quinta-feira, dezembro 21, 2023

"Murambi - o livro das ossadas", de Boubacar Boris Diop

           

                “Um genocídio fala a cada sociedade humana de sua fragilidade essencial”

Boubacar Boris Diop

                “Ruanda não tem estatura para perturbar o sono do universo”

Boubacar Boris Diop

 

                Boubacar Boris Diop é um jornalista e romancista senegalês. Pouco conhecido no Brasil, Diop é um militante e defensor de causas do continente africano. Sua preocupação em compreender os dilemas do continente tem feito com que estabeleça conexões com outros intelectuais do grande continente. Consciente dos efeitos das pós-colonização, Diop sabe que a África ainda precisa se compreender, se achar em meio aos grandes contrastes.

                Em 1998, quatro anos após o genocídio de Ruanda, ele foi convidado com dez outros intelectuais, a participar de um projeto de escrita a respeito do genocídio hutu contra os tutsis. O nome do projeto era bonito e evocativo: “Ruanda – escrever como um dever de memória”. Diop ficou dois meses no país. Viajou por várias regiões. Esteve no interior do “país das cem colinas”. Ouviu testemunhas; vítimas e algozes. E acabou por escrever o romance “Murambi: o livro das ossadas”. 

Até agora, este é o único livro do escritor traduzido aqui no Brasil. Em 2000, o escritor senegalês, recebeu o Grande Prêmio Literário da África negra, o que realça a sua grandiosidade e, por sua vez, demonstra o quanto o Brasil e o Ocidente desconhecem a relevância dos grandes nomes da literatura do continente africano. Um intelectual da estatura de Boubacar Boris Diop não pode passar desapercebido. Muitos dos debates a respeito de uma literatura pós-colonial dizem respeito ao Brasil também. Compreender os dilemas do continente africano, é também nos enxergar. Afinal, há muito de África por aqui.

                Murambi é o nome de uma cidade de uma ruandesa onde funcionava uma escola técnica. Nesse local, estima-se que 50 mil pessoas foram assassinadas. Uma das personagens da obra retorna a Murambi após uma temporada fora. Como é típico em uma obra que se propõe a abordar algo da complexidade do genocídio ocorrido no país, Diop não incorre em um maniqueísmo banal. Não há sentimentalismo em sua obra. Trata-se de uma escrita polifônica, que procura descrever tanto a perspectiva dos opressos, quanto a loucura dos opressores. É a partir da fala de múltiplos personagens que a descrição do horror vai sendo esculpida. O que é colocado em evidência é a sociedade ruandesa. O que leva um país jovem a produzir tão grande violência contra si mesmo? Uma das respostas é a interferência dos europeus. Um dos países responsáveis por fechar os olhos e ignorar a carnificina que estava para acontecer foi a França. Em anos posteriores, o governo francês se esforçou para obumbrar essa versão.

                Os chamados “cem dias de Ruanda” foram um dos momentos mais trágicos do século XX. Há estimativas que posicionam o número de mortos entre 800 mil e 1 milhão. As vítimas foram em sua maioria tutsis. Hutus moderados ou que não quiseram participar da barbárie também foram mortos. Não houve discriminações. Mulheres, crianças, homens novos ou velhos foram aniquilados – quase sempre – a golpes de facões. O simples fato de ser “o outro” já enunciava uma sentença fatal.

                Em abril de 1994, o avião do hutu Juvenal Habyarimana, presidente ruandês que governava o país com mãos de ferro, foi abatido. Era 6 de abril. Habyarimana ao longo de vinte anos de governo facilitara a perseguição aos tútsis. Milícias haviam sido criadas para hostilizar o grupo étnico. A principal dela era denominada como Interahamwe. No dia seguinte ao assassinato do líder máximo do país, começaram os massacres. Os números são impressionantes. Segundo estudos, a violência desfechada contra mulheres foi estarrecedora. Estima-se que aconteceram mais de duzentos e cinquenta mil estupros. Outros estudos, apontam que tenham chegado a algo em torno de quinhentos mil. Há descrições no livro de Diop que impressionam pelo nível de selvageria e desumanidade.

“O sangue me gelara ao vê-los assim, falar de uma coisa e outra, no instante em que uma vida se desfazia para sempre debaixo dos olhos deles. E entre os estupradores há quase sempre, de propósito, portadores de aids”.

                Ou algo como o depoimento de uma das personagens:

“Quando terminam [os estupros], te jogam ácido dentro da vagina ou te enfiam cacos de garrafa ou pedaços de ferro”.

Ou esta que, simplesmente, demonstra o quanto o ser humano pode abdicar de forma completa de um nível básico de racionalidade:

“O chefe deu alguns passos e, mudando de ideia, voltou e esmagou a cabeça da moça com uma pedra grande, e na mesma hora só ficou aquele caldo vermelho e branco no lugar do crânio. Isso não interrompeu o miliciano Interahamwe, que continuou a mexer o corpo agitado por pequenos sobressaltos. Tinha os olhos saltados, virados para o céu, e até acho que estava mais excitado do que antes”. 

Boubacar Boris Diop

                O genocídio tutsi foi uma das páginas mais medonhas da história. Por dia, entre 8 mil e 10 mil pessoas foram assassinadas. Vilarejos inteiros foram dizimados. Famílias se mataram; vizinhos se mataram; homens mataram crianças de forma cruel. Muitos tutsis se esconderam em igrejas e escolas do interior, mas acabaram sendo entregues e mortos. Até hoje, ossadas continuam a ser descobertas em várias regiões do país.

                A relevância do livro de Diop se afirma nesse ponto, pois escancara para o mundo do que os homens são capazes. Há um belo apêndice do autor na obra que procura problematizar o porquê do silêncio dos países ocidentais. No período em que a carnificina estava a acontecer naquele pequeno país, sem atrativos, sem muitos recursos naturais, o país constituído apenas de camponeses e criadores de animais, não despertou qualquer interesse. A comunidade internacional assistiu à distância de maneira indolente. A Copa do Mundo de 94 estava sendo disputada nos Estados Unidos. Não houve qualquer despertamento em impedir o auto-aniquilamento daquele minúsculo país pobre e sem qualquer relevância no cenário geopolítico.

                A mensagem parecia muito clara: “Essa é uma disputa de selvagens. Não nos meteremos”. Os tutsis foram abandonados à própria sorte. Nos anos seguintes, após o derramamento de sangue ter sido estancado, o país mergulhou em um processo de reconstrução. A necessidade de um livro como “Murambi” indica o quanto o exercício de “lembrar” é significativo, pois impele a uma reflexão capaz de impedir que a barbárie se instale novamente. Em extermínio em massa dos tutsis não foi um problema só para Ruanda. Foi problema para a humanidade. Talvez, essa seja a principal mensagem do livro.       

 

P.S. Há uma excelente entrevista com o autor AQUI

               

                 

 

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