Maria Firmina dos Reis é um nome
importante da literatura brasileira. Nasceu no Maranhão, no ano de 1822. Ou
seja, há duzentos anos. Como se pode observar, Maria veio ao mundo no ano em
que o Brasil se tornou um país politicamente independente. Sua história é
típica das pessoas negras deste país. Ela, uma mulher culta, professora, tem
sido negligenciada, não recebendo uma fortuna crítica à altura de sua obra.
Seu principal texto – “Úrsula” –
só se tornou efetivamente conhecido nacionalmente nos anos 60 do século XX –
mais de cem anos após a sua publicação. Três fatores, talvez, expliquem a
“invizibilização” de sua obra:
(1) o fato de
ser uma mulher. O número de mulheres que fizeram literatura no século XIX é
inexpressivo. Citam-se os casos de Nísia Floresta, Júlia Lopes de Almeida,
Emília Freitas entre outras; números que podem ser contados nos dedos. A maior
parte das obras era constituída por folhetins inocentes. O Brasil era um país
rigidamente patriarcal. Às mulheres cabia um papel subalterno. Uma das principais preocupações era para que
as mulheres se mostrassem discretas e não aparecessem em público, pois assim
não envergonhariam o pai ou o marido. A instrução entre o sexo feminino era
quase inexistente. A maior preocupação de uma mulher dizia respeito à
capacidade que ela teria de arranjar um casamento e ser uma boa esposa. Maria
Firmina é predecessora de outros comportamentos. Um exemplo é o fato de ela ser
a primeira mulher a ser aprovada em um concurso público para professor no
estado do Maranhão. Mais tarde, ela fundaria uma classe híbrida com meninos e
meninas, algo impensado para a época.
(2) Maria
Firmina era uma mulher negra em uma sociedade patriarcal e provinciana. Filha
de uma mulher branca com um homem negro, Firmina tornou-se órfã ainda muito
jovem. Por conta desse fato, foi morar com uma tia. Nesse novo ambiente, ela
entrou em contato com os livros e com uma educação mais refinada. A escritora
em um espaço como esse, certamente, viveu uma amarga solidão. Pesava ainda o
fato de que era negra. O texto escrito, o manejo da palavra, era um privilégio
de pessoas brancas.
(3) O Maranhão
ficava distante da Capital do país. Anos mais tarde, o Maranhão teria
importantes figuras da literatura nacional. Vale mencionar os nomes dos irmãos
Azevedo – Arthur e Aluízio. Este, por exemplo, será um dos principais nomes
ligados à escola naturalista. Livros como “O Cortiço”, “O mulato” e “Casa de
pensão” são marcos importantes da literatura brasileira, produzidos por um
grande escritor maranhense. Mesmo diante de um fenômeno com essas
características, o Rio de Janeiro era considerado o centro das produções
literárias brasileiras. José de Alencar, Machado de Assis, Manuel Joaquim de
Macedo entre outros estavam por lá. O que uma mulher – negra – de um espaço
provinciano poderia produzir? Muita gente deve ter torcido o nariz para esse
fato. E, analisando sobre esse ponto de vista, Maria Firmina é um grande
fenômeno.
Esse ponto é corroborado pelo
fato de que, mesmo tendo vivido quase cem anos, não se sabe ao certo como era a
feição de Maria Firmina dos Reis. Desconhece-se como era o formato do seu
rosto; a cor do seu cabelo. Chega-se a essa conclusão por causa da origem de
seus pais. Esse episódio ilustra como Maria Firmina desperta interesse pela
grandiosidade e originalidade de sua obra. “Úrsula” é um caso muito
significativo da literatura brasileira, que desperta um grande interesse.
A história é simples. Possui um
enredo e estética românticos. O texto não se diferencia de qualquer dos
escritos de José de Alencar. A estética de Maria Firmina é singela. Sentimos
todo aquele “afetamento” na linguagem, criando uma experiência, às vezes, capaz
de criando um enfado na leitura. Mas, vale mencionar que apesar de ter os pés
fincados na tradição romântica, Maria Firmina procura revestir as suas
personagens com uma nobreza de caráter distinta daquela feita pelos demais
escritores da época. É importante salientar que o texto de Maria Firmina
fornece um outro olhar para o papel da mulher e do negro numa sociedade
marcadamente patriarcal, desigual e escravista. Um exemplo são os textos do já
mencionado escritor cearense José de Alencar.
Quando se verificam textos como
Iracema e o Guarani, é patente o esforço de Alencar de construir um mito de
fundação, um conceito de nacionalidade. Todavia, observa-se que o material
usado pelo escritor cearense para realizar esse feito é a conformação, o
idílio, a subalternidade em relação à história contada pelos europeus. Alencar
procura por em evidência construção do Brasil como se aqui fosse um paraíso,
estruturado a partir do encontro dos brancos desenvolvidos e civilizados
europeus com o índio bravo e heroico. O Brasil seria, portanto, o encontro do
bravio e do indômito com a civilização branca e cristã vinda do Norte. O negro
é colocado à margem. Sua importância não é mencionada. O tratamento e a
importância do negro são deixados de lado.
A importância de Úrsula reside
nesse quesito, pois a perspectiva apresentada sobre o negro e sobre a mulher é
modificada. O negro deixa de ser um ente doce, passivo, resignado à sua condição
e passa a ter uma história – e muita dignidade. Os dois personagens Túlio e a
negra Suzana são descritos de tal forma a evidenciar o quanto são nobres e
infelizes por serem submetidos a uma estrutura injusta e anticristã. O narrador
de “Úrsula” (narrador em terceira pessoa), preocupa-se em apresentar a
violência sofrida pela velha escrava, que fora arrancada da África – da sua
história, do seu povo, das suas crenças, de suas tradições – e trazida para
viver em uma terra distante sob o rude manto da escravidão. Nesse sentido,
Maria Firmina ressalta a importância e a dignidade do escravo.
Túlio é outro importante elemento na obra, pois sua personalidade é quase
rousseauniana. O jovem negro é
apresentado como uma pessoa boa, apesar de toda o meio em que vive. Túlio é
generoso. Bondoso. A forma como ele acolhe e cuida de Tancredo evidencia a sua
personalidade. Maria Firmina afirma: “Era infeliz; mas era virtuoso”. Ao
encontrar um homem branco caído em local ermo, Túlio poderia se aproveitar e
saborear a vingança por toda a sua raça. Não. O jovem escravo leva aquele que
seria o amor de “Úrsula” para a casa de sua senhora. E aqui é importante
estabelecer uma conexão com a história bíblica do bom samaritano encontrada em
Lucas 15.11-32. Essa nobreza de caráter fornece uma leitura diferente daquela
ditada pelas relações materiais existentes no Brasil. “Úrsula” é considerado o
primeiro romance genuinamente abolicionista da história da literatura
brasileira.
Outro importante personagem é o Comendador, o tio de Úrsula. Sua postura
é de controle completo sobre tudo. Sua vontade é assassina. Seus impulsos são
de morte. A única linguagem que utiliza é a da aniquilação. O Comendador
representa a figura do patriarcado e da aristocracia que dominava o país. É a
figura do macho com apetite e hábitos irrefreáveis; capaz de perpetrar maldades
extremas.
A obra é essencialmente romântica. A parte final é pessimista. Apesar de
haver em seu enredo uma profunda perspectiva cristã – a prevalência do bem, da
generosidade, da verdade, do sofrimento que é suportado com resignação e
nobreza de caráter -, o final da história é marcado pelo pessimismo. Em
“Úrsula” o bem se faz presente, representado na personalidade de personagens
que são acossados pela crueldade dos fatos e do destino, todavia o desfecho
dessas personagens é melancólico, com cintilações pálidas. Um livro importantíssimo
de uma brasileira negra que muito disse e ainda tem muito a dizer sobre o
Brasil.