quarta-feira, fevereiro 25, 2015

O "FORA DILMA" e as "opiniões"

O Brasil atual, do ponto de vista político, tem sido um palco para uma profunda crise de representatividade. O governo atual é responsável por um pouco desse aspecto cinzento que se abateu sobre a política nacional. Mas, penso que essa realidade seja sustentada, principalmente, pelo desserviço que a mídia conservadora presta diariamente em seus veículos ditos informativos - sejam eles escritos, visuais ou falados (no caso das emissoras de rádio). Um forte movimento fascista e golpista se instalou de forma silenciosa a serviço de certos interesses e, como se fosse um vírus, passou a fazer parte do vocabulário do homem médio (algo que se estende das crianças aos idosos) contra o governo. Ora, se existe esse consenso e uma forma homogeneizada de discurso raivoso, canino, babão, contra o governo petista, o "FORA DILMA" não é nada mais nada menos do que uma espécie de "catapora coletiva" pulverizada pelos jornalões que têm uma clara posição ideológica e que acometeu a sociedade. 

Não defendo o governo petista. Votei em Dilma o ano passado como um último recurso político. Penso que a base hegemônica que comanda o PT há muito esmaeceu o sonho inicial de fundação do partido. Nas eleições do ano passado, quando os movimentos sociais e vários intelectuais apoiaram o partido, fiquei de longe observando os passos do governo, e, principalmente, do explícito interesse midiático e do mercado em torno do projeto de cada um dos candidatos. Havia duas possibilidades: a guilhotina (Aécio), que era a decapitação certa, sem possibilidade de graça, indulgência ou anistia a e cruz (Dilma), mas que trazia em seu bojo toda aquela força esperançosa e simbólica que o objeto representa. Boa parte dos brasileiros optou pela cruz. Todavia, a esperança se mostrou mole, frouxa, como uma chuva de dois minutos. Simplesmente, ela não aconteceu, pois o braço hegemônico do PT, que tem em Dilma Rousseff a sua base, optou por uma saída pela direita em meio à crise. O fato é que a crise está posta com toda a sua latência. Mas o PT ao invés de sair pela esquerda, com a opção clara pelo trabalhador e pelos movimentos sociais, o que fortaleceria o governo e o tornaria defensável, ficou sem titubeios com o mercado.

Mauro Iasi já apontava isso em seu lúcido e esclarecedor artigo O sexto turno, escrito quinze dias antes do segundo turno da corrida presidencial. Nele, o intelectual falava sobre a opção clara que o Partido dos Trabalhadores havia feito desde o primeiro mandato de Lula e, que não seria naquele momento, que as coisas mudariam. Analisando a atual conjuntura à luz da reflexão de Iasi a realidade se torna mais clara. A mídia sabe do "alheamento político" do brasileiro médio - e faz política em cima disso. São hábeis jogadores. Buscam desgastar o governo por causa de suas últimas decisões para salvar o mercado - aumento da gasolina, alta dos impostos, corte nos direitos trabalhistas etc; os escândalos de corrupção, principalmente, aquele que tem ajudado a lançar abaixo os flancos táticos do governo, o caso Petrobras. Trata-se de um jogo em que, aquele que tem o poder de formação da "opinião", acaba levando a partida. Aconteceu isso, por exemplo, em 1992 com os caras pintadas. Isso parece clichê: mas não foi o povo que necessariamente que impeachtmou Fernando Collor; mas sim, a Globo que fez isso. Ela o colocou e ela o tirou.

O atual movimento antidilmista possui uma fonte clara. Só não não enxerga quem diz "FORA DILMA!". Não é o PT de Dilma que é incompetente. É o tipo de política a favor do mercado e do capital rentista que traz essas consequências. Foram as escolhas e as alianças costuradas a favor do deus mercado. Com Aécio não seria diferente, já que o seu partido é a personificação de um projeto de política que possui um rio que se sabe onde desemboca: no mar do conservadorismo e do atraso. Como diz Alysson Leandro Mascaro em Estado e forma política, sob o capitalismo, até mesmo o estado tornou-se uma mercadoria para a burguesia. Ou seja, o estado se tornou uma força que age a favor do lucro e dos interesses do capital. Uma prova disso, como se pode atestar, é o lucro absurdo do Banco Itáu. Em um tempo de arrocho e suposta crise, como se pode explicar uma entidade financeira que lucra 20 bilhões de reais em um ano, sendo que o recorde se consuma ano a ano?

Mas, por que escrevi essas linhas? Ontem olhava de forma descompromissada algumas coisas no Facebook. Percebi que o Milton Ribeiro havia curtido determinado comentário. Quando o li, percebi que ali estava uma das declarações mais felizes que li nos últimos meses. Fez-me lembrar o livrinho que tenho aqui em casa de Schopenhauer, em que ele fala sobre o perigo dos textos ou de leituras mal feitas. No caso em questão, o grande perigo é a leitura de opiniões de colunistas que escrevem claramente aquilo que o chefe manda e depois apregoam os termos carunchados imparcialidade e independência, como se isso fosse possível, quando interesses de classe estão postos. Não conheço o dono do comentário, mas penso que "papagaios de plantão" antes de proferirem o baboso "Fora Dilma", deveriam ler algum livro de ciência política; ao invés de ouvir o Bonner, deveriam ler os iluministas (Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu etc), que são responsáveis pela elaboração da concepção de estado moderno; ao invés de fixarem atenção naquilo que os colunistas (animais amestrados das redações) falam a mando do patrão, deveriam ler algum livro de história para entender a complexidade que é o Brasil e quais foram os interesses que o formaram.

Segue o texto:



O objetivo de se estudar e ler muito (num primeiro momento descartem os jornais e partam para os livros) não deve ser o de querer mudar o mundo, mas o de mudar a si mesmo, de se proporcionar a possibilidade de olhar em volta com olhar crítico, analisando as situações e os fatos de forma coerente, racional. A leitura (filosofia, história, antropologia, sociologia, literatura) te dá a capacidade de entender as nuances, os jogos, as distorções, a má intenção por trás do que é escrito em notícias e principalmente do que é dito por comentaristas. Ler jornal não torna ninguém inteligente. Dizem (não sei se é verdade) que certa feita Luis Fernando Veríssimo afirmou que em certos dias a única coisa verdadeira em um jornal é a data. Há alguns anos eu lia muito jornal. Hoje leio bem menos, e o aumento diário de dedicação aos livros melhorou a qualidade da minha leitura de jornais - quando os leio. A notícia é para informar. Opinião cada um deve ter a sua. Acontece que a grande maioria não distingue uma da outra, principalmente quando uma se disfarça de outra. E está cheio de gente aí que não tem opinião própria (acha que tem mas não tem), apenas replicam o que ouvem do marido, da esposa, do companheiro, da companheira, do pai, da mãe, do tio, do jornal, da TV etc. Tá cheio de gente opinando sobre política, sobre a economia do país, sobre corrupção, sem sequer pegarem em um livro. Sua inteligência e conhecimento resumem-se em adjetivar de vaca a mandatária do país. Apenas repetem feito papagaios (maritacas, caturritas) o que ouvem dos outros. Façam uma tabela com horário diário de trabalho e muita leitura, e só depois de se dedicarem DIARIAMENTE à leitura, aos estudos, por pelo menos uns quatro anos, poderão então opinar sobre algum assunto sem correrem o risco do ridículo. E olhem lá, tempo de estudo nem sempre é atestado de inteligência...             

segunda-feira, fevereiro 23, 2015

A literatura é um denominador comum da experiência humana, por Mario Vargas Llosa

Baita texto! Sintetiza a finalidade e a dignidade da literatura como construtora que exatifica a experiência humana. 

Em feiras de livros ou mesmo livrarias, frequentemente alguém se aproxima pedindo-me autógrafo. “É para minha mulher, filha ou mãe”, explica. “Ela adora ler!” De pronto pergunto: “E o senhor? Não gosta de ler?” E a resposta é quase sempre a mesma: “Gosto, mas sou muito ocupado.”

Já ouvi essa explicação dezenas de vezes. Esse homem – e milhares outros como ele – tem tantos afazeres importantes, tantas obrigações e responsabilidades, que não pode perder seu precioso tempo mergulhado num romance.

Segundo esse raciocínio, a literatura seria uma atividade dispensável, uma diversão que somente pessoas com muito tempo livre poderiam se permitir.

Gostaria de apresentar alguns argumentos contra a ideia da literatura como passatempo e em prol de considerá-la, além de uma das ocupações mais estimulantes e enriquecedoras do espírito humano, uma atividade insubstituível para a formação de cidadãos na sociedade moderna e democrática. Por essa razão, ela deveria ser semeada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas educacionais.

Vivemos numa era de especialização em virtude do extraordinário desenvolvimento da ciência e da tecnologia, e da conseqüente fragmentação do conhecimento em incontáveis avenidas e compartimentos.
A especialização traz benefícios. Possibilita pesquisa e experimentos, e é a força motriz do progresso. Mas também destrói os denominadores comuns culturais que permitem a coexistência, a comunicação e a solidariedade. E leva à separação dos seres humanos em guetos culturais de especialistas, confinados – pela linguagem, por códigos de conduta e pelo conhecimento particularizado – a uma especificidade contra a qual um antigo provérbio já nos advertia: não se concentre tanto na folha, a ponto de esquecer que ela é parte da árvore e esta, da floresta.

Em grande medida, a noção da existência dessa floresta depende do senso de conjunto que une a sociedade e não a deixa se desintegrar numa centena de especificidades. A ciência e a tecnologia, portanto, já não podem desempenhar esse papel unificador da cultura.

A literatura, por sua vez, foi e, enquanto existir, continuará sendo um denominador comum da experiência humana. Aqueles de nós que leram Cervantes, Shakespeare, Dante ou Tolstoi entendem uns aos outros e se sentem indivíduos da mesma espécie porque, nas obras desses escritores, aprenderam o que partilhamos com seres humanos, independentemente de posição social, geografia, situação financeira e período histórico.
Nada nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do sectarismo religioso ou político e do nacionalismo excludente do que esta verdade que sempre surge na grande literatura: todos são essencialmente iguais. Nada nos ensina melhor do que os bons romances a ver nas diferenças étnicas e culturais a riqueza do legado humano e a estimá-las como manifestação da multifacetada criatividade humana.

Ler boa literatura é ainda aprender o que e como somos – em toda a nossa humanidade, com nossas ações, nossos sonhos e nossos fantasmas -, tanto no espaço público como na privacidade de nossa consciência. Esse conhecimento se encontra apenas na literatura. Nem mesmo os outros ramos das ciências humanas – a filosofia, a história ou as artes – conseguiram preservar essa visão integradora e um discurso acessível ao leigo, pois também eles sucumbiram ao domínio da especialização.

O elo fraternal que a literatura estabelece entre os seres humanos transcende todas as barreiras temporais. A sensação de ser parte da experiência coletiva através do tempo e do espaço é a maior conquista da cultura, e nada contribui mais para renová-la a cada geração do que a literatura.

O que a literatura deu à humanidade, então?

Um de seus primeiros efeitos benéficos ocorre no plano da linguagem. Uma sociedade sem literatura escrita se exprime com menos precisão, riqueza de nuances, clareza, correção e profundidade do que a que cultivou os textos literários.

Uma humanidade sem romances seria muito parecida com uma comunidade de gagos e afásicos. Isso também vale para o indivíduo. As pessoas que nunca lê, lê pouco ou lê apenas lixo pode falar muito, mas vai sem dizer pouco, porque dispõe de um repertório mínimo de palavras para se expressar.

Não se trata de uma limitação somente verbal, mas também intelectual, uma indigência de idéias e conhecimento, porque os conceitos pelos quais assimilamos a realidade não são dissociados das palavras que nossa consciência usa para reconhecê-los e defini-los.

Nenhuma disciplina substitui a literatura na formação da linguagem. O conhecimento transmitido por manuais técnicos e tratados científicos é fundamental, mas eles não nos ensinam a nos exprimir corretamente. Ao contrário, com freqüência são mal escritos porque os autores, às vezes expoentes indiscutíveis em sua profissão, não sabem transmitir seus tesouros conceituais.

Outro motivo para se conferir à literatura um lugar de destaque na vida das nações é que, sem ela, a mente crítica – verdadeiro motor das mudanças históricas e melhor escudo da liberdade – sofreria uma perda irreparável. Porque toda boa literatura é um questionamento radical do mundo em que vivemos. Qualquer texto literário de valor transpira uma atitude rebelde, insubmissa, provocadora e inconformista.

A literatura apazígua essa insatisfação existencial apenas por um momento, mas nesse instante milagroso, nessa suspensão temporária da vida, somos diferentes: mais ricos, mais felizes, mais intensos, mais complexos e mais lúcidos. A literatura nos permite viver num mundo onde as regras inflexíveis da vida real podem ser quebradas, onde nos libertamos do cárcere do tempo e do espaço, onde podemos cometer excessos sem castigo e desfrutar de uma soberania sem limites. Como não nos sentirmos enganados depois de ler “Guerra e Paz” ou “Em Busca do Tempo Perdido” e voltar a este mundo de detalhes insignificantes, obstáculos, limitações, barreiras e proibições que nos espreitam de todo canto e em cada esquina corrompem nossas ilusões?
Nada nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do sectarismo religioso ou político e do nacionalismo excludente do que esta verdade que sempre surge na grande literatura: todos são essencialmente iguais.
Quer dizer, a vida imaginada dos romances é melhor: mais bonita e diversa, mais compreensível e perfeita. Talvez seja esta a maior contribuição da literatura ao progresso: lembrar que o mundo é malfeito, e que poderia ser melhor, mais parecido com o que a imaginação é capaz de criar.

A sociedade livre e democrática requer cidadãos responsáveis, críticos, independentes, difíceis de manipular, em constante efervescência espiritual e cientes da necessidade de examinar continuamente o mundo em que vivemos, para tentar aproximá-lo do mundo em que gostaríamos de viver.

Sem insatisfação e rebeldia, ainda viveríamos em estado primitivo, a história teria parado, o indivíduo não teria nascido, a ciência não teria alçado vôo, os direitos humanos não teriam sido reconhecidos e a liberdade não existiria. Tudo isso nasce dos atos de desafio a uma vida que se mostra insuficiente ou intolerável. Para esse espírito que despreza a vida como ela é – e, com a insensatez de Dom Quixote, tenta tornar o sonho realidade -, a literatura serve de magnífica espora. A verdade é que o desenvolvimento da mídia audiovisual – que ao mesmo tempo que revoluciona as comunicações monopoliza cada vez mais o tempo que dedicamos ao lazer, relegando a leitura a segundo plano – permite-nos imaginar para um futuro próximo uma sociedade moderníssima, repleta de computadores, telas e microfones, mas sem livros.

Temo que esse mundo cibernético seja profundamente incivilizado, sem espírito, apático – uma resignada humanidade de robôs.

Evidentemente , é muito improvável que essa terrível perspectiva venha algum dia a se concretizar. Não existe um destino que decida por nós o que vamos ser. Depende de nosso discernimento e de nossa vontade que essa utopia macabra se realize ou se apague.

Se queremos evitar o desaparecimento dos romances – ou sua restrição ao sótão dos objetos inúteis – e com isso o desaparecimento da própria fonte que estimula a imaginação e a insatisfação, que refina nossa sensibilidade e nos ensina a falar com eloquência e precisão, que nos torna livres e nos garante uma vida mais rica e intensa, então devemos agir. Precisamos ler bons livros e incitar à leitura os que vêm depois de nós.

quarta-feira, fevereiro 11, 2015

Teilhard de Chardin, o compositor da sinfonia universal

Teilhard de Chardin (1881-1955)
Na última segunda-feira terminei a leitura de Sinfonia Universal, de Frei Betto. O livro se propõe a fazer uma apresentação bastante instigante, apaixonada e poética da visão do padre humanista Teilhard de Chardin. Trata-se de um livro pequeno - de pouco mais de cem páginas. Frei Betto foi um dos primeiros sujeitos, ainda na década de sessenta, a introduzir o pensamento do jesuíta em terras brasileiras. Chardin buscou conciliar teologia e ciência, algo que aparentemente não se integram - como água e óleo. O resultado foi o estranhamento dos seus colegas cientistas e a imposição do silêncio pela Igreja.

O livro está separando por dois momentos: (1) aquele que busca apresentar a problemática em torno da existência do homem diante dos mistérios infinitos do cosmos. Para isso, Frei Betto dialoga com Stephen Hawking. Por causa da imensidão cósmica, aliada a uma dinâmica estritamente racional, construiu-se uma separação entre o homem e a natureza. O mundo passou a ser interpretado como uma máquina. A razão durante muito tempo foi vista como a rede capaz de apreender todos os voos da realidade. Todavia, tal pensamento levou o homem a uma condição inferior diante dos eventos universais. (2) logo em seguida, Betto nos faz uma explanação das ideias do pensador francês, que buscou levar à frente um projeto que tem por compreensão conectar todas as realidades criadas e mostrar lugar do homem como o refinamento evolutivo da matéria. 

Teilhard de Chardin durante muito tempo foi mal visto pelas autoridades eclesiásticas da Igreja que viam em seu pensamento ranços extremos de panteísmo. Tal fato, estava ligado ao fato de que Chardin havia embebido o seu pensamento de esquemas da filosofia oriental. Ele havia passado uma temporada na China e aquilo acabou mudando as suas concepções. O autor de O fenômeno humano, desde muito jovem se enveredou pelos caminhos científicos. Estudou fósseis. Fez pesquisa de campo. Aproximou-se do pensamento evolutivo. Construiu um pensamento que afirmava que entre um protozoário e uma montanha; ou entre uma flor ou uma estrela existe uma força convergente, um halo invisível que liga tudo o que existe. 

O personagem principal dessa dança cósmica seria o homem. Para ele o homem é a matéria que ganhou consciência. É o silêncio cósmico que se tornou música. É o não movimento que se tornou movimento. Chardin, desse modo, entende que todos os ciclos e processos possuem uma razão de ser. Não existe desperdício cósmico. Tudo converge. Nada se perde. Tudo se transforma. Tudo faz parte de um sistema invísível. 

Seu pensamento se estrutura da seguinte forma: a história da vida e da matéria está assentada em três etapas ou grandes momentos: (1) a cosmogênese, que tem início com com a criação da matéria até o aparecimento da vida; (2) biogênese, que vai até o aparecimento do homem; (3) antropogênese, que é o aparecimento do homem como momento máximo dos processos evolutivos; tal fase se completa de forma plena com a vinda de Cristo à terra (cristogênese), que dá início a unidade de todas as coisas com Cristo. Essa elevação ou espiritualização, que funciona como um refinamento da condição humana, leva à etapa conhecida como noosfera.

O que é bonito em Teilhard de Chardin é a sua preocupação em construir uma missa para o mundo; uma sinfonia poética para o universo; dignificá-lo. Tudo o que existe é sagrado. Nada é inútil. A vida é sagrada e está ligada a cada som, cada átomo, cada grito de esperança ou desesperança; tudo é a transparência de uma energia que é espiritual. Carl Sagan costumava dizer que o homem é a consciência do universo. É a sua voz. Penso que se Teilhard o tivesse conhecido ficaria feliz com esse pensamento.

quinta-feira, fevereiro 05, 2015

"Surpreendido pela Alegria", de C.S. Lewis. Observações da terceira leitura


"O universo se mostra fiel sempre que você o testa com justiça" C.S. Lewis

Foi uma experiência singular voltar a ler esse livro. Fi-lo como alguém que deixa a sua terra e volta a visitá-la depois de muitos anos. Ele olha as paisagens tão comuns e esquecidas e procura encontrar ali os fiapos das experiências pretéritas. E, após muito andar sem compromisso, analisando a paisagem despretensiosamente, abre os lábios, deixando escapar um sorriso saudoso e tímido de complacência por aquilo de bom que viveu. Durante muito tempo o procurei. Havia em mim uma disposição sôfrega para encontrá-lo. Li-o pela primeira vez em 2002 ou 2003. Naquela ocasião, fiz a leitura por duas vezes seguidas, dada era a minha paixão. A primeira leitura havia gerado uma impressão doce, habitada por disposições hedônicas. O livro me mostrara um mundo em que a promessa, após a caminhada pelas trilhas indeléveis da literatura, seria a ventura do bom sentir, do bom enxergar. Li-o novamente no mesmo ano. Penso que a diferença entre uma leitura e outra tenha sido de um mês, buscando sentir os mesmos efeitos produzidos na primeira leitura. 

Saí do seminário em 2005. Mas a lembrança da prosa lewiseana ficou em minha mente. O livro editado pela Editora Mundo Cristão rapidamente se esgotara. A primeira e única edição (parece-me) saiu em 1998. Há alguns meses atrás consegui achá-lo em PDF e grande foi o meu entusiasmo. Não hesitei em lê-lo. Consegui ler as suas mais de duzentas páginas na tela do computador em pouco mais de quinze dias. 

O que existe de tão elementar, de tão relevante neste livro? Não é necessariamente a importância o mote obra, pois trata-se de um relato de conversão ao cristianismo por parte de C.S. Lewis - embora, haja a informação de que foi um dos relatos autobiográficos mais lidos do século XX. A grandeza do livro, ao meu modo de ver, está na prosa lewiseana, ou seja, no modo leve e elegante com que a história é contada.
Lewis narra a história da sua vida, desde os dias mais tenros da infância na Irlanda, até o momento em que, já adulto, converte-se à fé cristã. Essa experiência acontece quando Lewis já era o grande catedrático de Oxford. Apesar de esse ser o grande momento do livro para o qual todos os pontos referenciais direcionem, penso que o que me fisga nesse livro é a narração do grande amor de C.S. Lewis pelos livros. Recordo-me que quando li Surpreendido pela Alegria pela primeira vez, a obra me chamou a atenção para duas coisas: a leitura e a música. Lewis cresceu em meio aos livros e, mais tarde, na adolescência, o autor de As crônicas de Nárnia, encontrou o caminho da mitologia; a segunda questão foi a descrição da paixão que ele sentia pela música de Richard Wagner. No livro, ele não explica o porquê de sua paixão pela música wagneriana, mas penso que esteja ligado ao fato de que o compositor utiliza em suas óperas os temas mitológicos os quais Lewis tanto amava.

Ao ler uma afirmação como esta "Nas tardes de sábado, no inverno, quando o nariz e os dedos podem ficar gelados o bastante para garantir um sabor a mais ao antegozo do chá e da lareira, tendo ainda à frente toda a leitura do final de semana, acho que eu alcançava tanta felicidade quanto se pode alcançar nesta terra. Especialmente se houvesse algum livro novo e longamente cobiçado à minha espera" (p. 153), sentia-me visitado por uma inominável felicidade. Eu não descobri a música wagneriana. Foi por essa época, por sua vez, que encontrei a música de Beethoven. Ficava enfeitiçado cada vez que escutava "A Pastoral" do compositor alemão. Aprendi os lances contemplativos. Acredito que essa diposição já morava em mim, todavia, ao ler o livro de Lewis e conhecer a "Pastoral", passei a entender que na natureza moram poemas não escritos e mistérios não revelados. A natureza é um dos grandes elementos presentes no livro - por exemplo, quando Lewis passa longas horas caminhando pelas cercanias; a descrição do mar entre a Inglaterra e a Irlanda; a preocupação que Lewis tem em nos relevar como eram os campos e as montanhas e seu séquito multifacetado de árvores e arbustos variados.

O livro está repleto pelo recato e pelo humor inglês. Lewis, um sujeito que passou boa parte da sua vida sozinho, olha para trás e analisa com bastante leveza e um toque fino de ironia os momentos agradáveis e difíceis de sua vida. Embora gaste dois capítulos para mostrar ao leitor o labirinto filosófico em que havia se metido até ser convencido de que o deus do cristianismo era a grande Alegria que ele passara a vida inteira procurando, penso que o momento mais bonito é aquele em que o escritor narra a sua amizade com Arthur, o que acabou ensinando a Lewis a capacidade de prestar atenção às coisas simples. Um intelectual não precisa ser necessariamente complexo ou hermético para ser respeitado ou reconhecido pela sua erudição. Precisa antes de tudo ser singelo e perceber a complexidade do mundo nas pequenas coisas que o cerca. Transformar essas paisagens invisíveis em um belo quadro para que todos vejam. É, por meio dessa confissão, que Lewis admite ter lido "os Brontës", todos "Janes Austens" etc. 

Outro importante afirmação é a amizade que Lewis desenvolveu com J.R.R. Tolkien. Pelas palavras utilizadas por Lewis, Tolkien parece ter sido um sujeito bastante risonho e tranquilo. Vale mencionar ainda o respeito de Lewis à prosa de G.K. Chesterton. Inclusive, vale mencionar que Chesterton contribuiu de forma significativa para que Lewis se rendesse à fé cristã. 

Foi curioso ter lido esse livro pela terceira vez. Analisando-o, como disse no início, acredito que ele tenha sido fundamental para a solidificação dessa porção romântica do meu ser. É justamente isso que visualizo quando leio essa obra. E, novamente, um riso frouxo derrama-se pelos meus lábios... Seria a alegria que surge quando testamos o universo com justiça? E novamente Lewis me ensina que é possível encontrar a alegria, mesmo em mundo em que os homens estão afeitos ao caos e à selvageria. Existe no cosmos um potencial de felicidade.