segunda-feira, maio 23, 2022

Os Sertões, de Euclides da Cunha, algumas breves palavras

 “Tinha nos braços finos uma menina, neta, bisneta, tataraneta talvez. E essa criança horrorizava. A sua face esquerda fora arrancada, havia tempos, por um estilhaço de granada; de sorte que os ossos dos maxilares se destacavam alvíssimos, entre os bordos vermelhos da ferida já cicatrizada. A face direita sorria. E era apavorante aquele riso incompleto e dolorosíssimo aformoseando uma face e extinguindo-se repentinamente na outra, no vácuo de uma gilvaz”.

 

                “Os Sertões” é um colossal livro produzido por circunstâncias extremadas e pela genialidade de um brasileiro que conseguiu enxergar o nosso atraso e as nossas injustiças. Concluí, embasbacado, a leitura do desafiante livro no mês de fevereiro. Somente agora consegui escrever algumas magras linhas para assinalar as minhas impressões. Havia tentado em duas ocasiões realizar a leitura da obra; reunir esforços para finalizar o projeto. Não consegui. Desisti nas primeiras páginas. O livro escrito por Euclides Cunha exige paciência, disciplina e uma vontade indômita para vencê-lo. É preciso ficar de pé, com a espinha ereta para encará-lo. Quem se intimida nas primeiras páginas, acaba por se amofinar e acaba colocando a obra a um canto.

                A sua divisão interna – A terra, O homem e A luta, respectivamente – parece surgir para impor obstáculos.  A primeira parte é repleta por uma linguagem pejada por dificuldades; por termos técnicos – da geologia, da botânica, da climatologia. Euclides faz uma escrutinadora varredura pela região nordestina e, de forma pormenorizada, pela região agreste da Bahia, onde se deu o conflito entre os rudes sertanejos contra as forças da recém-criada República. Parece um teste de resistência. Todavia, algo curioso acontece: após nos acostumarmos à paisagem dura, empertigada, da estética euclidiana, ganhamos um vasto mundo de belezas, de sinuosidades.

                Euclides ao escrever o seu livro segue um rigoroso método. Formado pelo arrojo acadêmico das ciências do século XIX, Euclides segue o determinismo taineano.  Segundo o filósofo francês Hippolyte Taine, para se fazer história, era necessário entender o homem à luz de três fatores: o meio ambiente, a raça e o momento histórico. O método taineano foi revolucionário. Na França, escritores como Maupassant e Zola foram impregnados pelo seu pensamento.

                Euclides da Cunha teve formação militar. Era um engenheiro. Seu rigor científico-matemático era imensamente aguçado. O escritor fazia parte de uma corrente de jovens intelectuais republicanos. Um agudo observador das transformações políticas do país, mas assentado numa sólida formação positivista. Euclides também se enveredou pelo jornalismo. Acompanhou à distância o conflito. Havia, no Centro-Sul, uma série de miragens sobre o que estava acontecendo no interior do país. Preconceitos. Caricaturas. Os jornais noticiavam que o grupo de Antonio Conselheiro procurava reinstalar a Monarquia, o que constituía uma afronta à República; às lideranças políticas e aristocráticas que haviam destituído o imperador.

Euclides da Cunha

                Por sua vez, no interior da Bahia surgira o mal-arranjado arraial, liderado pela misteriosa figura de Antônio Conselheiro, um andarilho que havia conseguido aglutinar em torno de si uma massa de sertanejos supersticiosos e necessitados. Nascido no Ceará, Conselheiro possuía as prerrogativas de profeta para o povo. Sua vida tinha sido até o estabelecimento em Canudos, uma ciranda de eventos de desencontrados. Havia exercido diversas profissões. Até que, após descobrir a traição da sua companheira, decide começar uma marcha messiânica pelos sertões. Peregrina pelo interior; passa por pequenas e desassistidas cidades. Prega para as populações incultas. Procura embelezar os cemitérios. Sua mensagem estava repleta por um messianismo escatológico. Até que se estabelece na fazenda Monte Santo, às margens do rio Vaza-Barris, na região caatingosa do sertão baiano.  Uma massa considerável segue seus enigmáticos ensinamentos. Euclides afirma em estilo seco como lhe é tão peculiar sobre o Conselheiro: “E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até os ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão em que se apoia o passado tardo dos peregrinos...”

                Euclides descreve a biografia de Conselheiro na segunda parte do livro. É nessa sessão do livro que ele procura apresentar o sertanejo. É nela que encontramos a famosa frase: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Na segunda parte, Euclides procura levar à frente o empreendimento taineano abordando a perspectiva de raça, aplicando os conhecimentos da ciência da época. Segundo ele, o sertanejo estava fadado ao desaparecimento.

Acontece que o sucesso do arraial contrariou muitos interesses. Afinal de contas, muitos sertanejos abandonaram fazendas de coronéis mandonistas da região para acreditar nessa nova Canaã que havia surgido no meio do inclemente sol da região tórrida. Se não há ninguém para trabalhar, para explorar, o que fazer? O medo infundado era disseminado. As notícias tumultuadas por uma cortina de desencontros informativos, criavam especulações variadas tanto local, como nacionalmente. Havia um solerte perigo naquela chusma de sertanejos maltrapilhos. Certamente, que poderiam trazer perigo à jovem e promissora República – era o que diziam com a finalidade de criar um factoide contra os conselheiristas.

Vista do Arraial

Três expedições haviam, desde o final do ano de 1896, tentado debelar de uma vez por todas o Arraial de Canudos. De forma inexplicável, os nordestinos resistiram bravamente.  A tenacidade com que lutavam demonstrava que os sertanejos estavam dispostos a qualquer custo defender Canudos. Havia uma crença de que estavam lutando por algo que era sagrado. Caso não fossem perturbados ou acossados, certamente teriam impelido suas vidas; plantado suas roças; criado seus filhos e filhas sem nenhuma preocupação com os destinos da vida política do país. A famosa questão do Conselheiro acerca do casamento e das novas leis da República, eram mais uma superstição do que uma causa militante pelos quais se tornava possível lutar.

Acontece que isso serviu de estopim para criar uma comoção nacional em torno da questão Canudos. Após a derrota da Terceira Expedição e a morte do generalíssimo Moreira César, o corta cabeças, famoso pela personalidade sanguínea e a humilhação pela qual passara os soldados, foi responsável por alargar ainda mais o preconceito da opinião pública do Centro-Sul contra os mais de vinte mil sertanejos que formavam o tecido humano de Canudos. Os jornais veiculavam especulações dia e noite. Disseminam preconceitos e desinformações. O próprio Euclides enquanto estava à distância, tinha a percepção de que aqueles rudes sertanejos precisavam aprender uma lição dada pela República. Não era possível que beatos ignorantes comprometessem o progresso. Como o próprio Euclides afirma: “O sertanejo defendia o lar invadido, nada mais”.

Euclides segue para Canudos junto com a Quarta Expedição, capitaneada pelo ardiloso general Arthur Oscar, um veterano de guerra, que fora incumbido pelo ministro da guerra e pelo presidente da República a fim de que pusesse fim à cidade “monstruosa”. Euclides chega à Canudos em agosto de 1897, momento em que o conflito ganhava contornos dramáticos. Os sobreviventes do massacre estavam esfaimados, feridos, mutilados ou mortos dentro das casas, que haviam se tornado em jazigos de barro. O escritor ficou por pouco mais de um mês no ambiente do conflito. Assusta saber que nesse espaço de tempo, ele tenha se apropriado de impressões tão fundas ao ponto de derramá-las em um livro como “Os Sertões”, que somente seria escrito cinco anos após o conflito, no interior de São Paulo.

O cronista enviado pelo O Estado de São Paulo deixou o espaço da guerra em 3 de outubro de 1897, dois dias antes da derrocada completa de Canudos. Ele mesmo havia conseguido transitar pelas ruelas estreitas e mal planejadas da cidade.  Um “dédalo desesperador de becos estreitíssimos”, foi a categórica descrição utilizada por ele após ter caminhado em meio ao caos de destruição aos quais cidade havia sido submetida.

O escritor presenciou um quadro completamente diferente daquele que era mostrado pelos órgãos oficiais e pela imprensa da época. Não havia revolucionários revoltos; um exército disposto a pôr abaixo a República. Muito pelo contrário. Euclides estava diante de velhos carcomidos pela necessidade. Crianças feridas. Homens gastos que se equilibravam sofrivelmente, trôpegos, espreitados pelas tropas federais e pelas aves carniceiras. Nas palavras de Euclides: “Os feridos chegavam em estado miserando. Prolongavam pelas ruas da cidade aquela onda repulsiva de trapos e carcaças, que vinham rolando pelas veredas sertanejas o refluxo repugnante da campanha”.

Na visão de Euclides, a Campanha de Canudos havia mostrado uma face injusta e covarde da chamada civilização contra os ditos incivilizados, contra os inviabilizados. No trecho de abertura da obra ele enuncia em três reveladores parágrafos:

“Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.

E, foi, na significação integral da palavra, um crime.

Denunciemo-lo”.

O escritor apresenta assim, no início, a sua posição. Esclarece o que o leitor vai encontrar pela frente no seu caudaloso e denso texto. Sim. Houve um crime. Uma das páginas mais bárbaras da história do país. As forças Estado exterminaram mais de 25 mil brasileiros sob a conivência da letargia de uma sociedade cega e preconceituosa. De um país que não se conhecia e que continua a não se conhecer.

“Os Sertões” é uma obra que possui muitos ecos. Pode ser enquadrado, por causa de seu estilo duro e torrencial sob vários pontos de vista – estudo historiográfico, antropológico, sociológico etc. É importante apontar que ele possui a força de uma epopeia. Constitui, assim, a epopeia trágica que representa as relações que o Estado Brasileiro estabelece com parcelas consideráveis de seus pobres e desassistidos.  O texto euclidiano é um libelo contra um país violento e ignorante; um país imenso, miscigenado, conduzido por uma das elites mais mesquinhas do mundo. Um país cujas lideranças são subservientes aos interesses internacionais, mas que possui um apetite voraz contra “os de baixo”.  Um país que não se entende; que não ressignifica a própria história.

“Os Sertões” é um livro obrigatório. Certamente, uma das leituras mais importantes da minha vida.

terça-feira, maio 03, 2022

Luiz Gama, um brasileiro necessário

 


                Ontem, eu tive o grato privilégio de assistir ao filme “Doutor Gama”, do diretor Jeferson De, baseado na vida do grande, do enorme, do imenso Luiz Gama. Gama é um dos brasileiros mais brilhantes de nossa história. Apesar de sua importância para entendermos um pouco mais das desigualdades oriundas do racismo, do preconceito e do papel do negro na sociedade brasileiro, confesso que passei a ter conhecimento sobre a sua importância, bem como da sua obra, apenas recentemente. Foi em um vídeo de Silvio Almeida, autor de “Racismo Estrutural”, que escutei o seu nome. Fiquei curioso. Pesquisei. Encontrei referências à sua contribuição.

                Luiz Gama nasceu no estado da Bahia em 1830. Era filho de uma escrava livre, alfabetizada, que teve um papel importante nos movimentos revoltosos da Bahia, principalmente a Revolta dos Maleses. O pai de Luiz era português. Aos dez anos, ficou sem a mãe. E acabou sendo vendido como escravo pelo pai como pagamento por uma dívida de jogo. De Salvador, ele foi levado para o Rio de Janeiro e, logo em seguida, para São Paulo. No estado, foi comprado por um alferes, que o levou para o interior. Era um jovem de inteligência rara. Aos dezessete anos, conheceu o estudante de Direito Antônio Rodrigues do Prado Junior, que lhe ensinou o alfabeto. E, logo em seguida, apresentou-lhe as letras. Foi a partir daí, que Gama galgou a construção de uma reputação, pois se tornou um aplicado leitor e estudioso.

                Quando analisamos sua formação (completamente autodidata), vemos o quanto a sua inteligência era destacada. Tornou-se um poderoso orador, escritor de burilados poemas e um advogado reconhecido pela diligência. Silvio Almeida afirma que Gama está entre os grandes juristas da história do país. Na função de advogado, Gama ficou famoso por realizar o enfrentamento na luta abolicionista. Há indícios de que tenha conseguido libertar mais de quinhentos escravos. Em um país de analfabetos, constituído por uma grande massa de escravos, Gama destacava-se como um intelectual negro. Provocava burburinho por onde passava.

                No censo de 1872 (disponível no site da Fundação Palmares), constatou-se a existência de 10 milhões de habitantes no país. Os escravos constituíam pouco mais de 15% desse total. 58% dos habitantes do país se declaravam pretos ou pardos, o que cria uma configuração para a sociedade da época. Estima-se que ao longo de mais de 300 anos, cerca de 4,8 milhões de escravos foram trazidos ao país. Esses números, a relação violenta estabelecida pelas instituições e pela sociedade dirigida aos escravos, formaram um perfil da própria sociabilidade brasileira. Outro elemento dramático diz respeito ao fato de que o Brasil foi o último país das Américas a abolir o processo de escravidão, após a luta abolicionista e a pressão da grande potência capitalista da época, a Inglaterra.

                O filme demonstra como Gama observava a condição do escravo no Brasil, tratado como um bicho, um objeto, a propriedade de alguém. O escravo ficava a mercê dos desejos do seu senhor. A sociedade aristocrática da época, possuía leis severas para punir, por exemplo, que se ensinasse um escravo a ler. Essa era uma condição, um privilégio, dos chamados homens livres. Luiz Gama por ter experimentado a condição de um segregado, sabia muito bem o significado da palavra “escravidão”.