor americano Stanley Kubrick. Terminei hoje pela manhã. Assisti ao filme em prestações. O filme é baseado num dos livros mais controversos do século XX, escrito pelo russo Vladimir Nabakov, Lolita (1955). Vale lembrar que em 1997, foi feita uma releitura da obra em um outro filme com o mesmo nome, pelo diretor Adrian Lyne. Vi algumas cenas e achei que a nova versão abusou na sensualidade, na lascividade exagerada da ninfeta Lolita. Ou seja, não dá para comparar com a primeira versão de 1962. Voltemos ao maestro Kubrick. É curioso como um filme feito há tanto tempo conserve traços de uma obra genial.

Alguns críticos dizem que se trata do filme mais "fraco" de Kubrick. Discordo. Quando se trata de Kubrick tudo é um detalhe a ser observado. Fico refletindo por horas e horas como um filme como Lolita, sem efeitos mirabolantes, sem as técnicas computadorizadas da atualidade apreende a atenção do telespectador por duas horas e meia. E chego à conclusão: o que nos prende é a maestria das cenas, das falas, da habilidade dos atores, do enredo muito bem urdido, amarrado; da história muito bem construída. As cenas iniciais do filme são de um drama fascinante.

O professor de literatura francesa, Humbert Humbert, invade a mansão do produtor de cinema Clare Quilty, com um revólver, disposto a fuminá-lo. O diálogo do professor com o produtor de cinema é genial. Digno dos grandes suspenses. Longo em seguida, a obra nos conduz por um flash back, o que de fato nos insere na história. O ponto crucial é saber que o professor Humbert fica obcecado por Lolita, uma adolescente envolvente. É capaz de casar com a mãe da adolescente para ficar próximo da menina. Escreve num diário sua obsessão pela adolescente. A mãe da garota descobre e fica transtornada. Sai de casa em disparada e acaba sendo atropelada. Morre. Daí, a obra toma características de um road movie. Humbert sai em viagem com a garota.

A obra possui um eixo estrutural muito bem realizado, possuindo diversas qualidades literárias. Vai do início dramático, a um romance de menor significância, quando o professor se estabelece e passa a morar com a mãe de Lolita. Depois, como aludido acima, passa para um road movie, com uma curiosa viagem de carro. Logo em seguida, de forma extraordinária, revesa para o mistério, quando o professor Humbert e a jovem começam a ser persguidos por um sujeito oculto. A obra nos posiciona à frente de uma tensão repleta de curiosidade. E depois somos colocados numa atmosfera policial.

O que observei em Lolita foi a acapacidade do diretor de tornar um telespectador num "semipersonagem" da história. Vale ressaltar que para isso ocorresse, a atuação do ator James Mason, que fazia o papel do professor Humbert, foi crucial. Seus diálogos são de uma visceralidade incrível. Se Lolita é uma obra "menor" de Kubrick, imagine o que ele é capaz de fazer com as obras "maiores" ?

Que pena que na atualidade não tenhamos outros Kubricks.

Cenais iniciais do filme: os traços do gênio. O carro rasgando a estrada com a paisagem repleta de névoa branca. As árvores desnudas e cadavéricas... Ah! Kubrick...

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sexta-feira, dezembro 23, 2011

O dia do juízo sobre nossa cultura? - Por Leonardo Boff

Extraordinário texto. O Boff é uma poeta com profundo senso profético. Uma voz que merece/deve ser ouvida.

O final do ano oferece a ocasião para um balanço sobre a nossa situação humana neste planeta. O que podemos esperar e que rumo tomará a história? São perguntas preocupantes pois os cenários globais apresentam-se sombrios. Estourou uma crise de magnitude estrutural no coração do sistema econômico-social dominante (Europa e USA), com reflexos sobre o resto do mundo. A Bíblia tem uma categoria recorrente na tradição profética: o dia do juízo se avizinha. É o dia da revelação: a verdade vem à tona e nossos erros e pecados são denunciados como inimigos da vida. Grandes historiadores como Toynbee e von Ranke falam também do juízo sobre inteiras culturas. Estimo que, de fato, estamos face a um juízo global sobre nossa forma de viver na Terra e sobre o tipo de relação para com ela.

Considerando a situação num nível mais profundo que vai além das análises econômicas que predominam nos governos, nas empresas, nos foros mundiais e nos meios de comunicação, notamos, com crescente clareza, a contradição existente entre a lógica de nossa cultura moderna, com sua economia política, seu individualismo e consumismo e entre a lógica dos processos naturais de nosso planeta vivo, a Terra. Elas são incompatíveis. A primeira é competitiva, a segunda, cooperativa. A primeira é excludente; a segunda, includente. A primeira coloca o valor principal no indivíduo, a segunda no bem de todos. A primeira dá centralidade à mercadoria, a segunda, à vida em todas as suas formas. Se nada fizermos, esta incompatibilidade pode nos levar a um gravíssimo impasse.

O que agrava esta incompatibilidade são as premissas subjacentes ao nosso processo social: que podemos crescer ilimitadamente, que os recursos são inesgotáveis e que a prosperidade material e individual nos traz a tão ansiada felicidade. Tais premissas são ilusórias: os recursos são limitados e uma Terra finita não agüenta um projeto infinito. A prosperidade e o individualismo não estão trazendo felicidade; mas, altos níveis de solidão, depressão, violência e suicídio.

Há dois problemas que se entrelaçam e que podem turvar nosso futuro: o aquecimento global e a superpopulação humana. O aquecimento global é um código que engloba os impactos que nossa civilização produz na natureza, ameaçando a sustentabilidade da vida e da Terra. A conseqüência é a emissão de bilhões de toneladas/ano de dióxido de carbono e de metano, 23 vezes mais agressivo que o primeiro. Na medida em que se acelera o degelo do solo congelado da tundra siberiana (permafrost), há o risco, nos próximos decênios, de um aquecimento abrupto de 4-5 graus Celsius, devastando grande parte da vida sobre a Terra. O problema do crescimento da população humana faz com que se explorem mais bens e serviços naturais, se gaste mais energia e se lancem na atmosfera mais gases produtores do aquecimento global.

As estratégias para controlar esta situação ameaçadora praticamente são ignoradas pelos governos e pelos tomadores de decisões. Nosso individualismo arraigado tem impedido que nos encontros da ONU sobre o aquecimento global se tenha chegado a algum consenso. Cada pais vê apenas seu interesse e é cego ao interesse coletivo e ao planeta como um todo. E assim vamos, gaiamente, nos acercando de um abismo.

Mas a mãe de todas as distorções referidas é nosso antropocentrismo, a conviccção de que nós, seres humanos, somos o centro de tudo e que as coisas foram feitas só para nós, esquecidos de nossa completa dependência do que está à nossa volta. Aqui radica nossa destrutividade que nos leva a devastar a natureza para satisfazer nossos desejos.

Faz-se urgente um pouco de humildade e vermo-nos em perspectiva. O universo possui 13,7 bilhões de anos; a Terra, 4,45 bilhões; a vida, 3,8 bilhões; a vida humana, 5-7 milhões; e o homo sapiens cerca de 130-140 mil anos. Portanto, nascemos apenas há alguns minutos, fruto de toda a história anterior. E de sapiens estamos nos tornando demens, ameaçadores de nossos companheiros na comunidade de vida. Chegamos no ápice do processo da evolução não para destruir mas para guardar e cuidar este legado sagrado. Só então o dia do juízo será a revelação de nossa verdade e missão aqui na Terra.

DAQUI


quarta-feira, dezembro 21, 2011

Anticristo, de Lars von Trier

Na última segunda-feira, fui à locadora aqui perto de casa e loquei Anticristo de Lars von Trier. Relutei ao máximo em vê-lo. Adiei o quanto pude a tarefa de assistir à película. Não gosto de filmes de terror nem de suspense. O estresse proporcionado por aquelas cenas tensas; as surpresas que são maquinalmente feitas para chocar o telespectador para mim são cacetes; a taquicardia, ao meu modo de ver, é desnecessária. Mas o filme de Trier me assediou por dois dias. Até que na manhã de hoje, eu resolvi vê-lo em meu notebook. Quis evitar maiores dissabores. E que surpresa me esperava. Descobri que o filme não é um terror. Poderia classicá-lo como um drama com fortes doses de suspense. Mas há apenas a utilização deste último artíficio para causar os efeitos possíveis, desejados pelo diretor.

O filme proporciona uma experiência tão densa que, após tê-lo visto, tenta-se reorganizar o caos mental, a experiência dorida a qual se enfrentou. De certa forma, ainda estou tentando ordenar os vários elementos, ou seja, cada peça que constitui a obra. Trier prende o telespectador, machuca-o, fere-o com cenas de violência, de uma eroticidade acachapante, de uma uma plasticidade quase que desnecessária. Mas como disse, nada no filme é desnecessário.

A príncipio, a história está colocada entre dois espaços, conectados a um "Prólogo" e um "Epílogo", momentos da mais intensa beleza surgida nos últimos tempos no cinema. O "Prólogo" e o "Epílogo" representam os dois espaços lumisos do filme. No intervalo desses dois espaços, está o escuro, o agonizante, o desespero e a depressão (“Luto", "Dor (Caos Reina)", "Desespero (Genocídio)" e "Os Três Mendigos"). Os cinco minutos iniciais do filme é de uma beleza e pureza enlevantes. O casal, representado pelo extraordinário Willem Dafoe e pela extraordinária Charlotte Gainsbourg, está fazendo sexo no banheiro. Trier busca ser realista. Mostra a genitália dos amantes - o pênis penetrando a vagina - talvez para sugerir o natural, o primitivo, a união profunda do homem e da mulher. As cenas se sucedem em câmera lenta. Tudo em preto e branco. Uma ária de Handel (Lascia Ch’io Pianga, com interpretação da soprano norueguesa Tuva Semmingsen) embala as emoções. A água do chuveiro cai. Fora da casa onde o casal está, a névoa despenca do céu em flocos suaves, como se fosse uma farinha celestial. O pequeno filho do casal sai do berço e ver a mãe e o pai realizando o gesto amoroso. Vira as costas. Faz uma cadeira de apoio e sobe até a janela. Brinca com a neve. E despenca. A queda parece ser uma poesia. Os pais não veem a queda do filho. Uma cena do filme, mais à frente, sugere que a mãe viu o filho caindo. Mas nada no filme de Trier é demasiadamente lógico.

Do evento trágico da morte do filho, desencadea-se o sofrimento para o casal. A mãe se ver aturdida pela dor e pelo desespero. É acometida por distúrbios psicológicos. E aqui começa de fato a viagem bíblica e psicanalítica proporcionada pela obra. Os personagens não possuem nome. Estão presente no filme a força do homem (a inteligência), contra o impulso da mulher (a demência). O marido mostra-se no filme como a energia racional, capaz de pensar os processos, de organizar o caos. É quem conduz, do ponto de vista da psicanálise, o tratamento psicológico da esposa. E é curioso o fato do casal se refugiar no interior de uma cabana chamada Éden, no coração de uma floresta. Éden segundo a Bíblia significa "paraíso" ou "jardim das delícias" e foi o local criado por Deus para que nele morasse e vivesse o primeiro casal humano - Adão e Eva. É somente após a queda, acepção bíblica, que a mulher recebe o nome de Eva. Ou seja, antes da queda ela não possuía nome. Já o homem é considerado "o pai de todos os homens" - Adão, do hebraico "adamar" ou "aquele que foi tirado da terra".

Éden, no filme de Trier, é o lugar da tentativa de cura, da busca pelas lembranças prazerosas e remidoras. Mas é em meio à natureza que os medos e reações mais intempestivas da esposa se voluntarizam. Cena curiosa e instigante é aquela que a esposa escuta um choro de uma criança. Ela procura em toda parte, mas não encontra nenhum personagem para protagonizar aquele vagido. De repente, a câmeta foca a netureza. A imensidão é mostrada. É a pópria natureza que chora. Uma agonia cósmica, metafísica, se insinua. A dor, então, é uma faceta natural do cosmos. Uma frase enunciada pelo marido no início do filme parece corroborar com esta ideia: "O sofrimento não é uma doença. É uma reação saudável e natural".

Na floresta, em meio à natureza, os instintos mais tenebrosos da esposa se avivam. Ela um ser frágil, vai adquirindo uma energia animalesca, pornográfica. Sua ânsia por sexo é um retrato curioso. Numa cena, ela atinge o falo do esposo com um objeto e este, com a dor, acaba desmaiando. E o que se sucede até o final é de uma audácia incrível. Numa cena de demasiada crueza, a esposa mutila o próprio clítoris com uma tesoura e tenta matar o marido. O marido como para se libertar da pulsão de destruição da esposa, acaba por enforcá-la e matá-la. Esse ato representa a liberdade. Ele fica livre da dor, da agonia, do selvagem que habita o feminino.

No "Prólogo", após ter matado a esposa: ele caminha cambaleante. Alimenta-se de frutas silvestres. É a harmonia com a natureza. Enquanto caminha, dezenas de fêmeas vêm ao seu encontro. Sobem o monte. O que seria esse monte? O Gólgota? - lugar da crucificação de Cristo. Mas essas mulheres não possuem rosto. E de repente, a película termina e por dois segundos, num fundo escuro, aparecem os dizeres: "Dedicado a Andrei Tarkovski (1932 a 1986)”. Tarkovski, nascido na antiga Uniãpo Soviética, foi um dos maiores diretores da história.

Lars von Trier tem gerado as mais distintas reações com os seus filmes. Polemista, "arengueiro", como se diz no Nordeste do Brasil, o diretor dimarquês tem arrancado uma beleza descomunal de suas obras. Os filmes de Trier possuem o poder de nos fazer pensar por dias. É daquelas obras que encerram efeitos densos. Deixando de lado maiores polêmicas quanto às suas afirmações sobre posicionamento político ou postura pessoal (o diretor se intitulou como o melhor do mundo e, em outro momento, disse admirar Hitler), Trier é um dos nomes mais importantes da arte cinematográfica da atualidade. Incensado por uns, odiado por outros, o diretor alimenta aquele tipo de sentimento que reside em torno dos grandes artistas.

terça-feira, dezembro 20, 2011

Fantoches


"A suprema ironia do capitalismo é que o dominado pensa com a cabeça do dominador". Alberto Tosi Rodrigues.

Algo que me deixa bastante absorto é a existência de uma crítica pesada e injusta com tudo aquilo que se refira a Marx. Na existência dos dualismos, Marx e o marxismo personificam o mal. Até aí tudo bem, pois o alemão cortou com o bisturi da dialética o nervo da história e expôs as relações dos homens - com eles mesmos e com a história. Curioso, é que a maioria daqueles que falam mal de Marx sequer tiveram a curiosidade de ler uma página dos seus escritos, de suas reflexões.

Vivemos uma época de mortícinios - da natureza, das relações dos homens com os homens; do homem como sujeito histórico e da capacidade de se insurgir. Vivemos em uma época de cinismos, de acomodamentos cegos. Somente somos quando temos condições de consumir. Ontem, enquanto assistia aos jornalões da Tv, que mais deformam do que informam, percebi como foi tratado em tom de chacota a morte do líder da Coreia do Norte - King Jong-il. À sua pessoa estava agregada a "pecha" "tirano comunista".Que não se leia aqui uma defesa ao obscurantista King Jong-il. Por sua vez, vi também o anúncio da morte de Vaclav Havel. E algo assim: "A Europa chora!". "Aquele que ajudou, que resistiu à ditadura comunista!" "Que lutou pela democracia no leste europeu".

O que me deixa estarrecido com esse tipo de informação é a capacidade cínica de deixar mensagens subliminares. Tal discurso é criminoso e voluntarista. A mídia arrivista possui um contrato com a imoralidade e com a mentira. É função dela domesticar. "Amansar", "doutrinar", criar uma ideia de pacifidade. Criminaliza-se todo e qualquer esforço dos trabalhadores. Mas não contam verdadeiramente que vivemos sob uma ditadura. Que a nossa liberdade é falsa. Que somos livres apenas para vender a nossa força de trabalho e consumir, resultando numa ciranda que nos dá uma compreensão a-histórica daquilo que de fato somos. Esquecem que a consciência está ligada aos modos materiais de vida, ao intercâmbio econômico entre os homens e que nos deram a mais criminosa de todas as percepções - a ideia de liberdade.

"À medida que o tempo passa a sociedade capitalista se estabiliza, ela é percebida pelas pessoas, na vida cotidiana, como a única sociedade possível. Assim como em outros, a sociedade feudal, por exemplo, foi percebida pelos homens com a única sociedade possível (durante séculos, num intervalo de tempo, aliás, bem maior do que a duração do capitalismo)". Alberto Tosi Rodrigues, Sociologia da Educação, p. 37

E a barbárie toma conta do mundo. Para aonde estamos indo?

domingo, dezembro 18, 2011

Érico Veríssimo, a honestidade da literatura

Ontem, 17 de dezembro de 2011, se vivo, Érico Veríssimo completaria 106 anos de idade. Absurdo alguém viver 106 anos? Não! Dia 15 de dezembro, Oscar Niemeyer completou 104 anos, com margem de voo para mais uns dez! O fato é que Érico era cardíaco e foi isso que fê-lo deixar este mundo em 1975. O escritor é dono de uma obra sólida e respeitada. Recordo-me que ainda era um adolescente quando entrei em contato com a sua literatura. Era um volume de Olhai os Lírios do Campo, um dos seus manifestos humanizantes e políticos.

O livro me deixou com uma visão do belo. Depois vieram outros - O Resto é Silêncio, Clarissa, O prisioneiro, Solo de Clarineta I etc. Existe uma fluência, uma cadência gostosa no estilo do Érico. Para alguns críticos, tal fluência beira o simples, o que resulta numa obra sem profundidade. Embora, a minha opinião não interfira em tal juízo sobre o escritor, discordo plenamente. Obras como a Trilogia de O Tempo e o Vento (que possui mais e duas mil páginas) ou Incidente em Antares, são suficientes para atestar a competência e profundidade de Érico. O crítico é sempre o chato que nada faz e sempre dá pitacos desnecessários para "enlamear" a virtude alheia.

Algo que sempre me chamou a atenção é que a obra de Érico sempre foi atual em sua temática. E por conta desse aspecto relevantíssimo, penso que o Ministério da Educação, as escolas e os professores de Língua Portuguesa e Literatura deveriam enfatizar a importância da obra do gaúcho para as novas gerações. Que os adolescentes ao invés de lerem aquelas mitologias vampirescas sem nexo, com abordagens artificiais, lessem o bom e velho Érico - sempre gentil, sempre amoroso, sempre sensível. Em 2003, após ler sua autografia - Solo de Clarineta - bateu-me um profundo senso de respeito à obra do autor de O Senhor Embaixador. Recordando a sua vida, Érico cita a importância da música de Brahms, Bach e Mozart para a sua existência. O quanto, por exemplo, Brahms lhe fazia bem. Impingia sensações boas, prazerosas.

Em minha biblioteca particular, devo ter mais vinte livros do escritor, algo que muito me orgulho. Em alguns momentos, olho para a trilogia de O Tempo e o Vento e suspiro. Nenhum escritor brasileiro é tão honesto quanto Érico Veríssimo. As mais de 2 mil páginas da trilogia ainda são um grande desafio. Penso em lê-las futuramente. Há livros que são imprescidíveis e que devem ser lidos antes da morte de qualquer indivíduo. Nesta lista encontram-se Os Miseráveis de Victor Hugo, Guerra e Paz de Tolstoi, A Divina Comédia de Dante, Dom Quixote de Cervantes, Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, Os irmãos Karamazov de Dostorivéski, entre tantos outros; e penso que a trologia de O Tempo e o Vento se inscreve necessariamente nesta lista.

Abaixo, indico o texto do literato e profundo conhecedor da obra e de muitos aspectos pessoais da obra de Veríssimo Milton Ribeiro. O texto saiu ontem no site do jornal gaúcho Sul 21. No texto, Milton resslta os aspectos mais importantes da vida do escritor nascido em Cruz Alta.

O vídeo abaixo possui a direção do escritor mineiro Fernando Sabino, que era metido a cineasta. A sua Bem-Te-Vi filmes produziu alguns filmes curiosos, de escritores como Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Vinícius de Morais, entre outros. Sabino também produziu um belo filme sobre Érico Veríssimo. Algumas curiosas caractéristicas podem ser ressaltadas - a música de Brahms (terceiro movimento da Terceira Sinfonia de Brahms), o homem de família - com os netos e com sua esposa Mafalda) e o seu "porão liberdade", como ouvi certa vez o seu filho Luís Fernando dizer que o pai chamava o seu local de trabalho.

quinta-feira, dezembro 15, 2011

Jorge Luis Borges e o labirinto da literatura

A literatura é um caminho de possibilidades infinitas. É uma planície que desemboca no mistério sem fim. O livro de Eclesiastes, filho da sabedoria judaica, diz que "não há limites para se escrever livros". O Google estima que existam mais de 3 trilhões de livros em todo mundo. Uma quantidade quase impensável, absurda. Se colocados lado a lado daria para dar voltas e voltas em torno do mundo. As possibilidades desses livros nos inclinam a mentalizar imaginações surreais, próximas daqueles quadros pintados por Salvador Dali.

E Borges, para nos aturdir, escreveu um conto chamado "Biblioteca de Babel" na qual imagina um universo constituído por livros. Ou seja, uma biblioteca do tamanho do universo, com prateleiras que se sucederiam umas as outras. Ao imaginarmos algo assim, bate-nos o senso de completo o entedimento de algo que fere as regras da lógica. O escritor argentino, na verdade, quis apenas construir uma metáfora, uma espécie de brincadeira com as possibilidades infinitas do texto ou com a possibilidade de criar; ou ainda uma metalinguagem com conhecimentos acumulados pela humanidade até os dias de hoje. O que nos assusta perante este fato é o noção de pequenez diante de estruturas invisíveis. O conhecimento que podemos apreender é finito. E as areias do tempo escorrem de maneira quase que infinitas em nossa percepção finita. Não poderemos ler todos os livros do mundo. Há uma limitação. O bibliófilo José Mindlin morto no ano de 2010, afirmou ter lido em toda a sua vida, algo em tono dos 8 mil títulos. Incrível. Pensando nisso, inquita-nos saber que as bibliotecas estão repletas de trilhas infinitas.

Mas o fato é que Borges é um escritor instigante. Seu texto é uma costura com outros textos falando do seu próprio texto - ou de outros textos. Terminei de ler O Livro de Areia, escrito em 1975. E torna-se curioso como ele brinca com a possibilidade do duplo. Seu texto é uma rede labiríntica, no qual nos perdemos em sensações e em tentativas de definições, de conclusões. Cada conto do livro é um quadro com linhas infinitas que constroem um tecido infinito. A erudição de Borges beira o absurdo. Seu estilo parece incorporar - fica-nos a sensação de paradoxo - de que ele abarcou quase que todos os conhecimentos possíveis. Suas citações, referências, construção de personagem são um passeio pela história - e as areias escorrem numa espécie de ampulheta invisível. Os personagens fictícios possuem uma verossimilhança absurdo com o real como no conto Avelino Arredondo, um dos mais instigantes do livro.

Fiquei pensando no arranjo do livro. O primeiro conto é O outro, conto este que tem sido alvo de teses e artigos acadêmicos. Borges brinca com o leitor. Existe um duplo aturde. Ao final, saímos da experiência nos perguntando: "terá isso sido verdade? É Fantástico!" Mas, o último conto do livro chama-se O Livro de Areia. Neste conto, logo no início achamos a afirmação: "A linha consta de um número infinito de pontos; o plano, de um número infinito de linhas; o volume, de um número infinito de linhas; o volume, de um número infinito de planos; o hipervolume, de um número infinito de volumes...."

Borges parece escrever uma metalinguagem de sua própria obra, uma espécie de autotexto. Ou em outra abordagem, o escritor argentino parece construir uma metáfora do próprio caráter instável da literatura, pois não sabemos de onde vem esse livro de areia. Essa imagem apenas realça a ideia de labirintos infinitos nos quais nos perdemos neles. Os caminhos nunca são planos ou retos em Borges. Eles sempre nos conduzem para encruzilhadas, para planos justapostos. O espaço da ficção e da realidade é separado por uma película fina, tênue, quase transparente.

Procurarei outro livro de Borges - Ficções - para ler. Por enquanto, ficarei com aquelas cenas pintadas com um realismo mágico; uma ficção poderosa que nos insere num plano de imagens densamente fortes. Em Borges, não sabemos se estamos conhecendo personagens fictícias ou memórias reais.

quarta-feira, dezembro 14, 2011

Clarice, literatura e mistério - 91 anos

Apesar de já terem passado 4 dias (pois no último dia 10 de dezembro completaram-se 91 do nascimento de Clarice Lispector), não pude me esquivar da tarefa de escrever algumas linhas magras sobre uma das maiores filósofas da literatura brasileira do século XX. A consciência me impulsinou, me fustigou para que desse vida a algumas inquietações sobre essa que é considerada por muitos como uma das maiores escritoras de nosso país de todos os tempos. É um susto ler Clarice. E corroborando com a ideia de susto, Clarice tem permanecido um mistério para críticos e leitores. Há um mundo surdo, silencioso e aterrorizante em seus escritos.

O que dizer de Macábea, potencializadora de teses sobre o indíviduo-nada, mas que encontra a redenção na morte? Ou de G.H, personagem anônima, filha dos grandes centros, constituidora dos aglomerados da burguesia, que vive uma crise de nada ser, mas que parece adquirir uma redenção catártica quando come uma barata, numa metamorfose à la Gregor Samsa (Kafka)? Clarice - repito - é um mistério. Pessoalmente, a escritora era tímida. Sua voz possuía um sotaque enviesado. Nascida na Ucrânia, veio para o Brasil com um ano de idade, fuginfo da perseguição bolchevique contra os judeus (1921). Morou em Maceió e no Recife. Depois se estabeleceu no Rio de Janeiro. Aos poucos se lança pela literatura. Foram mais de 30 anos intensos de escrita - romances, crônicas, cartas, contos, literatura infantil.

A percepção do texto clariceano é terrificante. Ela é a tradutora de uma linguagem incofessável que se esconde nos interstícios do ser - dela mesma e do outro. Diria que Clarice Lispector é a Virgínia Woolf brasileira. Clarice é a dona de casa que vive em meio ao caudal burguês. Criava os filhos, dava ordens à empregada, fazia compras, falava com os amigos ao telefone. Mas, a maior parte do tempo, debruçava-se sobre a máquina de escrever e redigia os seus textos densos dela mesma. É possível conhecê-la por trás do manto de tantos personagens - a maioria deles mulheres. É possível sentir o seu cheiro em cada descrição que faz dos personagens; suas inquietações, sua intimidade escondida por trás da seriedade.

Uma observação que fazemos quando lemos o seu texto é intuição de que ela está à procura da palavra que realizará o personagem. É como se a vida dependesse daquela fala, daquele sentido, daquela semântica para que a existência ganhasse significado. Mas o que se deseja não brota. Está fincado no chão estéril da vida, de onde nada nasce, a não ser o absurdo que se amplifica à medida que a percepção do personagem aumenta. O grito entalado no fundo do ser, a palavra que ribomba e que não quer sair cria uma espécie de mistificação. Em Clarice a palavra sussurra a sua verdade à vida escondida na bruma do cotidiano. Analisando por esse ponto de vista, é uma literatura que pensa e analisa do homem do nosso tempo. O homem urbano, acondicionado, acostumado e domesticado ao enlace diário de repetir comandos e que nunca pensa a respeito de si mesmo.

* Abaixo, o trecho de uma entrevista gravada com ela em 1977. Esta entrevista foi concedida ao jornalista Jaime Lerner. Clarice morreria naquele ano vitimada por um câncer que se alastrou em seu útero. A entrevista nos dá uma visão mais aproximada de quem era a escritora - embora esta estivesse um pouco combalida por causa da doença terrível que lhe roía as estranhas.

sábado, dezembro 10, 2011

“A morte de Deus” e o Natal sem religião

Por Enio Squeff

O poema de Machado de Assis em que ele pergunta se somos nós que mudamos ou se o Natal, parece anteceder a uma questão hoje corrente: a irreligiosidade da sociedade contemporânea. Émile Zola – que foi um dos primeiros críticos a elogiar os pintores impressionistas – achou de chamá-los de “realistas”: eles, de fato, romperam uma tradição do cristianismo, de pintarem o ideal, como seriam as cenas religiosas. Mesmo quando retratavam alguém, não raro, um Rubens, um Delacroix ou mesmo um Ingres, trataram de fazê-lo, tendo como pano de fundo, digamos, uma cena idealizada, ou antes, um fundo nenhum. Foi o que fez Charles Dickens. Em seu famoso conto de Natal (“Christmas Carol”), tratou de pôr fantasmas na mente culpada do empresário que maltrata seu empregado, a partir da descrição de um literal pesadelo.

O espectro, que arrasta correntes pela casa, e que o persegue no meio da noite, é claramente o demônio de sua consciência. Em seu poema, Machado de Assis não fala da questão do consumo que, em seu tempo, era muito precário em comparação com o que se vê hoje em dia. Mas ao detectar uma transformação (“Mudaria o Natal ou mudei eu”?), o escritor projeta a resposta que o mundo deu no futuro: o Natal, em si, já não é uma festa religiosa. Tudo indica que o que mudou foi o Natal.

Talvez a questão resida, de novo, no Papai Noel, um ícone de mentira, que sabemos ser de mentira, e que, por isso mesmo, não passa de um ícore. Na verdade, o personagem não tem nada de religioso: ele atravessa os ares com seu trenó, deixa presentes às crianças, mas não reivindica qualquer ligação com o além. Não é o Cristo da Manjedoura que o envia. Quando muito, talvez, sugira, pelas cores, a Coca-Cola: foi com o refrigerante que o Papai Noel apareceu na forma que tem hoje. O mais é a mistura: os sinos tocam em Belém “para o nosso bem”, etc e tal – mas os personagens da Manjedoura parecem resolutamente secundários, coadjuvantes quase. E para os chamados “crentes” – que na atualidade constituem mais de um terço dos religiosos do país- o Presépio sequer existe. Assim também nas representações públicas. No máximo, temos a parafernália das luzes que se enrolam nas árvores, ou que despencam dos edifícios como um espetáculo feérico – mas que parece ter mais a ver com o neon da publicidade do que com as cenas consagradas pela tradição – aquela que se estreita numa gruta, com o Menino, a Virgem, os pastores vindos ao longe – anjos luminosos, uma estrela guia, e as músicas ressoando desde a estratosfera.

Quando Nietszche disse que Deus estava morto, a reação alcançou todos os setores das religiões; a grita geral atingiu vários níveis e o próprio Nietszche foi anatemizado. Sua constatação, de que as religiões perdiam seus elos com a totalidade dos homens, a começar pela sua posição no Estado, nunca foi contestada pelos fatos. E o alarido que se seguiu a sua conclusão, fez muita gente contabilizar, não só os milagre – como os de Fátima, de Lourdes e outros -, mas todo um elenco de fatos extraordinários, os quais, entretanto, nem de longe parece terem tido o condão de ressuscitar Deus.

Evidentemente, existem os religiosos: o Papa ainda reza a Missa do Galo, os crentes em suas denominação cada vez mais numerosas (a contar pelo número de pastores “empreendedoristas”), continuam a erguer seus braços na saudação a Cristo Jesus e em seus “aleluias”. Algumas igrejas católicas esplendem em cores e luzes. Além do mais, há o islamismo. Dizer que Maomé já não tem Deus para ser seu último profeta, parece desconsiderar uma religião que cresceu desmesuradamente nos últimos anos, a ponto de os islâmicos serem, no mundo atual, em números, uma comunidade muito maior que a cristã. De fato, há aspectos de guerra religiosa na resposta que muitos muçulmanos dão às bombas dos EUA e da Otan, que negam, em princípio, a morte de Deus. No entanto, pode-se objetar que, ainda assim, soa inclusive para muitos seguidores do Profeta, quase uma regressão conceber a organização das sociedades em Estados Religiosos. No próprio Irã, aliás, há quem dê como em dias contados, a manutenção da predominância dos clérigos na condução do Estado. Lá, também Alá estaria morto.

A questão, contudo, não parece simples; e não é. Há anos, um religioso escreveu um livro sobre a arte sacra do nosso tempo. Defendia que ela existiria, a despeito da irreligiosidade desenfreada que paradoxalmente se seguiu à Segunda Guerra. Referia-se ao catolicismo e nomeava alguns artistas contemporâneos. Olivier Messiaen que morreu não faz muito, foi, realmente, um compositor que sempre se postou como católico. Escreveu obras textualmente, “para Jesus” e guardou-se de que sua fé era inquebrantável, o que não deixou de ser reafirmado até sua morte. Georges Rouault, pintor, um pouco mais velho que Messiaen, francês como ele, fez uma obra quase que inteiramente religiosa. Françoise Gilot, ex-mulher de Picasso, autora de um livro sobre o pintor, refere-se a Rouault como um artista, eminentemente, religioso. O próprio escritor inglês Graham Greene, morto há uns vintes anos, expôs o problema religioso no âmbito das questões existenciais prioritárias do nosso tempo. Mas, pelo fato de ter colocado a questão, justamente como “um problema”, não parece ter esmorecido a questão concreta de que, com ou sem “o problema”, Deus estaria, de fato, morto.

Pode-se, certamente, ler de muitas maneiras a afirmação (“aforismo”) de Nietzsche. A um homem convicto de sua fé – e há um sem número deles, inclusive entre grandes intelectuais e cientistas – a consideração seria ociosa, até contraditória. Teria de se a avaliar a questão com as devidas reservas: José Saramago, um decidido agnóstico, não imputou a Deus o “grande mal do mundo”? Como considerá-lo morto, se a cada homem-bomba no Iraque ou no Afeganistão, reacende-se a questão do martírio, que só se concebe na crença de uma fé inquebrantável? Realmente, é assim. Mas se torna cada vez mais difícil associar a Natal ao nascimento de Cristo. Ou melhor: existe muito pouco, na “maior festa da Cristandade” que conduza à conclusão de o Natal ser realmente uma festa cristã.

Claro, alguém dirá que é próprio do capitalismo não estreitar comemorações na religião. Complicado, realmente, vender certos produtos com as menções a Deus. Geladeiras e máquinas de lavar roupa, com as bênçãos do Manjedoura, são difíceis de engolir. Os religiosos que o digam.

Há as medalhinhas católicas e os dízimos protestantes, sem dúvida: todos são produtos vendidos ou comprados “em nome de Deus”. Os pagadores de promessa, que se reúnem em Aparecida, aumentam sempre, talvez não na mesma proporção de tempos atrás, mas são numeroso; só que, em todas as manifestações, o que nos identifica já não é a totalidade do ser religioso socialmente, senão a especificidade de o sermos, no âmbito de nossas respectivas igrejas e templos.

Parece ser, enfim, inelutável entre os homens, a existência de um sentimento religioso difuso. Mas já Deus é um traço subjetivo, que não se expõe na última análise das músicas, cantadas nos templos, que só têm de verdadeiramente religioso a invocação direta a Deus. Canta-se Deus em forma de rock, de música de alto consumo, mas justamente por ser também Deus um objeto de consumo. Ou seja, parece que Deus prescinde de uma música especial, de comportamentos que distingam os religiosos dos consumidores. Somos crentes para invocarmos Deus, mas não para nos alijarmos dos outros como uma característica especial.

Durante as perseguições religiosas na Roma antiga, a marca do cristão era uma espécie de divisor de águas: não havia a “mercadoria Deus”. Deve ser por Papai Noel mostrar-se tão importante, que se prescindem as ginásticas para não ofendermos ninguém, ao não invocarmos Deus justamente naquela que seria a marca da “maior festa da Cristandade”?

A pensar, certamente.

terça-feira, dezembro 06, 2011

Fausto, uma metáfora do humano

"Quem ama o dinheiro jamais dele se farta; e quem ama a abundância nunca se farta da renda... Todo o trabalho do homem é para a sua boca; e, contudo, nunca se satisfaz o seu apetite".

Eclesiastes 5.10; 6.7


O Fausto
de Goethe me causou uma impressão atordoante. Li-o sofregamente. Cada palavra proferida; cada sentença explanada, deixou-me com os cabelos arrepiados. Nunca havia lido algo tão direto, com tanta "felicidade metafórica". Impossível não enxergar nele possibilidades simbólicas; interpretações literárias vastas; intertextualidades extravagantes.

As cenas iniciais aturdem. O herói está angustiado. Profere palavras incensadas de agonia. Deseja o grande. Procura respostas para o desatino de sua existência. Um intelectual completamente perdido no niilismo da vida, na qual a filosofia, a ciência, a teologia (metafísica) e os saberes perderam completamente o sentido. Fausto utiliza palavras embriagadas de paixão. Nem mesmo um deus seria capaz de consolá-lo. Impossível não enxergar nisso uma metáfora da modernidade. Do homem que se perdeu em meio aos saberes. Às possibilidades científicas. Que mesmo tendo desenvolvido tecnologias inovadoras, parece não ter achado a resposta necessária para o aspecto nodal da vida.

Mefistófeles ou Mefisto, personificação do demônio, acaba fazendo um pacto com Fausto. O herói recebe a promessa de que teria as respostas necessárias e a sua existência seria coroada por uma torrente insufladora de peixão, técnica e um desejo extravagante pelo progresso. A promessa do diabo: "Nos dias que hão de vir posso logo mostrar-te/ O que homem nenhum no mundo pode ver". E mais: "Sentes sempre que és homem entre seres humanos./ Não penses que desejo, à força, te envolver/ Com a canalha vil que vive ao desabrigo; / Não sou tão importante, e não tenho poder;/ Se quiseres, porém, andar a sós comigo/ Teus passos vou guiar por mil trilhas da vida./ E essa é, para mim, tarefa apetecida./ Dar-te-ei assistência amistosa e agradável,/ Serei teu companheiro humilde e inseparável,/ Cumprirei meu dever com justo e extremo zelo,/ Serei teu servo enfim com máximo desvelo".

O que nos fascina no texto goethiano, resultado de mais de 60 anos de labor, é a pertinência arquetípica. A promessa de Mefisto é uma possibilidade para o arrojo, para o prazer, para o conforto. Fausto veria galáxias. Luzes. Colocar-se-ia acima dos demais homens. Caminharia por entre multidões e estaria nele a marca da distinção - o diabo seria o seu servo. Mas, o preço de tudo isso seria alto - a saber, a própria alma do herói. Fausto seria um homem oco. O seu ser não lhe pertenceria. O verniz (suas faculdades físicas) experimentaria o prazer, todavia em seu interior haveria o caos, a confluência do trágico infernal.

Sua relação com Margarida é fadada ao fracasso. A sua musa não foi capaz de dar, também, o que ele queria. Nota-se que ao fim da relação, Margarida também está esgotada. A moça pura, gentil, pobre, porém, honrada, é maculada pela maldição que persegue Fausto. A dor do herói se agudiza. Torna-se maior do que no princípio de suas inquirições. Fausto é arrastado para o inferno. A cena final é de uma tragicidade aterradora. Mefisto volta-se para Fausto e diz em tom senhorial: "Vem comigo!" E Goethe conclui: "[Mefistófeles] desaparece com Fausto".

Ao ler isso, não pude deixar de perceber o quanto Goethe refletiu sobre o ser humano nesta obra. Fausto é metáfora do homem fáustico. De uma maldição que orbita sobre o homem - a maldição do desejo, da ganância, do desejo de poder. Como nas palavras escritas por Marshall Berman, no excelente ensaio do livro Tudo que é sólido desmancha no ar: "A inquietação fáustica do homem na história mostra que o ser humano não se satisfaz com a simples satisfação de seus desejos conscientes" (BERMAN, 2007, p.99).

O homem moderno é a representação mais fidedigna do desejo fáustico. Ele fez um pacto com o progresso, com o capital, com um estilo de vida que o levará à tragédia. A cada dia que passa a sua Margarida, a Terra (natureza), sofre com as agressões, com a vilania, com a ganância expropriadora que mata. Os notíciários, os documentários dos canais especializados, as revistas científicas, jornalistas, intelectuais, organismos não governamentais e os próprios cientistas afinam o discurso quando o objetivo é apontar a falência do estilo de vida do homem moderno. A Terra chegou a um nível de esgotamento que não comporta mais o desejo pelo lucro, pelo poder, pelo acúmulo de capitais. A tecnologia, as viagens, o turismo, a possibilidade do consumo não trará a redenção ao homem. Muito pelo contrário, tem gerado uma coisificação, um embrutecimento da humana raça.

Assim como se deu com Fausto, o destino humano está fadado ao obscuro. Sua caminhada é trágica e, o destino, incerto. Um futuro abismal parece espreitar. O pacto com o progresso, com a ciência e com a tecnologia custará caro. Em menos de cem anos o resultado se mostrará fulminante e aterrador. O estilo de vida ("o Mefistófeles do homem moderno") cobrará sua conta e então será tarde demais. Pessimismo de minha parte? Não. Penso que não há outro destino para o homem, assim como não houve para Fausto.

Livros consultados:

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Companhia de Bolso: São Paulo. Companhia das Letras, 2007.

GOETHE, W. Fausto. Editora Nova Cultural. São Paulo, 2003.


sexta-feira, dezembro 02, 2011

Contra a Leitura

Tomei a liberdade de postar o texto abaixo - e que delícia de texto! Repleto de ironias, subtilezas e delicadezas finas. Dignas dos grandes textos. Um verdadeiro manual àquele que precisa - e deve - aprender a ler. Texto que exorciza a doença terrível do pedantismo. Do enfatuamento. Que nos ensina termos o direito de ler não ler. Ler é liberdade. A citação da frase conhecida de Schopenhauer me fez rir: "Há indivíduos que leram tanto que ficaram idiotas".

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Por José Ribamar Bessa Freire

– “Não se ofenda, professor, mas eu quero saber se o senhor bebeu, hoje, antes de vir para a universidade?”. A pergunta me foi feita dentro da sala, por uma aluna, chamada Luíza, depois que eu anunciei, convicto, o tema da aula: uma reflexão CONTRA a leitura. Perplexa, Luíza confessou sua profunda decepção. Afinal, a gente havia se conhecido anos antes, numa biblioteca comunitária criada pelo pedreiro Evando dos Santos, na garagem da casa dele, Vila da Penha, no Rio, durante um concurso de poesia no qual ela fora premiada. A partir de então, militamos juntos em prol do livro, participando de vários eventos. Por isso, achou que, agora, eu devia estar de porre.

Apresento aqui um resumo da aula que dei, para que os quatro fiéis leitores dessa coluna possam avaliar também meu estado etílico, já que eles podem ficar incomodados com a crítica à leitura, pois todos os domingos a exercitam aqui nesse espaço. Dessa forma, espero também provocar os participantes do Festival Literário Internacional da Floresta – o Flifloresta – cuja abertura ocorre amanhã, em Manaus. Um dos seus objetivos é justamente o de formar novos leitores. Para ler o quê? Como?

A paixão de ler

O discurso dominante reverencia o livro, como algo sagrado que transporta luz e saber. Por isso, quem defende a não-leitura é considerado herege ou, no mínimo, bêbado. A leitura é endeusada como o único caminho que conduz ao conhecimento. Quanto mais leitura, mais humanos somos. A ausência de leitura nos brutaliza. Mentira! Puro blá-blá-blá. A História mostra que essa moralização da leitura é falsa. Por inacreditável que pareça, muitos professores, editores e pais de família que proclamam as vantagens da leitura, raramente abrem um livro. Esse discurso é tão escandalosamente hipócrita, que dá vontade de esculhambá-lo, chutando o pau da barraca.

Qual é à crítica que faço ao ato de ler? É que como prática social, a leitura deixou de ser algo livre e prazeroso, para se tornar uma obrigação, que confere status. Virou uma atividade burocrática, cobrada pelo professor na escola, que em vez de estimular a fome, empurra goela abaixo do aluno comida de qualidade duvidosa. Assim, um escritor tão vital para nós como Machado de Assis acaba sendo odiado. A escola alfabetiza, mas raramente desperta o sabor da leitura. Se para aprender a falar os bebês tivessem que ir pra escola – meu Deus do céu! – mais da metade da população seria muda ou gaga.

Vivemos num país de forte tradição oral, que não tem o hábito coletivo da leitura. Aí, de vez em quando, Secretarias de Cultura e outros órgãos não-governamentais tentam compensar as falhas da escola, desenvolvendo, às vezes com boa intenção, campanhas inúteis e dispendiosas para promover a leitura, o que equivale a criar uma repartição pública ou uma empresa destinada a promover, por exemplo, o namoro e o beijo. O namoro precisa de promoção? Não. A gente namora porque é bom. E ponto.

Ler é que nem namorar, só tem sentido se fundamentado na liberdade, na indisciplina, na anarquia, na paixão. Querer domesticar essa paixão significa sua morte. O jornal O Globo tenta incentivar a leitura, através do projeto “Quem lê jornal sabe mais”. Sabe mesmo? Sabe o quê? Essas campanhas servem para estimular o preconceito in-su-por-tá-vel e quase racista desenvolvido por aqueles que sabem ler contra os que vivem fora do mundo do livro e da leitura, tratados como burros e inferiores. Desenvolve ainda um sentimento de culpa nas pessoas por não terem lido determinados livros.

O babaca alfabetizado

Afinal, quem lê sabe mais do que quem não lê? A leitura melhora a gente? Conversa fiada! Ler não faz ninguém melhor. A leitura em si não aperfeiçoa as pessoas, sobretudo as que se acham superiores só porque leram alguns livros. Se fosse verdade, não haveria tanta gente babaca, arrogante, pretensiosa e moralmente podre. George Bush, deputados, juízes, desembargadores, empresários – como o desalgemado Daniel Dantas – fazem parte do mundo da leitura e nem por isso merecem nossa admiração.

A leitura não cura nenhuma doença e pode até agravá-la. Quem é babaca, depois de ler fica ainda mais babaca. O mesmo acontece com os ridículos, os vaidosos, os frívolos, os pedantes, os corruptos, os bestinhas e os bostinhas. Nós somos aquilo que somos, independentemente da leitura. Ler não serve pra nada, é um vício, uma perdição, uma felicidade. O único motivo pelo qual alguém pode se interessar por um livro é a dimensão mágica de seu conteúdo, a perplexidade, o assombro, a fantasia e a interrogação diante dos enigmas do cotidiano da vida que a leitura pode suscitar em nós.

Existem leitores ávidos, cujas virtudes humanísticas são nulas. São ratos de biblioteca, não lêem para viver, vivem para ler. Não namoram, não furunfam, não jogam nem dominó nem conversa fora com amigos. Perderam o sentido da vida. Levam vidinha superficial, cheia de preconceitos, indignidade e irracionalidade. São injustos, egoístas, soberbos e babacóides. Outros, só porque leram cinco, dez ou cem livros, assumem secretarias de cultura e se acham “os in-te-lec-tuais”. Humilham quem não leu os cem livros que eles juram conhecer.

Por outro lado, todos nós conhecemos não-leitores, dignos e justos, que possuem qualidades morais, inteligência e sensibilidade. Sou amigo de um pajé guarani, da aldeia de Biguaçu (SC), que não quis ser alfabetizado, mas é um sábio, conhece tudo do mundo, da natureza e da espécie humana; quando fala, ilumina quem o escuta, como um poderoso farol. Não leu nenhum dos 4 milhões de livros da Biblioteca Nacional, mas é um poço de integridade, de sapiência e de reserva moral. Aliás, nem o maior devorador de livros consegue em toda sua vida ler 0,1% dos livros já editados. É por isso que a chave da leitura está na não-leitura.

A não-leitura

O filósofo alemão Schopenhauer escreveu no século XIX que livro ruim é veneno intelectual, que estraga o espírito. Livros ruins, escritos apenas com o objetivo de gerar dinheiro, além de inúteis, são prejudiciais, porque para ler um livro bom, a condição é não ler o ruim, já que a vida é curta, e o tempo e a energia são escassos. Quem vive para ler, perde a capacidade de pensar por conta própria, como quem sempre anda a cavalo acaba esquecendo como se anda a pé. “Leram até ficar estúpidos” – diz o filósofo, para quem a leitura, sem a não-leitura, paralisa o espírito, da mesma forma que o excesso de alimento ou o alimento inadequado prejudica o corpo. O importante não é comer, mas digerir, não é ler, mas ruminar.

Não abrir livros é sabedoria. A escola, porém, nos ensina a ler, mas não nos ensina a não-ler. No entanto, o segredo da leitura reside ai: na não-leitura, que não é uma atitude passiva, mas ativa. Não é ausência de leitura, mas uma atividade organizadora e seletiva da leitura, para não se deixar afogar ou deformar pelos livros.

Há alguns anos dei um curso para professores indígenas, no coração da floresta. Era final de outubro. Quando cheguei, a maloca estava toda embandeirada para comemorar o dia do professor. Num lugar onde era difícil encontrar papel, as bandeirolas haviam sido confeccionadas com páginas de livros enviados por órgãos governamentais. Eram todos absolutamente inúteis. Pensei, então, que esse havia sido o melhor destino dado àquele veneno letal.

O historiador carioca Marcelo Lemos, meu amigo, cujo sobrenome é uma (in) citação à leitura coletiva, me enviou os dez mandamentos redigidos por Daniel Pennac, contendo os direitos do leitor: 1. O direito de não ler; 2 – O direito de pular páginas; 3 – O direito de não terminar o livro; 4 – o direito de reler; 5 – o direito de ler qualquer coisa, inclusive o que é considerado ruim; 6 – o direito ao bovarismo, doença textualmente transmissível; 7 – O direito de ler em qualquer lugar, inclusive na privada; 8 – O direito de ler uma frase aqui e outra ali; 9 – O direito de ler em voz alta ou em voz baixa; 10 – O direito de calar sobre aquilo que lemos, porque nossas razões para ler são tão estranhas quanto nossas razões para viver e ninguém pode invadir nossa intimidade.

Se você dedicou preciosos minutos à leitura dessa coluna, percebeu que não estou bêbado, mas caio numa contradição. As idéias aqui expostas não existiriam sem a leitura de quatro livros abaixo mencionados. Não menciono, porém, a longa lista dos livros que deixei de ler. Só dois deles: “Presidentes da Academia Amazonense de Letras – 1918 a 2006” (Valer – Manaus, 2006) e “Titulares da Academia. Perfis Acadêmicos” (Manaus – 1997) ambos do mesmo autor, Robério dos Santos Pereira Braga. Como os novos leitores formados pela Flifloresta vão encarar esse tipo de livro?

P.S. – Ah, antes que me esqueça, a Luiza, excelente poeta, além de leitora crítica, depois entendeu que eu, naquele dia, havia bebido apenas os autores abaixo relacionados.

i) Arthur Schpenhauer (1851): Sobre livros e leitura.Tradução de Philippe Humblé e Walter Costa. Florianópolis. Paraula. 1993; ii) Pierre Bayard: Comment parler des livres que l´on n´a pas lus? Paris. Minuit. 2007; iii) Juan Domingo Arguelles: Que leen los que no leen? México. Paidos. 2003; iv) Michèle Petit: Lecturas: del espacio íntimo al espacio público. Mexico. Fondo de Cultura. 2001.


segunda-feira, novembro 28, 2011

Nietzsche e a religião


Rogério Miranda de Almeida

Todo aquele que se interrogar pela concepção de Friedrich Nietzsche com relação ao cristianismo e à religião em geral deve dar um passo a mais na sua interrogação e perguntar-se pela concepção que tem o filósofo dos valores que até então atravessaram a história da moral ocidental e a história de toda moral. Um passo a mais será ainda necessário na medida em que, para Nietzsche, o que realmente subjaz à criação e à destruição dos valores são as forças e as relações de forças que não cessam de se superar, de se recriar, de se repetir, de se renovar, de se excluir e de se incluir numa dinâmica recíproca que permeia, invade, domina e determina toda a realidade, todo o existir, todo o ser.

Com efeito, se existe um problema que acompanhou e obsedou o discípulo de Dioniso, esse foi o problema das forças e das relações de forças responsáveis pela criação e pela destruição, pela construção e pela demolição dos diferentes valores. Embora a vontade de potência só se encontre plena e explicitamente elaborada no terceiro e último período do filósofo – que, na minha leitura, começa com Aurora (1881) e se estende até os últimos escritos (1888) –, este conceito já se faz presente no primeiro período – dominado pelas análises em torno da tragédia e da cultura grega em geral – e também no segundo, com Humano, Demasiado Humano I e II (1878-1880), cuja característica principal é o deslocamento de acento para um determinado tipo de moral, a moral utilitária.

Dos três conceitos básicos de Nietzsche – a vontade de potência, o niilismo e o eterno retorno –, foram os dois primeiros que principalmente pontilharam e fundamentalmente marcaram o desenrolar e a dinâmica de seu pensamento e de sua escrita. O niilismo, que é essencialmente inerente à vontade de potência, é ambíguo na medida em que se desdobra como uma contínua destruição dos antigos valores e, simultaneamente, como uma construção de novas e imprevisíveis interpretações, valorações, significações. Recriações. Não há, pois, um demolir para depois construir; há antes uma aniquilação e uma reedificação que se fazem concomitantemente, simultaneamente, na repetição e na diferença, na satisfação e na insatisfação, no gozar e no querer-mais.

Convém ressaltar que as religiões, e o cristianismo em particular, não são sinônimos de niilismo, embora, na perspectiva de Nietzsche, não se possa conceber uma religião que não moralize e, consequentemente, não encerre uma tábua ou uma hierarquia de valores. A religião cristã e as religiões orientais não subsumem o niilismo, que é um movimento muito mais amplo e do qual, enquanto forças niilistas da decadência, estas se apresentam como expressões ou manifestações essenciais. Não se pode pensar na concepção nietzschiana do judeu-cristianismo e do budismo sem vinculá-la à sua visão da religião grega no tempo da tragédia e à crítica que, já na sua primeira fase, ele endereçara à filosofia de Schopenhauer.

Os deuses do Olimpo e o Deus judaico-cristão

Com efeito, já nos seus primeiros escritos, Nietzsche denuncia o fundo moral e as relações de forças a ele subjacentes que disputam entre si a potência sob os mais variados disfarces e os mais sublimes, nobres, elevados e espirituais atributos. Segundo Nietzsche, há basicamente dois tipos de forças: as forças que afirmam e enaltecem a vida e aquelas que, ao contrário, a denigrem, depreciam, caluniam e rebaixam. Eis a razão pela qual, já na Visão Dionisíaca do Mundo (1870) – escrito póstumo que data de dois anos antes da publicação do Nascimento da Tragédia –, o filósofo fazia ressaltar a superioridade da religião grega sobre as demais religiões, porquanto os deuses gregos que descrevem Homero, Hesíodo e Epicuro não são divindades que exprimem a indigência, a ascese ou o dever, mas, antes, criaturas que apontam para um excesso de força, de seiva e, consequentemente, para tudo aquilo que a vida tem de belo, de bom, de mau, de transbordante, de afirmativo e cruel. Os artistas que forjaram esses deuses eram, pois, senhores de uma fantasia genial que, projetando suas próprias imagens sobre o céu azul da Grécia, construíram um Olimpo onde essas formas podiam respirar o triunfo da potência juntamente com um sentimento de exuberância e justificação da existência e do mundo.

Curiosamente, num fragmento póstumo da mesma época – fim de 1869, primavera de 1870 –, Nietzsche analisa essa mesma problemática ao chamar a atenção para a figura do asceta cristão que, ao contrário do artista heleno, encarna o tipo do negador e destruidor da natureza. Para o autor de , as direções ascéticas são o que há de mais hostil e oposto à natureza e à fertilidade que esta encerra. No seu intuito e no seu trabalho subterrâneo de tudo negar e tudo emendar, elas já revelam o que realmente são: frutos enfezados e estiolados que a própria natureza se encarregou de rejeitar, porquanto ela não quer propagar uma raça ou uma espécie de depauperados e enfraquecidos. “O cristianismo só poderia triunfar num mundo degenerado”, diz Nietzsche.

A partir dessas considerações, súbito se adivinha: os deuses se apresentam para Nietzsche como reflexos da exuberância ou da indigência de um povo. De sorte que, quanto mais potente e aguerrida for uma nação, tanto mais exibirão os seus deuses as marcas da guerra, da conquista e do orgulho nacional. Inversamente, os deuses dos “bons”, dos falidos e dos fracos não terão senão sentimentos de vingança, de rancor e ressentimento contra tudo aquilo que eleva, transfigura e diz “sim” à vida. É o que Nietzsche já mostrava da maneira mais enfática no escrito de transição, Humano, Demasiado Humano I (1878). É o que ele também dirá num de seus últimos textos, O Anticristo, redigido no final de 1888 e publicado em 1895.

No parágrafo 114 de Humano, Demasiado Humano, que tem sintomaticamente por título “O Não-grego no Cristianismo”, o filósofo declara que os helenos não olhavam para os deuses homéricos como seres acima deles próprios, à maneira de senhores; não se viam tampouco abaixo dos deuses, como servos, ao modo dos judeus. “Viam como que apenas a imagem em espelho dos exemplares de sua própria casta que melhor vingaram; portanto, um ideal, não um contrário de sua própria essência.” Onde, porém, os deuses olímpicos se eclipsavam, a vida grega também se revelava mais sombria, mais inquieta e ameaçada de arruinar-se. “O cristianismo, por sua vez” – conclui o filósofo –, “esmagou e alquebrou completamente o homem, e o mergulhou como que em um profundo lamaçal.”

No Anticristo, Nietzsche verá essa mesma dialética em ação no seio do próprio judaísmo, na medida em que ele considera a época dos reis o período mais rico, mais próspero e potente da história de Israel. Consequentemente, Javé era a manifestação da consciência que este povo possuía da sua própria soberania, da sua força e alegria de viver. Portanto, através de Javé o povo esperava vitória e libertação; por meio dele depositavam confiança na natureza para que esta lhes concedesse aquilo de que mais necessitavam: chuva e uma colheita abundante. No entanto, essa época também devia chegar a um fim, ao qual Nietzsche atribui três causas principais: a anarquia interior, a ameaça assíria do exterior e a ascensão da classe sacerdotal ao poder. Gradualmente, portanto, o Deus de Israel, que até então refletia o orgulho e o amor-próprio de seu povo, viu-se reduzido a um Deus condicionado e vinculado a preceitos morais: toda felicidade era vista como uma retribuição pela obediência a Javé; todo infortúnio era, ao invés, recebido como uma punição pela desobediência a ele infligida.

Se esta é, pois, uma das perspectivas a partir das quais Nietzsche analisa a religião dos gregos e aquela que brotou do solo e do povo judeu, como então ele considera o budismo e a sua relação com a filosofia de Schopenhauer?

Schopenhauer, a tragédia e a negaçãobudista da vontade

Na época em que Nietzsche redigia O Nascimento da Tragédia – publicado em janeiro de 1872 –, ele se achava sob a quase total influência de Schopenhauer. Assim, para o discípulo de Dioniso, a sabedoria trágica reproduzia, por meio da ilusão apolínea e da música dionisíaca, a mais íntima essência do mundo, da natureza, dos homens, da vontade ou, em suma, do Uno originário. No que diz respeito especificamente à música dionisíaca, esta se apresentava como um espelho sobre o qual se refletia a própria vontade universal, que nos chega como a verdade eterna ou, mais exatamente, como a verdade que jorra do fundo ou do núcleo do Uno originário.

Sem embargo, na própria obra O Nascimento da Tragédia – e mesmo em alguns textos que a preludiam –, já se vê desenhar uma tomada de posição crítica vis-à-vis de Schopenhauer. E esta posição só tenderia a acentuar-se à medida que Nietzsche fosse também se distanciando do autor de O Mundo Como Vontade e Representação. Destarte, na seção 7 daquela obra, Nietzsche critica Schopenhauer justamente naquilo que o filósofo tem de comum com o budismo: a resignação e a negação da vontade diante do sofrimento que acarreta todo desejo. Ora, na perspectiva do discípulo de Dioniso, a consolação metafísica que suscita a tragédia, e que se encarna no coro satírico, é toda ela entretecida de gozo, o gozo na sua potência indestrutível que afirma a vida, apesar do caráter mutável do mundo fenomênico. Por conseguinte, o heleno profundo que o coro vem consolar – e que lança seu olhar sobre as forças demolidoras da natureza – corre ele também o risco de “aspirar a uma negação budística da vontade”. No entanto, a arte vem em seu socorro para redimi-lo, mas, “pela arte, é a própria vida que o redime para si mesma”.

Num fragmento póstumo do verão-outono de 1884, que faz parte de seu terceiro e último período, Nietzsche se mostrará ainda mais incisivo com relação às forças niilistas da decadência, que, por natureza, são negadoras da vida e de tudo aquilo que ela tem de fértil, de belo, de abundante, de potente, de tenso, de deleitoso e sensual. Com efeito, nada repugna mais a Nietzsche do que uma religião cuja moral recomenda a domesticação dos instintos e a supressão do prazer. Esta é “uma medida de emergência tomada por naturezas que não conhecem o critério da medida e que não têm outra escolha senão a de se tornarem libertinos e porcos, ou então ascetas”. Essas naturezas – continua o filósofo – encontraram no cristianismo e no budismo um modo de pensar que é, no mais alto grau, adaptado a toda a escória dos decadentes, dos doentes e malogrados da existência. Pode-se, pois, perdoar-lhes o fato de denegrirem um mundo onde foram malsucedidos. “Mas faz parte da nossa sabedoria considerar essas doutrinas e religiões como grandes manicômios e casas de reclusão.”

Em Para Além de Bem e Mal (1886), parágrafo 56, Nietzsche defenderá uma reflexão aprofundada sobre o pessimismo livre “da estreiteza e da simplicidade semicristã e semialemã” que, segundo ele, se exprimiram por último na filosofia de Schopenhauer. Assim, prossegue o filósofo, todo aquele que tiver lançado um olhar nos abismos do pensamento mais radicalmente negador – um olhar “para além de bem e mal e não mais, como Buda e Schopenhauer, na órbita da moral e de sua ilusão” – chegará talvez a abraçar um ideal totalmente oposto: o ideal do homem mais generoso, mais exuberante e mais afirmativo que possa existir.

Ora, conquanto o problema central da filosofia de Nietzsche esteja nas forças e nas relações de forças que não cessam de se superar e de se recriar, retorna inevitavelmente a questão: não seriam justificados todos os seus ataques contra a religião, ou as religiões, justamente por elas se apresentarem, na sua perspectiva, como as manifestações essenciais das forças niilistas da decadência?