quinta-feira, dezembro 28, 2023

O ano Luis Buñuel de 2023

Esse exercício cinematográfico começou em 2020, em pleno ano cinzento do da pandemia. Naquele ano, resolvi assistir a todos os filmes do mestre Tarkovsky. Em 2021, escolhi o sueco Ingmar Bergman e sua psicologia sutil. Tive a oportunidade de rever alguns e assistir a outros pela primeira vez. Quanta beleza!

Em 2022, optei pelo mestre japonês Akira Kurozawa. Se eu tivesse de fazer uma lista com dez dos filmes mais importantes que já vi na minha vida, pelo menos três ou quatro seriam do cineasta japonês. 

Para o ano que ora finda, escolhi o caudilho espanhol naturalizado mexicano Luis Buñuel. O diretor trabalhou com o mestre do surrealismo Salvador Dalí, de quem herdou forte influência. Seus filmes fundaram certos conceitos estéticos que influenciariam alguns diretores. Um dos seus discípulos mais fiéis é Almodóvar.  Há pérolas inquestionáveis em sua filmografia. Assumidamente ateu e anticlerical, alguns dos seus filmes são críticas ferrenhas à Igreja como é o caso de "Viridiana". Após ter visto doze dos seus filmes, fiz uma lista (estritamente pessoal) com aquilo de que mais gostei:

(1) Este obscuro objeto do desejo (1977)
(2) O alucinado (1953)
(3) O diário de uma camareira (1964)
(4) O rio e a morte (1952)
(5) Viridiana (1961)
(6) O anjo exterminador (1962)
(7) Susana, mulher diabólica (1951)
(8) A bela da tarde (1967)
(9) O discreto charme da burguesia (1972)
(10) Nazarin (1959)
(11) Uma mulher sem amor (1952)
(12) O fantasma da liberdade (1974)

Em 2024, o cineasta da vez será François Truffaut.

terça-feira, dezembro 26, 2023

12 livros de literatura brasileira para ler em 2024

Nos últimos anos três anos, tenho feito uma lista com doze livros de autores brasileiros do gênero ficção todo início de ano. É uma forma de me disciplinar para ler aqueles autores e obras que sempre intentei conhecer, mas que seja por indisciplina seja por mero casuísmo, nunca dei a devida atenção.

Fiz a lista para o ano de 2024. Dos doze livros, li apenas "Esaú e Jacó", de Machado de Assis. Em 2023, não consegui ler três dos doze livros os quais havia selecionado - "Macunaíma", "Grande Sertão: Veredas" e "Crônica de uma casa assassinada". A escolha de alguns livros são fruto de um desejo alimentado ao longo de anos. É o caso, por exemplo, de "A maçã no escuro" da Clarice Lispector. Outros, como é o caso de "Cascalho", é o resultado de dicas encontradas em leituras. Outros ainda, como é o caso de "Riacho Doce", eu procrastinei a leitura ao longo de muito tempo.

Segue a relação:

1 - Lúzia-Homem - Domingos Olímpio;
2 - A menina morta - Cornélio Penna;
3 - Suor - Jorge Amado;
4 - A maçã no escuro - Clarice Lispector;
5 - Becos da memória - Conceição Evaristo;
6 - Grande Sertão: Veredas - Guimarães Rosa;
7 - Esaú e Jacó - Machado de Assis;
8 - O baú de ossos - Pedro Nava;
9 - Crônica de uma casa assassinada - Lúcio Cardoso;
10 - Riacho Doce - José Lins do Rego;
11 - Cascalho - Herberto Sales;
12 - Numa e a ninfa - Lima Barreto

 

quinta-feira, dezembro 21, 2023

"Murambi - o livro das ossadas", de Boubacar Boris Diop

           

                “Um genocídio fala a cada sociedade humana de sua fragilidade essencial”

Boubacar Boris Diop

                “Ruanda não tem estatura para perturbar o sono do universo”

Boubacar Boris Diop

 

                Boubacar Boris Diop é um jornalista e romancista senegalês. Pouco conhecido no Brasil, Diop é um militante e defensor de causas do continente africano. Sua preocupação em compreender os dilemas do continente tem feito com que estabeleça conexões com outros intelectuais do grande continente. Consciente dos efeitos das pós-colonização, Diop sabe que a África ainda precisa se compreender, se achar em meio aos grandes contrastes.

                Em 1998, quatro anos após o genocídio de Ruanda, ele foi convidado com dez outros intelectuais, a participar de um projeto de escrita a respeito do genocídio hutu contra os tutsis. O nome do projeto era bonito e evocativo: “Ruanda – escrever como um dever de memória”. Diop ficou dois meses no país. Viajou por várias regiões. Esteve no interior do “país das cem colinas”. Ouviu testemunhas; vítimas e algozes. E acabou por escrever o romance “Murambi: o livro das ossadas”. 

Até agora, este é o único livro do escritor traduzido aqui no Brasil. Em 2000, o escritor senegalês, recebeu o Grande Prêmio Literário da África negra, o que realça a sua grandiosidade e, por sua vez, demonstra o quanto o Brasil e o Ocidente desconhecem a relevância dos grandes nomes da literatura do continente africano. Um intelectual da estatura de Boubacar Boris Diop não pode passar desapercebido. Muitos dos debates a respeito de uma literatura pós-colonial dizem respeito ao Brasil também. Compreender os dilemas do continente africano, é também nos enxergar. Afinal, há muito de África por aqui.

                Murambi é o nome de uma cidade de uma ruandesa onde funcionava uma escola técnica. Nesse local, estima-se que 50 mil pessoas foram assassinadas. Uma das personagens da obra retorna a Murambi após uma temporada fora. Como é típico em uma obra que se propõe a abordar algo da complexidade do genocídio ocorrido no país, Diop não incorre em um maniqueísmo banal. Não há sentimentalismo em sua obra. Trata-se de uma escrita polifônica, que procura descrever tanto a perspectiva dos opressos, quanto a loucura dos opressores. É a partir da fala de múltiplos personagens que a descrição do horror vai sendo esculpida. O que é colocado em evidência é a sociedade ruandesa. O que leva um país jovem a produzir tão grande violência contra si mesmo? Uma das respostas é a interferência dos europeus. Um dos países responsáveis por fechar os olhos e ignorar a carnificina que estava para acontecer foi a França. Em anos posteriores, o governo francês se esforçou para obumbrar essa versão.

                Os chamados “cem dias de Ruanda” foram um dos momentos mais trágicos do século XX. Há estimativas que posicionam o número de mortos entre 800 mil e 1 milhão. As vítimas foram em sua maioria tutsis. Hutus moderados ou que não quiseram participar da barbárie também foram mortos. Não houve discriminações. Mulheres, crianças, homens novos ou velhos foram aniquilados – quase sempre – a golpes de facões. O simples fato de ser “o outro” já enunciava uma sentença fatal.

                Em abril de 1994, o avião do hutu Juvenal Habyarimana, presidente ruandês que governava o país com mãos de ferro, foi abatido. Era 6 de abril. Habyarimana ao longo de vinte anos de governo facilitara a perseguição aos tútsis. Milícias haviam sido criadas para hostilizar o grupo étnico. A principal dela era denominada como Interahamwe. No dia seguinte ao assassinato do líder máximo do país, começaram os massacres. Os números são impressionantes. Segundo estudos, a violência desfechada contra mulheres foi estarrecedora. Estima-se que aconteceram mais de duzentos e cinquenta mil estupros. Outros estudos, apontam que tenham chegado a algo em torno de quinhentos mil. Há descrições no livro de Diop que impressionam pelo nível de selvageria e desumanidade.

“O sangue me gelara ao vê-los assim, falar de uma coisa e outra, no instante em que uma vida se desfazia para sempre debaixo dos olhos deles. E entre os estupradores há quase sempre, de propósito, portadores de aids”.

                Ou algo como o depoimento de uma das personagens:

“Quando terminam [os estupros], te jogam ácido dentro da vagina ou te enfiam cacos de garrafa ou pedaços de ferro”.

Ou esta que, simplesmente, demonstra o quanto o ser humano pode abdicar de forma completa de um nível básico de racionalidade:

“O chefe deu alguns passos e, mudando de ideia, voltou e esmagou a cabeça da moça com uma pedra grande, e na mesma hora só ficou aquele caldo vermelho e branco no lugar do crânio. Isso não interrompeu o miliciano Interahamwe, que continuou a mexer o corpo agitado por pequenos sobressaltos. Tinha os olhos saltados, virados para o céu, e até acho que estava mais excitado do que antes”. 

Boubacar Boris Diop

                O genocídio tutsi foi uma das páginas mais medonhas da história. Por dia, entre 8 mil e 10 mil pessoas foram assassinadas. Vilarejos inteiros foram dizimados. Famílias se mataram; vizinhos se mataram; homens mataram crianças de forma cruel. Muitos tutsis se esconderam em igrejas e escolas do interior, mas acabaram sendo entregues e mortos. Até hoje, ossadas continuam a ser descobertas em várias regiões do país.

                A relevância do livro de Diop se afirma nesse ponto, pois escancara para o mundo do que os homens são capazes. Há um belo apêndice do autor na obra que procura problematizar o porquê do silêncio dos países ocidentais. No período em que a carnificina estava a acontecer naquele pequeno país, sem atrativos, sem muitos recursos naturais, o país constituído apenas de camponeses e criadores de animais, não despertou qualquer interesse. A comunidade internacional assistiu à distância de maneira indolente. A Copa do Mundo de 94 estava sendo disputada nos Estados Unidos. Não houve qualquer despertamento em impedir o auto-aniquilamento daquele minúsculo país pobre e sem qualquer relevância no cenário geopolítico.

                A mensagem parecia muito clara: “Essa é uma disputa de selvagens. Não nos meteremos”. Os tutsis foram abandonados à própria sorte. Nos anos seguintes, após o derramamento de sangue ter sido estancado, o país mergulhou em um processo de reconstrução. A necessidade de um livro como “Murambi” indica o quanto o exercício de “lembrar” é significativo, pois impele a uma reflexão capaz de impedir que a barbárie se instale novamente. Em extermínio em massa dos tutsis não foi um problema só para Ruanda. Foi problema para a humanidade. Talvez, essa seja a principal mensagem do livro.       

 

P.S. Há uma excelente entrevista com o autor AQUI

               

                 

 

segunda-feira, dezembro 11, 2023

Inadequação

 

“Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia”

Trecho da música "Não vou me adaptar", do grupo Titãs. Letra de Arnaldo Antunes

 

No sábado, após alguns anos, estive em um culto protestante. Visitei a Igreja Presbiteriana Nacional (IPN). Seria o dia da colação de grau do meu cunhado. Ele bacharelou-se em teologia. Sendo assim, fui à IPN por causa desse fato. Meu cunhado estudou teologia por quatro anos no Seminário Presbiteriano de Brasília, onde também estudei entre os anos de 2002 e 2005.

                Desejei ir para resgatar da memória a experiência que lá vivi. Encontrar algumas fisionomias. Perceber como a vida nos apresenta paisagens diversas. E, por fim, praticar a bonomia com alguns sorrisos. A pergunta mais intrigante da noite foi feita a mim por um colega chamado Wesley, que estudou no período em que lá estive:

                - Que bom te ver! Onde você está? – Para quem é de fora do mundo protestante, quiçá, não perceba a força semântica da inquirição. A indagação é feita para interpelar o interlocutor a respeito da igreja que ele frequenta. Ele queria saber a respeito do meu nível de envolvimento com o mundo eclesiástico. Respondi a sua indagação entre um esgar e a consciência de que aquele tipo de pergunta era comum.  Certamente, minha resposta o surpreendeu, gerando decepção.

                Observei toda condução do ritual tentando encontrar em mim mesmo uma dimensão que me conectasse com o seu sentido. Eu frequentei os cultos presbiterianos. Estudei na mesma instituição que estava declarando publicamente o curso de teologia do meu cunhado.  No dia 10 de dezembro de 2005, eu também recebi o mesmo título. Fui responsável por fazer o voto para a minha turma. Havia gestos apaixonados e uma motivação sincera em minha credulidade. Passados dezoito anos, julguei-me anômalo, indiferente a tudo o que aconteceu.

                A pregação de um reverendo chamado Marcelo, foi uma verdadeira declaração de chauvinismos e sensaborias egoicas. Prontificou-se a falar do texto do livro de Atos, que trata sobre Estevão, considerado pela tradição cristã como o primeiro mártir. Seu discurso foi pouco claro. Houve enormes digressões. Um discurso gabola típico dos líderes cristãos, criando dicotomias entre o mundo que se diz cristão e aquele que não é. Segundo ele, o mundo persegue os cristãos. Isso aconteceu em toda a história e acontece ainda hoje. Mencionou países africanos; falou a respeito da China. Para ele e sua mente colonizada, os Estados Unidos são um tipo de modelo missionário, pois os cristãos pioneiros que foram responsáveis pela formação da Igreja daquele país, foram fortes e sonharam com uma terra que seguisse, no dizer do pregador, “um país que segue o evangelho”. Ou seja, velhos bordões para arregimentar engajamento.

                É curioso como os presbiterianos valorizam aquilo que Rubem Alves chamou de “protestantismo da reta doutrina”. Por intermédio dessa fórmula, é possível perceber o quanto o desejo pelo saber teológico sedimenta ostentação. As falas no culto presbiteriano manifestam duas questões:

 (1) Há uma enorme preocupação com a teologia. A compreensão de deus passa, necessariamente, pelo rigor teológico. O saber teológico dessa forma é a régua de medir a divindade. Caso, haja uma compreensão que não se harmoniza com a teologia, questiona-se essa compreensão. A teologia é a chave de interpretação dos fenômenos religiosos. Somente indivíduos treinados e moldados pelo saber teológico são capazes de adquirirem uma plausível respeitabilidade. O desejo de distinção e reconhecimento talvez explique o porquê desse fenômeno nos púlpitos e na prática dos condutores da denominação.  

(2) E, a segunda, que talvez, seja um desdobramento da primeira é a exaltação a uma fé pautada na construção de um discurso que se estrutura na fala. O discurso deve ser pomposo. Isso pôde ser verificado na fala do paraninfo da turma. Seu texto pareceu-me demasiado pernóstico. A estrutura sintática primou pela escolha de palavras pouco usuais. Havia ainda um enfeito pouco natural na leitura. Nota-se, assim, que há uma evidente preocupação com “a forma”. Pode-se dizer que, caso fosse enviar uma carta, os presbiterianos teriam mais preocupação com a aparência do envelope do que com o conteúdo que a carta abriga.

                Quando deixei o espaço, fiquei pensando no quanto o ser humano se preocupa em erguer muros discursivos para se sentir protegido. Todo aquele ritual somente confirmou o quanto nesses espaços de manifestação religiosa, a antropologia fale com tanta força. As manifestações trazem mais conteúdos sobre aqueles que o fazem do que sobre aquilo que eles alegam pregar. Há mais a respeito dos homens no pretenso discurso sobre deus, do que deus no discurso erguido pelos homens.