sábado, dezembro 31, 2022

Balanço cinematográfico de 2022

Ao longo do ano de 2022, estabeleci a meta audaciosa de assistir a 70 filmes. Não é uma quantidade absurda. Facilmente poderia ter sido vencida. Mas não consegui. Cheguei ao 62 filmes. Uma quantidade - pelo menos - razoável.

O que me anima é que consegui ver todos os doze - um por mês - filmes do mestre Akira Kurosawa aos quais havia proposto a mim mesmo. Vistos foram 15 no total. Após essa experiência, coloca o diretor japonês como um dos gênios da história da humanidade. Kurosawa é o mais ocidental dos diretores orientais. Um mestre em todos os sentidos. Ele conseguiu por meio de experimentos e inovações técnicas criar uma série de discípulos que vão de Sergio Leone a George Lucas. 

Fiz uma pequena lista - pessoal - com os 10 melhores filmes de Kurosawa vistos ao longo de 2022. 

1 - Trono manchado de sangue (1957)

2 - Ran (1985)

3 - A fortaleza escondida (1958)

4 - Kagemusha, a sombra do samurai (1980)

5 - Viver (1952)

6 - Sonhos (1990)

7 - Escândalo (1950)

8 - Rapsódia em agosto (1991)

9 - Sanjuro (1962)

10 - O barba ruiva (1965)

segunda-feira, dezembro 12, 2022

"Capitães de Areia": algumas palavras

            

Jorge Amado é um dos escritores brasileiros que menos li e que mais eu preciso ler. Com este livro sobre o qual escrevo, é a terceira leitura. Sua vasta obra, repleta de paisagens diversas é um importante afresco sobre uma dimensão do Brasil a partir da Bahia. A ideia daqui para frente é visitar uma obra por ano do autor de “Cacau”, “Mar Morto”, “Suor”, entre tantas outras obras que criaram uma espécie de deslumbrante painel sobre o fascinante povo baiano.

O livro da vez foi “Capitães de Areia”, de 1937. Trata-se de um romance, cujo narrador onisciente nos apresenta um grupo de garotos desamparados. Moradores de um trapiche, próximo a uma praia, o bando sobrevive afoitamente, cometendo pequenos furtos e desafiando as autoridades da capital baiana.

O grupo é chefiado por Pedro Bala, um órfão que lidera o grupo formado por uma dezena de meninos abandonados – há um leitor, um malandro que conquista prostitutas; há o beato, o desejoso pelo cangaço; um coxo, alma mais amarga e vingativa do grupo. Na parte dois da obra, aparece a figura de Dora, uma menina órfã de mãe, que fora vitimada pela bexiga. Inicialmente, há uma hostilidade contra ela, mas, depois, ela passa a ser benquista pelo bando. A adolescente passa a exercer o papel arquetípico da mãe que eles não possuem. Ela é o lado terno, feminino, capaz de mudar o ambiente. Dora inicia um romance com o chefe do grupo, consolidando um relacionamento entre aquele que chefiava os garotos – e a única mulher da comunidade –, um tipo de mãe.

Cena do filme "Capitães de Areia", de Cecília Amado

A obra faz parte da chamada 2ª geração modernista. Está inscrita no romance de 30. Reverbera nela uma forte crítica social. Vale mencionar que o chamado Romance de 30, mobilizou escritores para refletir a respeito de um país que passava por enormes mudanças. Logo após o fim da República Velha (1889-1930), o país inicia um outro período com mudanças políticas, econômicas e sociais. O outrora país agrário e refém das oligarquias regionais – vale mencionar os casos de São Paulo e Minas Gerais que, durante a Primeira República, revezavam-se na escolha dos presidentes do país, naquilo que ficou conhecido como a República do Café com Leite – começa a se industrializar. Novos atores políticos
emergem. O eixo do poder se consolida no Centro-Sul. Getúlio Vargas passará a ser o principal nome da política nacional nos próximos vinte anos.

Mesmo em face dessas transformações, nota-se o quanto o Brasil continuava atrasado em relação às grandes economias capitalistas. Jorge Amado, um baiano, filho de uma tradicional família do estado, entra no debate político, que demonstra de forma realista as chagas sociais de um país que precisa superar os seus problemas; iniciar um novo ciclo; superar os antagonismos.

Amado é o primeiro escritor a dar visibilidade ao papel de jovens adolescentes malandros. Havia um consenso que buscava enquadrar esses jovens como bandidos e marginais desocupados. Isso fica provado em dois momentos do romance: (1) na reportagem que surge no início da obra, trazendo as escusas do diretor do reformatório, defendendo-se das acusações de maus-tratos contra jovens institucionalizados; (2) quando Pedro Bala é apreendido e experimenta a tortura na própria pele numa instituição para menores.

Nota-se, assim, o olhar benevolente e generoso de Amado para a condição desses jovens. Sua tese era a de que garotos eram obrigados a praticar pequenas infrações pelo fato de não possuírem uma estrutura familiar favorável e o Estado não assumir o seu devido papel ante tão grande calamidade. Durante o Estado Novo, período conhecido como a Ditadura de Vargas (1937-1946), mais de 800 exemplares da obra foram queimados em praça pública. Observa-se que a mensagem da obra atingiu em cheio o poder oficial. Aqueles que controlavam o Estado entenderam a poderosa crítica escrita por Jorge Amado.

Jorge Amado


O escritor procura humanizar os garotos desumanizados por suas histórias de vida. Um exemplo é a personagem Sem-Perna. Após ter se inserido em uma família com o objetivo determinado de roubar, fica balançado entre a opção de cumprir as demandas do grupo e ceder aos afetos recebidos pela família que o acolheu. Nota-se, assim, que a principal carência dos meninos era de aceitação e afeto. Para que aquele bando de malandros juvenis pudesse abandonar aquele ciclo de contravenções, era necessário que tivessem algumas de suas carências preenchidas. Apesar da brutalização, da vida clandestina, há a clara tese de que o afeto, a necessidade de um lar, de uma vida segura e com as necessidades primárias atendidas, é um imperativo para todas as pessoas.

O livro possui uma mensagem atemporal. Passados mais de 80 anos da escrita, o país avançou em algumas questões, mas não entendeu a necessidade de proteger integralmente os direitos de crianças e adolescentes. Ainda vigora uma noção punitivista a respeito dos jovens que cometem ilícitos; uma defesa intransigente por certa porção da população brasileira que desconhece a realidade de milhões de brasileiros e brasileiras pobres que vivem nas periferias do país. O combate que evita o cometimento desses atos não é a repressão, mas a existência de políticas públicas que garantam os direitos sociais às famílias mais pobres. Certamente, foi essa a mensagem que atravessa o tempo deixada por Jorge Amado.

sábado, dezembro 10, 2022

Um comentário sobre a Bíblia

                          

Hoje, enquanto ziguezagueava pelo Facebook, encontrei uma reportagem da BBC Brasil a respeito do dilúvio contadopela Epopeia de Gilgamesh, um fascinante relato sobre como se deu a luta entre homens e deuses nos primórdios dos tempos. A reportagem chamava a atenção para o fato de que, a Epopeia que é muito mais antiga que os relatos bíblicos, já descrevia a existência de um dilúvio com características bem próximas daquelas aludidas no texto bíblico do Gênesis.

Li certos comentários – poucos. Alguns que questionavam a autoridade da Bíblia; já, outros, enaltecian sua suposta grandiosidade. Vivendo em um país cristão e, deveras, religioso, é algo natural que se faça uma defesa apaixonada de suas prerrogativas. Também deixei um comentário. Ei-lo abaixo:


A Bíblia é a experiência religiosa de um povo, no caso, os judeus, que foi transformada em registro sagrado. O que há na Bíblia é antropologia. É o desejo do homem em alcançar a eternidade. É a fé erguida por meio da linguagem. Boa parte dos escritos bíblicos está eivado de relatos mitológicos, principalmente, certos trechos do Antigo Testamento. Dizer que a Bíblia foi escrita por mais de 40 escritores diferentes; que os relatos compreendem mais de 3 mil anos; que ela mudou gerações, civilizações, não quer dizer nada. Na Índia, o Bhagavad Gita também tem mudado gerações; o Alcorão, também, tem feito isso no mundo islâmico. O cristianismo se tornou uma religião hegemônica no Ocidente. Durante muito tempo, nascer no Ocidente era automaticamente se tornar um seguidor de Jesus nos seus mais variados eixos - católico, protestante, ortodoxo etc. Quem não o fizesse era perseguido sob o risco de perder a própria vida; ou pagava duramente com o ostracismo social e político.

Os judeus, um dos povos mais fracos da Antiguidade, que não tinham nada de mais a oferecer; que não possuíam um exército forte; que não manobravam em rotas comerciais pelo Mediterrâneo à semelhança dos fenícios, foi dono de uma das maiores estratégias da história da humanidade: que foi fundação de uma religião nacional monoteísta sob a égide de Javé. Daí pra frente, nós conhecemos o resultado. Dizer que a Bíblia transforma as pessoas que são expostas a ela também não quer dizer nada. Como um livro compilado por uma série de eventos, o principal ator nas suas páginas é o ser humano com todas as suas fragilidades e fragmentações, diante do desejo, do medo, da angústia, diante do numinoso, como diria Rudolf Otto.

P.S. Além disso, encontrei esse vídeo entusiasmante e esclarecedor no Facebook sobre a famosa Epopeia e sua relação com a Bíblia.

terça-feira, dezembro 06, 2022

"O Barba Ruiva", de Akira Kurosawa


Domingo, tive o privilégio de assisti ao longa “Barba Ruiva”, de Akira Kurosawa, de 1965. Após ter iniciado em três outras ocasiões – mas sem sucesso -, à tarde, demorei-me por um bom tempo no sofá, acompanhando a bela e delicada obra do mestre japonês. É um trabalho lento, sinuoso, que aposta em planos escuros. Uma fotografia bela e digna de Kuroswa. Exige-se atenção para que se consiga acompanhar os diálogos nas mais de três horas do filme.

No Japão do século XIX, um jovem e ambicioso e altivo médico recém-formado, procura trabalhar para um “shogum”. Isso permitiria tranquilidade e uma possibilidade de ascensão na carreira. Todavia, acaba sendo designado a desenvolver as suas atividades em uma aldeia, num hospital que atende pessoas pobres, exposto às experiências mais dramáticas e desafiadoras. Neste hospital, ele vai trabalhar sob a supervisão do doutor Niide (Toshiro Mifune), conhecido pela alcunha de “barba ruiva”. O médico é respeitado pela firmeza moral e pela postura humanista. Niide procura mostrar ao jovem médico que por trás de todo paciente existe um ser humano, alguém que precisa ser atendido com desprendimento, com carinho, com os rigores de uma solicitude que suprime o preconceito e a indiferença. O filme deveria ser obrigatório para todos aqueles que desempenham uma função de atendimento ao público, principalmente médicos.

“Akahige” (em japonês) é uma obra que aponta para uma crença profunda na humanidade. É o sensível olhar do diretor para a fragilidade da vida; e como ela não pode ser colocada em um segundo plano. A vida é um exercício que desenvolvemos e que, só passa a ter sentido, quando a realizamos com altruísmo e simpatia.

“Barba Ruiva” é a última obra que Kurosawa realizou ao lado do genial ator Toshiro Mifune. O filme demorou dois anos para ficar pronto. Kurosawa levou a paroxismos a dimensão dos detalhes. Prendeu Mifune em um contrato, que não permitia que o ator realizasse outros trabalhos. Isso acabou por gerar contendas recíprocas. Ao final, os dois cindiram as relações. Não mais trabalhariam juntos. Uma perda irreparável.


segunda-feira, novembro 21, 2022

Algumas palavras sobre "A filosofia na era trágica dos gregos".

 



                Terminada a leitura de “A filosofia na era trágica dos gregos”, resta-me a sensação de idílio. Para os padrões de Nietzsche, trata-se de um texto aparentemente simples. Todavia, o escrito apresenta grandeza, eloquência e a apaixonada retórica poética tão costumeira na obra do filósofo alemão.

                O texto é resultado de uma série de ensaios escritos quando ocupava a cátedra de filologia na Universidade da Basileia. Trabalhar os gregos o empolgou. Observa-se pelo espírito da obra. Pela força que evoca. Nota-se uma energia vital. Um entusiasmo incontrastável em cada palavra. Escolher os pré-socráticos para servir de motor ao seu pensamento, sempre foi um projeto ontológico para o filósofo.

                Nietzsche chama a atenção para o fato de que os pré-socráticos foram os responsáveis por tirar o mundo ocidental do pensamento mítico. Eles ajudaram os gregos a tirarem os olhos do céu e colocarem na natureza (“physis”). O homem grego, simplesmente, baixou a cabeça para terra. As respostas que davam sentido à vida poderiam ser compreendidas a partir daqui, fundando uma nova perspectiva. Ou seja, na natureza, por seus elementos e processos regidos por leis, era possível entender o significado da própria vida.

                Esses filósofos foram responsáveis por criarem sistemas; buscaram respostas para indagações; procuraram encontrar um elemento capaz de sintetizar o vórtice causador do mundo, das coisas, da realidade. Fica nítida a predileção de Nietzsche por Heráclito, a quem chama de “filósofo do vir a ser”. Para ele, o filósofo Heráclito não consegue enxergar outra coisa a não ser o fluxo do devir. E, acerca disso, todo aquele que olha para a vida não deve se amedrontar; deve encontrar o sentido trágico por excelência.

                A tragédia é a força que rompe a mediocridade do mundo. Ela permite que se olhe para a vida como um combustível para transformar a existência numa obra de arte. Nota-se aqui, que mesmo sendo um texto de juventude, traz alguns supostos que serão indissociáveis do pensamento de Nietzsche. “O mel é, segundo Heráclito, a um só tempo doce e amargo, e o próprio mundo é um caldeirão que precisa ser constantemente mexido” (p.60). Ou seja, o filósofo grego com isso demonstra que a própria realidade não deve ser encarada como uma leitura acabada, estática. Aqui se coloca uma resposta a Parmênides.

                Segundo Nietzsche, Parmênides é um “profeta de verdade”; “uma luz fria e ofuscante”. Ele foi “esculpido em gelo”. Seu mundo é frio. É como a superfície de um lago congelado. Enquanto em Heráclito a vida salta, dança, acumula a potência do trágico; brinca, olha para a realidade como se fosse a primeira vez. É um rio de águas buliçosas que flui. Em Parmênides, há uma necessidade de afirmar que “o ser é”. Ele é indivisível, pois, se assim não fosse, ele não teria como ser.

                O livro apresenta o jovem Nieztsche. À época, ele tinha pouco mais de 24 anos de idade. Sua mente inquieta estava sendo agitada por ondas wagnerianas. Nota-se uma interpretação artística daquilo que que foi pensado pelos primeiros filósofos gregos que vieram antes de Sócrates. A mensagem que fica é que todo sujeito que se diz filósofo precisa treinar o olhar. Deve aprender a saborear a própria vida. Afinal, é isso que o sábio faz quando percebe e aceita a novidade que pulsa no real. E desse material sempre renovado pela inexorabilidade do devir que vamos melhorando a própria vida.

               

segunda-feira, outubro 31, 2022

Jair, o homem pequeno


Segundo reportagem da Folha de São Paulo, Jair Bolsonaro foi dormir cedo após saber que havia sido derrotado nas urnas. As luzes do Palácio da Alvorada apagaram por volta das 22h06. Uma clara metáfora de um dos governos mais ineptos da história da República. Assessores e membros do Governo tentaram dialogar com o presidente. A imprensa queria ouvir as suas palavras. Um único pronunciamento que fosse de reconhecimento da vitória de Lula. Todavia, “o imbrochável” não demonstrou grandeza nem quando perdeu. Esquivou-se em um aceno de orgulho e covardia.

A reportagem da Folha ainda afirma que ele esteve a maior parte do dia com o filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro, implicado no esquema das rachadinhas. Como deve ter estado o seu humor? Como terá falado com a Michelle? Diz um dos capítulos da história que Nero, após ter ateado fogo em Roma, ficou do alto do seu palácio tangendo uma harpa, enquanto a cidade pegava fogo. Após o episódio, dirigiu a culpa do evento aos cristãos. Bolsonaro ateou fogo no Brasil nos últimos quatro anos (outra metáfora) e, à semelhança de Nero, não se responsabilizou. A diferença entre os dois é que Bolsonaro nem para tanger harpas possui talento. É medíocre. É pequeno. A única habilidade da qual é detentor é a da ignomínia.

Muita gente sofreu nos últimos quatro anos. Se ele não foi responsável direto pela pandemia, deve ser imputada a ele a negligência e o desdém com que a tratou. 400 mil vidas poderiam ter sido salvas. Famílias sofreram seus dramas. Como no episódio bíblico dos hebreus no Egito, o anjo da morte visitou milhares de lares brasileiros. A vacina era “o sangue” que deveria nos proteger. Ele não o fez. Retardou o quanto pôde a aquisição. Como o faraó do texto bíblico, riu, escarneceu. Imitou as pessoas que morriam sem ar. À semelhança dos mágicos que buscavam imitar o que estava acontecendo no Egito por meio de ilusionismos para impressionar o faraó, alguns médicos desonestos indicaram remédio sem nenhuma comprovação científica.

Mesmo com alguns desses absurdos, recebeu mais de 50 milhões de votos. Algo que impressiona. Quando votaram em Bolsonaro, em quê essas pessoas estavam votando? Qual a mensagem que fica, mesmo tendo experimentado o que experimentaram nos últimos quatro anos?

Recolheu-se no Palácio. Apagou as luzes o homem pequeno. Talvez, tenha ficado em posição fetal. Talvez, nem tenha conseguido dormir. Como estava o seu humor? Como uma criança mimada, talvez tenha ficado emburrado. Tenha se enchido de melindres. Culpado os outros. E, certamente, não reconhecerá os próprios erros. Não fará uma “mea culpa”. Afinal, o que se faz quando não se sabe tanger uma harpa?

domingo, outubro 23, 2022

As contradições do mundo evangélico

 

O mundo evangélico é amplo e complexo. Afirmo isso, pois já estive lá. Há vertentes das mais variadas - protestantes históricos, pentecostais e neopentecostais. Dizer que todos são iguais é uma generalização perigosa. Mas, hoje, dois de cada três eleitores evangélicos optam por Bolsonaro, o que revela uma flagrante contradição a respeito dos valores cristãos que o segmento afirma defender.

Presos a chavões, a debates nulos e a clichês insossos, muitos evangélicos esquecem o fundamento da mensagem dos profetas e se agarram ardorosamente àquilo que é falado por pastores mal intencionados. Ignoram a dura mensagem do profeta Amós contra a aristocracia corrupta e mentirosa de Jerusalém. Abandonam a essência da mensagem dramática do profeta Jeremias, que pregou durante quarenta anos para que o povo convertesse o coração à justiça e à verdade. Esquecem a mensagem do profeta Habacuque, que esperava por dias em que a verdade e a justiça triunfariam, "mesmo que não houvesse frutos nas vinhas" (Hc 3.17).

E, acima de tudo, fecham os olhos para o coração da mensagem de Jesus, que é a paz, a tolerância e o amor ao próximo (Mt 5.38-48). Gosto, especialmente, de uma passagem do Sermão do Monte em que Jesus diz: "Portanto, se estiveres para trazer a tua oferta ao altar e ali te lembrares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta ali diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; e depois virás apresentar a tua oferta" (Mt. 5.23-24).

Há uma inversão a respeito desse ensinamento, pois alguns cristãos, tendo contenda consigo e com o mundo, levam primeiro suas ofertas a Deus (que deve ser entendida como culto, dádiva, entrega), ignorando completamente a noção de que não existe oferta aceita pela eternidade sem que haja concórdia, paz, acerto com o outro. Sem tolerância, sem amor ao próximo, oferecer a oferta é um grande erro. Fé sem amor é um ato fingido; esperança sem amor, é um equívoco em si mesmo. (1 Co 13.13)

No vídeo, o pastor Ed René Kivitz reflete um pouco sobre as contradições de uma igreja evangélica que faz opção por uma mensagem ostensivamente anticristã. 

quarta-feira, outubro 19, 2022

Viagem a Ouro Preto - algumas impressões históricas


Museu dos Inconfidentes

            Ao longo de três dias, tive o grato privilégio de visitar Ouro Preto, uma das cidades mais bonitas e icônicas do Brasil. Ao longo de minha jornada estudantil, havia aprendido que a cidade fora um importante palco da história do país – principalmente, por causa da Inconfidência Mineira e pelo grande acervo de obras artísticas.

Cheguei à cidade à noite. Ainda à distância, a primeira imagem que pude testemunhar, enquanto descia de carro uma escarpa que leva à cidade, foi uma igreja iluminada. A construção se destacava em meio ao casario que se ocultava na escuridão e revelava na treva apenas os olhos pequenos e notívagos das janelas iluminadas. Fiz uma pequena caminhada pelo pátio da Praça principal da cidade. Olhei o obelisco construído no lugar em que a cabeça de Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes, ficou exposta após receber a pena capital. Desta posição, o prédio que mais se destaca é o Museu dos Inconfidentes, lugar dedicado à memória da Inconfidência. Deambulei pelo pátio de pedra. Senti as emanações do vento agradável que soprava nos mais de mil e cem metros de altitude.

Tive dois dias completos para poder explorar a cidade. Pouco. Muito pouco. Poderia ter passado uma semana por lá. Como pude logo perceber, quando se visita a cidade, a impressão que passamos a ter é a de que a história continua viva; que os principais personagens que a fizeram ainda continuam por ali. As pedras do calçamento revelam os segredos das violências ali urdidas. Ladeiras imensas. Dirigir é um grande desafio. Há ladeiras que nos enche de incredulidade sobre a possibilidade do carro conseguir galgá-las.

Altar da Igreja de Santa Ifigênia

            Ouro Preto possui mais de 320 anos desde a sua fundação. Ela é resultado da ânsia da Coroa Portuguesa pelo achamento de pedras preciosas. O comércio do açúcar havia esgotado ainda no século XVII. Os holandeses levaram a tecnologia da produção para o Caribe. A técnica melhor aplicada e a proximidade física com a Europa impuseram a Portugal uma avassaladora derrota no antigo posto de grande produtor de açúcar no Ocidente. Os primeiros indivíduos que chegaram à cidade à procura de metais preciosos – principalmente diamantes e ouro – foram os bandeirantes. Descobriram ouro no leito dos rios. O nome da cidade deriva desse fato, pois o ouro encontrado estava misturado a pedras escuras por causa do minério de ferro. Todavia, inicialmente ela foi chamada de Vila Rica e foi tornada capital da província de Minas Gerais até o final do século XIX, quando houve o projeto de mudança para Belo Horizonte.

A partir da descoberta do ouro, houve uma vertiginosa corrida para a cidade. Ouro Preto se tornou um dos centros mais populosos da América Latina. Estima-se que a sua população passasse dos cem mil habitantes em pleno século XVIII, uma população dez vezes maior do que a população da cidade de São Paulo. O fluxo passa a ser intenso. Minas passam a ser exploradas, o que torna a cidade em um verdadeiro “queijo suíço”. Essas minas eram exploradas quase 24 horas por dia pela mão-de-obra escrava. Estima-se que mais de quatrocentas minas foram abertas na cidade. Todas elas indicam o quanto foi intensa a atividade mineradora.

Monumento construído no lugar em que a cabeça de Tiradentes foi exposta

            Portugal desde o princípio, procurou impelir um movimento para controlar essa produção. Foram instituídas as Casas de Fundição, que imprimiam o selo real ao ouro que era achado. Instituiu-se a Derrama, um imposto de vinte por cento de tudo aquilo que era achado. Com isso, havia cotas estabelecidas no padrão de 100 arrobas ou 1500 quilos de ouro anuais que deveriam ser achados e entregues à Metrópole. O objetivo dessa exploração era quitar dívidas com a Inglaterra. Apenas uma pequena porção desse ouro ficou na cidade. Ele pode ser encontrado no altar das belas igrejas. A grande maioria do ouro se encontra na Inglaterra.

Como a atividade mineradora foi entrando em declínio e Portugal continuava com a sua sanha para arrecadar os mesmos valores, as dívidas dos colonos passaram a números absurdos. Bens, propriedades, joias, móveis, passaram a ser confiscados. A Inconfidência nasce como um movimento que buscava acabar com os abusos cometidos pela Coroa Portuguesa. Havia ainda uma iniciativa separatista. Outro projeto era a criação de uma universidade na cidade. Os inconfidentes como ficaram conhecidos, foram motivados pelas mudanças que estavam acontecendo na Europa e pela independência das 13 Colônias na América do Norte, formando aquilo que conhecemos hoje como Estados Unidos. A independência de um país com moldes liberais como se dera nos Estados Unidos, em 1776, mobilizava o entusiasmo de nomes como o do poeta e jurista Tomás Antônio Gonzaga, autor de “Cartas Chilenas”, “Marília do Dirceu” e um manual de direito natural, escrito pela ocasião da sua formação em Portugal. Gonzaga é um dos grandes nomes do Arcadismo. Outro importante nome é o do advogado e poeta Claudio Manuel da Costa, que acabou, segundo versão canônica dos livros de história, se matando na prisão. Esse é um fato controverso, conforme pude apurar com alguns guias. É possível que ele tenha sido morto por tudo aquilo que sabia. Alvarenga Peixoto é outro nome importante. Peixoto acabou sendo degredado de forma permanente para a África. Ele é o responsável pela escrita da frase latina da bandeira de Minas – “Libertas quae sera tamen”, extraído de um verso do poeta romano Virgílio. Além desses há a figura de alguns cônegos e o caso emblemático do alferes Joaquim José da Silva Xavier, “o Tiradentes”, que teve a sua pena assinada pela rainha Maria I. O movimento foi traído por Joaquim Silvério dos Reis.

Igreja de São Francisco de Assis

           Vale mencionar que o Iluminismo também foi uma importante influência. Claudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga talvez sejam os dois grandes mentores intelectuais do movimento. Os dois haviam estado na Europa e certamente entraram em contato com os textos dos contratualistas franceses e ingleses. A vocação liberal era um dos lemas do movimento.

Enquanto caminhava pelo calçamento de pedra e sentia o cheiro dos monumentos, percebia o quanto a força dos escravos foi responsável pela construção da cidade. Isso está posto nos museus, nas igrejas, nas pedras das ruas, nas paredes dos casarões, no silêncio escuro e úmido das minas. Os escravos foram a força motriz que ergueu a cidade. Os rastros da violência institucionalizada estão colocados nas esquinas, na forma como se organizavam as missas, na obrigatoriedade de seguir a fé cristã, mesmo sendo oriundo de um local em que essa tradição não existia.

Um exemplo dessa relação de violência pode ser demonstrada no processo de construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e Santa Ifigênia, erguida entre os anos de 1733 e 1785. Ifigênia segundo reza a tradição era de Noba – na Etiópia -, e teria se convertido pela pregação do evangelista Matheus. Era negra. Consagrou a sua virgindade a Deus. Mais tarde, sendo obrigada a casar com um tirano, recusou de forma peremptória. O cruel monarca decidiu, por isso, incendiar o convento onde Ifigênia e outras mulheres se dedicavam ao serviço religioso. Quando as chamas devoravam a construção, elas decidiram invocar o nome de Jesus. Milagrosamente, o incêndio apagou e iniciou no palácio do rei. Em sua imagem, nota-se uma chama em uma das suas mãos. Ela é a padroeira da igreja. A Igreja de Santa Ifigênia foi construída pelos e para os escravos. É a única na cidade com esse objetivo. Nas demais igrejas históricas (quase vinte), os escravos não ocupavam dignamente os espaços de culto. Assistiam à missa do lado de fora. E, nesse sentido, notamos a terrível violência praticada contra eles e: (1) por não terem direito ao culto, já que a premissa básica do cristianismo é de que todos são iguais perante Deus; (2) a obrigatoriedade de cultuarem as mesmas divindades dos seus algozes. Não fazia sentido, assim como hoje não faz sentido.

Muitas expressões usadas até os nossos dias, principalmente em Minas Gerais, são resultado da relação de violência perpetrada contra os escravos. A sociabilidade brasileira está saturada por um imaginário de encobrimento do outro. São exemplos: “dar no couro”; “enquanto descansa, carrega pedra”; “levar a égua”; “serviço de meia tigela”; “encher o bucho”; “olha o passarinho”; “cair no conto do vigário”; “santo do pau oco”; “tirar o cavalo da chuva”; “estar com o burro na sombra”; “para inglês ver” entre outras. Essas expressões indicam o quanto a violência e as relações de dominação e expropriação fazem parte do nosso imaginário. Expressões racistas também são repetidas, às vezes, sem que se faça a devida reflexão da violência simbólica que elas disseminam – “Você está me denegrindo”; “A coisa tá preta”; ou “Isso é magia negra”.

Basílica Matriz de Nossa Senhora do Pilar

             Outra página importante são igrejas. Todas construídas para indicar a opulência de um momento importante da história do Brasil e da cidade. E, nesse sentido, Ouro Preto é um dos mais importantes centros do mundo com essa característica. Na cidade, o barroco e o rococó se firmaram como movimentos complementares. Tive a oportunidade de visitar quatro das mais bonitas igrejas da cidade – a já mencionada Igreja de Santa Ifigênia e outras três que revelam o apuro e a meticulosidade do trabalho de embelezamento: Igreja de São Francisco de Assis, repleta de obras de Aleijadinho e um dos tetos barrocos mais bonitos do mundo; Igreja de Nossa Senhora do Carmo, com forte estilo fincado na tradição rococó; e a Basílica Matriz de Nossa Senhora do Pilar, que possui um dos altares com maior quantidade de ouro do Brasil (mais de quatrocentos quilos).

Nota-se em cada igreja a preocupação com o significado dos elementos. O fiel ao entrar em cada igreja deveria ser absorvido por aquilo que via. Sendo assim, há uma imposição de elementos aos sentidos e à cognição. A monumentalidade das construções deveria “dizer” algo. Há uma profusão de referências explícitas ou, às vezes, veladas. O observador comum e desatento deixa passar a maior parte dos detalhes. O teto, o altar, os afrescos, os azulejos; nas referências sagradas ou profanas, há uma indução para que o fiel seja direcionado à divindade. O que importa é o esfuziamento de detalhes e as impressões geradas. Pode-se ficar por horas e horas contemplando o multíplice conjunto de minúcias. E aqui assinalamos uma importante questão: pode-se fazer uma viagem à cidade, simplesmente, para observar as igrejas. São extraordinárias.

Enquanto saía da Igreja de São Francisco de Assis, um senhor fez uma indagação que me deixou pensando. A pergunta veio sem que eu esperasse e, por isso, causou um súbito efeito. Perguntou ele: “A turma de há duzentos anos deixou isso para que nós pudéssemos ver; e, nós, o que vamos deixar para aqueles que viverão daqui a duzentos anos?”. Fiquei sem saber o que dizer. Seu questionamento é inquietante. 

Ouro Preto, assim como as outras cidades mineiras que compõem o Ciclo do Ouro – Mariana, Congonhas, São João del Rey, Sabará, Tiradentes etc – são textos abertos para que possamos ler e nos deleitar. Depois de visitá-la (espero um dia voltar novamente) pude compreender um pouco mais a nossa história tão “ignorada e tão mal contada” e me bateu um desejo profundo de saber mais sobre os eventos que envolvem essa página do país.

 

           

terça-feira, outubro 18, 2022

"A troca", de Clint Eastwood

 

 "A Troca" é uma produção do ano de 2008. Leva a marca Clint Eastwood - é longo, possui um bom enredo e uma forte convergência para o drama. A história é baseada em fatos reais. O roteiro foi escrito por J. Michael Straczynski, um experimentado mestre em transpor para o papel, intrincadas histórias policiais. O filme se baseia em fatos ocorridos em Los Angeles, no ano de 1928. 

Existem três eixos sob os quais o filme se assenta: (1) a corrupção policial e as manobras do poder público; (2) as marcas da violência e o quase fracasso do indivíduo perante essa inexpugnável força de instituições corruptas ; (3) e como a sociedade age diante de fatos com grande repercussão pública.

Essas três questões gravitam em torno do fato principal do filme - a violência atroz contra crianças. É uma excelente história. O liame dos fatos revelam a mão habilidosa de Eastwood. As mais de duas horas de filme não constituem um obstáculo. Não se observa a passagem do tempo. O filme possui sequências muito bem montadas, com fatos que acontecem em paralelo, criando um excelente efeito. Eastwood ainda se utiliza de "flashbacks" que encaixam muito bem, reforçando a noção de suspense e drama. Tudo é muito bom!


quarta-feira, outubro 05, 2022

Algumas palavras sobre "Úrsula", de Maria Firmina dos Reis

 

                Maria Firmina dos Reis é um nome importante da literatura brasileira. Nasceu no Maranhão, no ano de 1822. Ou seja, há duzentos anos. Como se pode observar, Maria veio ao mundo no ano em que o Brasil se tornou um país politicamente independente. Sua história é típica das pessoas negras deste país. Ela, uma mulher culta, professora, tem sido negligenciada, não recebendo uma fortuna crítica à altura de sua obra.

                Seu principal texto – “Úrsula” – só se tornou efetivamente conhecido nacionalmente nos anos 60 do século XX – mais de cem anos após a sua publicação. Três fatores, talvez, expliquem a “invizibilização” de sua obra:

(1) o fato de ser uma mulher. O número de mulheres que fizeram literatura no século XIX é inexpressivo. Citam-se os casos de Nísia Floresta, Júlia Lopes de Almeida, Emília Freitas entre outras; números que podem ser contados nos dedos. A maior parte das obras era constituída por folhetins inocentes. O Brasil era um país rigidamente patriarcal. Às mulheres cabia um papel subalterno.  Uma das principais preocupações era para que as mulheres se mostrassem discretas e não aparecessem em público, pois assim não envergonhariam o pai ou o marido. A instrução entre o sexo feminino era quase inexistente. A maior preocupação de uma mulher dizia respeito à capacidade que ela teria de arranjar um casamento e ser uma boa esposa. Maria Firmina é predecessora de outros comportamentos. Um exemplo é o fato de ela ser a primeira mulher a ser aprovada em um concurso público para professor no estado do Maranhão. Mais tarde, ela fundaria uma classe híbrida com meninos e meninas, algo impensado para a época.

(2) Maria Firmina era uma mulher negra em uma sociedade patriarcal e provinciana. Filha de uma mulher branca com um homem negro, Firmina tornou-se órfã ainda muito jovem. Por conta desse fato, foi morar com uma tia. Nesse novo ambiente, ela entrou em contato com os livros e com uma educação mais refinada. A escritora em um espaço como esse, certamente, viveu uma amarga solidão. Pesava ainda o fato de que era negra. O texto escrito, o manejo da palavra, era um privilégio de pessoas brancas.

(3) O Maranhão ficava distante da Capital do país. Anos mais tarde, o Maranhão teria importantes figuras da literatura nacional. Vale mencionar os nomes dos irmãos Azevedo – Arthur e Aluízio. Este, por exemplo, será um dos principais nomes ligados à escola naturalista. Livros como “O Cortiço”, “O mulato” e “Casa de pensão” são marcos importantes da literatura brasileira, produzidos por um grande escritor maranhense. Mesmo diante de um fenômeno com essas características, o Rio de Janeiro era considerado o centro das produções literárias brasileiras. José de Alencar, Machado de Assis, Manuel Joaquim de Macedo entre outros estavam por lá. O que uma mulher – negra – de um espaço provinciano poderia produzir? Muita gente deve ter torcido o nariz para esse fato. E, analisando sobre esse ponto de vista, Maria Firmina é um grande fenômeno.

                Esse ponto é corroborado pelo fato de que, mesmo tendo vivido quase cem anos, não se sabe ao certo como era a feição de Maria Firmina dos Reis. Desconhece-se como era o formato do seu rosto; a cor do seu cabelo. Chega-se a essa conclusão por causa da origem de seus pais. Esse episódio ilustra como Maria Firmina desperta interesse pela grandiosidade e originalidade de sua obra. “Úrsula” é um caso muito significativo da literatura brasileira, que desperta um grande interesse.

                A história é simples. Possui um enredo e estética românticos. O texto não se diferencia de qualquer dos escritos de José de Alencar. A estética de Maria Firmina é singela. Sentimos todo aquele “afetamento” na linguagem, criando uma experiência, às vezes, capaz de criando um enfado na leitura. Mas, vale mencionar que apesar de ter os pés fincados na tradição romântica, Maria Firmina procura revestir as suas personagens com uma nobreza de caráter distinta daquela feita pelos demais escritores da época. É importante salientar que o texto de Maria Firmina fornece um outro olhar para o papel da mulher e do negro numa sociedade marcadamente patriarcal, desigual e escravista. Um exemplo são os textos do já mencionado escritor cearense José de Alencar.

                Quando se verificam textos como Iracema e o Guarani, é patente o esforço de Alencar de construir um mito de fundação, um conceito de nacionalidade. Todavia, observa-se que o material usado pelo escritor cearense para realizar esse feito é a conformação, o idílio, a subalternidade em relação à história contada pelos europeus. Alencar procura por em evidência construção do Brasil como se aqui fosse um paraíso, estruturado a partir do encontro dos brancos desenvolvidos e civilizados europeus com o índio bravo e heroico. O Brasil seria, portanto, o encontro do bravio e do indômito com a civilização branca e cristã vinda do Norte. O negro é colocado à margem. Sua importância não é mencionada. O tratamento e a importância do negro são deixados de lado.

                A importância de Úrsula reside nesse quesito, pois a perspectiva apresentada sobre o negro e sobre a mulher é modificada. O negro deixa de ser um ente doce, passivo, resignado à sua condição e passa a ter uma história – e muita dignidade. Os dois personagens Túlio e a negra Suzana são descritos de tal forma a evidenciar o quanto são nobres e infelizes por serem submetidos a uma estrutura injusta e anticristã. O narrador de “Úrsula” (narrador em terceira pessoa), preocupa-se em apresentar a violência sofrida pela velha escrava, que fora arrancada da África – da sua história, do seu povo, das suas crenças, de suas tradições – e trazida para viver em uma terra distante sob o rude manto da escravidão. Nesse sentido, Maria Firmina ressalta a importância e a dignidade do escravo.

Túlio é outro importante elemento na obra, pois sua personalidade é quase rousseauniana.  O jovem negro é apresentado como uma pessoa boa, apesar de toda o meio em que vive. Túlio é generoso. Bondoso. A forma como ele acolhe e cuida de Tancredo evidencia a sua personalidade. Maria Firmina afirma: “Era infeliz; mas era virtuoso”. Ao encontrar um homem branco caído em local ermo, Túlio poderia se aproveitar e saborear a vingança por toda a sua raça. Não. O jovem escravo leva aquele que seria o amor de “Úrsula” para a casa de sua senhora. E aqui é importante estabelecer uma conexão com a história bíblica do bom samaritano encontrada em Lucas 15.11-32. Essa nobreza de caráter fornece uma leitura diferente daquela ditada pelas relações materiais existentes no Brasil. “Úrsula” é considerado o primeiro romance genuinamente abolicionista da história da literatura brasileira.

Outro importante personagem é o Comendador, o tio de Úrsula. Sua postura é de controle completo sobre tudo. Sua vontade é assassina. Seus impulsos são de morte. A única linguagem que utiliza é a da aniquilação. O Comendador representa a figura do patriarcado e da aristocracia que dominava o país. É a figura do macho com apetite e hábitos irrefreáveis; capaz de perpetrar maldades extremas.

A obra é essencialmente romântica. A parte final é pessimista. Apesar de haver em seu enredo uma profunda perspectiva cristã – a prevalência do bem, da generosidade, da verdade, do sofrimento que é suportado com resignação e nobreza de caráter -, o final da história é marcado pelo pessimismo. Em “Úrsula” o bem se faz presente, representado na personalidade de personagens que são acossados pela crueldade dos fatos e do destino, todavia o desfecho dessas personagens é melancólico, com cintilações pálidas. Um livro importantíssimo de uma brasileira negra que muito disse e ainda tem muito a dizer sobre o Brasil.