sábado, outubro 15, 2016

"O mágico de Oz" (1939), de Victor Fleming

Fiquei durante muito tempo com intenções de assistir ao filme O mágico de Oz. Fi-lo ontem à noite. Desde então, não consigo parar de pensar sobre o filme. A princípio, a produção não parece ter nada de especial por dois motivos: (1) por ser um filme aparentemente datado com recursos técnicos que chamaram bastante atenção à época do lançamento; (2) é uma obra baseado em uma história infantil. Claro, neste segundo ponto a tese não se sustenta em sua fragilidade, pois há obras com feições infantis que acabam por se transformar em material para adultos também. É o caso de O pequeno príncipe, As crônicas de Nárnia ou Alice no país das maravilhas

O mágico de Oz é um filme que serve como alegoria para bastantes interpretações: religiosa, política, moral, filosófica etc. A história tem como personagem principal a menina Dorothy, uma órfã que mora com a tia em uma fazenda. Ela enfrenta os questionamentos e contradições próprios às crianças de sua idade. Em dado momento, os moradores da fazenda são surpreendidos por uma tempestade. Todos conseguem se abrigar, menos Dorothy e seu cãozinho (Totó). Procurando uma lugar para se proteger da tempestade, a jovem é atingida por uma janela que se desprende com a força do vento. Desmaia. Aos poucos, numa espécie de sonho, Dorothy é levada para o mundo mágico de Oz.

Lá se dão fatos extraordinários. A primeira diferença que se nota é o mundo colorido. Enquanto estava na fazenda, a cor predominante é o ocre, uma variação do marrom. No mundo de Oz as cores são vivas, como se esse mundo de lá fosse mais expressivo e realista que o mundo em que Dorothy vivia. A casa trazida pela tempestade cai em cima da bruxa do leste e liberta os pequenos munchkins dos feitiços maléficos da antagonista. A personagem é ameaçada pela irmã da bruxa do leste, ou seja, a bruxa do oeste. Observa-se com isso uma relação horizontal, representando os poderes terrenos. Por sua vez, a bruxa do norte, representa o bem e o caminho da bondade, da espiritualidade, da pureza. A jornada de Dorothy começa em uma espiral por caminhos de tijolos cor de ouro. Por sua vez, a espiral representa o furacão que a trouxera. A bruxa boa (do Norte) dá a missão para que a menina procure o mágico que vive em um castelo feito de esmeralda. Isso permitiria Dorothy voltar para casa.

Em sua viagem, a personagem encontra três importantes figuras: o Espantalho, que deseja um cérebro; o Homem de Lata, que deseja um coração; e um Leão covarde, que deseja coragem. Os três são convencidos por Dorothy a irem ao castelo do mágico. Lá eles poderão receber o que lhes falta.

Não pretendo continuar os detalhes, mas o que fica é uma obra polifônica, capaz de enfeitiçar pela qualidade. O filme representa um verdadeiro salto qualitativo na indústria cinematográfica de Hollywood. Firmou um tipo de qualidade plástica que ficou como modelo para muitos cineastas.

sexta-feira, outubro 14, 2016

"Recordações do Escrivão Isaías Caminha", Lima Barreto e o Brasil

"Na redação era assim: escrevia-se, mediante ordem do diretor, hoje contra e amanhã a favor", p. 103

Lima Barreto é um dos mais importantes escritores brasileiros. Conhecer a sua obra e a sua vida gera uma admiração e, ao mesmo tempo, um senso de solidariedade com essa incrível personagem que descreveu com imensa sensatez as contradições de um país desigual e preconceituoso como é o Brasil. Lima é um brasileiro. Era gente do povo. Identificava-se com ele. Tinha a sua cor e sofreu como este mesmo povo. Sua inteligência e argúcia foram armas que permitiram que tivéssemos uma fotografia mais viva e realista da sociedade brasileira do início do século XX, na chamada República Velha. 

A literatura de Lima Barreto não está circunscrita ao seu tempo. É uma reflexão atemporal. Nela enxergamos as mesmas vicissitudes sociais que até hoje atrasam o Brasil. Curioso é perceber que após cem anos da sua vida e da escrita dos seus textos, Lima parece ainda está entre nós. É como se tivéssemos um retratista, um cronista a falar da política, da economia, do jogo ardiloso dos jornais, sempre a construir narrativas que ludibriam o povo e favorecem os ricos. 

Pois é seguindo esse impulso que o seu primeiro livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha é escrito. Nesta obra, Lima procura "cutucar" a vaidade daqueles que mandam no país, criticando o jogo de aparências que lhes é próprio. O autor narra a história de Isaías Caminha, um jovem sonhador que sai do Espírito Santo com destino ao Rio de Janeiro para tentar a vida. Isaías ambiciona tornar-se "doutor". (Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos..." Ou: "Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais, quantos privilégios, esse título dava! Podia ter dois e mais empregos apesar da Constituição; teria direito à prisão especial e não precisava saber nada"). Observe a crítica afiada do autor - e ainda bastante atual.

Vem sozinho. Não conhece ninguém na nova cidade. Deslumbra-se com as maravilhas da Capital Federal. Mas, aos poucos descortina-se sobre ele a realidade. O dinheiro acaba. Começa a passar fome. Perambula pela cidade. É confundido com um ladrão. Procura emprego. Não logra êxito. Quando a chance parece acenar-lhe, o dono do estabelecimento - um padeiro - não o aceita por causa da cor. Isaías experimenta a criminosa indiferença e o preconceito de uma sociedade que não acertou contas com a escravidão e que enxerga nos negros e seus descendentes uma condição inferiorizante. 

Apesar dos muitos reveses, Isaías acaba como "foca" de jornal, uma profissão subalterna. Mas é ali que ele observa os tipos mais finórios de uma sociedade atrasada e subserviente às elites europeias. O Jornal é O Globo, uma criação fictícia. Lima dirigia as suas críticas ao poderoso Correio da Manhã, o jornal mais influente da época. A narrativa, a partir desse ponto, torna-se um estudo do comportamento humano e social. Enxergamos a crítica feroz de Lima na pessoa de Isaías. São invectivas ácidas, acerbas; flechas saídas de um braço retesado e com a capacidade certeira. 

O autor toca em um dos pontos mais sensíveis da história republicana - o poder que a mídia exerce. A crítica suscitada é atual em sua problemática, pois a mídia continua a exercer um poder ainda bastante representativo no Brasil. Ela alimenta-se do sensacionalismo e sua atuação está assentada na violação à ética. O compromisso dos donos de mídia, ainda continua sendo em causa própria sob a conivência do poder público. É só observar como os acontecimentos políticos são tratados no nosso país. Emissoras são capazes de colocar e retirar presidentes. Robustecer a imagem de determinadas figuras e linchá-las diuturnamente a fim de que caiam em desgraça perante a opinião pública. Dois casos bastante emblemáticos podem ser citados. As duas deposições de presidentes da República que tivemos, a primeira em 1992 (Fernando Collor) e, a segunda, em 2016 (Dilma Rousseff), tiveram necessariamente a interferência da mídia na compreensão da sociedade; no modo como as opiniões são construídas.

Ou seja, nota-se que a crítica de Lima ainda continua bastante atual nesse sentido. O jogo hegemônico da mídia é uma arma dos poderosos para se perpetuarem no controle da sociedade. Caso curioso acontece nas Recordações. Diz Lima pro meio da observação de Isaías, que houve uma manifestação incitada pelo poderoso veículo de comunicação. O povo foi insuflado à indignação. Tratava-se de uma ação cega, "improvisada", "sem fisionomia", nas palavras do próprio escritor.

No jornal exultava-se. As vitórias do povo tinham hinos de vitórias da pátria. Exagerava-se, mentia-se, para se exaltar a população. Em tal lugar, a polícia foi repelida; em tal outro, recusou-se a atirar sobre o povo. Eu não fui para casa, dormi pelos cantos da redação e assisti à tiragem do jornal: tinha aumentado cinco mil exemplares. (p.144)

O "povo", essa designação abstrata e imponderável, havia sido envenenado, manipulado, pelas intenções secundárias do operadores da redação. A crítica mordaz de Lima contra o poderoso jornal e a pessoa do seu proprietário, Edmundo Bittencourt, rendeu a execração do autor. O poderoso "barão" da mídia proibiu que o nome de Lima fosse citado sobre qualquer pretexto naquele veículo comunicativo. Essa injunção acabou sendo acatada pelos demais jornais cariocas. Isso acabou por impedir a descoberta do talento do autor de O triste fim de Policarpo Quaresma. Um dos sujeitos mais conscientes da realidade brasileira do início do século experimentou aquilo que criticou. Os jornais possuem um poder terrível.

As dificuldades impostas, fizeram com Lima publicasse primeiramente as Recordações em Portugal. As portas haviam sido fechadas do lado de cá. No decorrer dos anos, o autor experimentou uma grande dificuldade para inserir os textos no cenário literário. Abandonava-se o autor pela crítica certeira, pela origem, pela cor e por uma suposta inabilidade para com a escrita. Sabe-se que isso é uma grande inverdade. Lima soube dar expressão a uma literatura modernista em sentido pleno. O autor já problematizava o país antes mesmo que o regionalistas de trinta o fizessem. É nesse sentido que o carioca mantém a sua atualidade e o seu poder penetrante na análise.

Assim, ler o Lima é descobrir o Brasil. É identificar-se com o drama brasileiro. Perceber o quanto somos tacanhos. O nosso atraso crônico. A arrogância, o preconceito e o autoritarismo de nossas elites.

Por esses dias, estou lendo Os bruzundangas, outra obra que revela o Brasil.