segunda-feira, dezembro 12, 2022

"Capitães de Areia": algumas palavras

            

Jorge Amado é um dos escritores brasileiros que menos li e que mais eu preciso ler. Com este livro sobre o qual escrevo, é a terceira leitura. Sua vasta obra, repleta de paisagens diversas é um importante afresco sobre uma dimensão do Brasil a partir da Bahia. A ideia daqui para frente é visitar uma obra por ano do autor de “Cacau”, “Mar Morto”, “Suor”, entre tantas outras obras que criaram uma espécie de deslumbrante painel sobre o fascinante povo baiano.

O livro da vez foi “Capitães de Areia”, de 1937. Trata-se de um romance, cujo narrador onisciente nos apresenta um grupo de garotos desamparados. Moradores de um trapiche, próximo a uma praia, o bando sobrevive afoitamente, cometendo pequenos furtos e desafiando as autoridades da capital baiana.

O grupo é chefiado por Pedro Bala, um órfão que lidera o grupo formado por uma dezena de meninos abandonados – há um leitor, um malandro que conquista prostitutas; há o beato, o desejoso pelo cangaço; um coxo, alma mais amarga e vingativa do grupo. Na parte dois da obra, aparece a figura de Dora, uma menina órfã de mãe, que fora vitimada pela bexiga. Inicialmente, há uma hostilidade contra ela, mas, depois, ela passa a ser benquista pelo bando. A adolescente passa a exercer o papel arquetípico da mãe que eles não possuem. Ela é o lado terno, feminino, capaz de mudar o ambiente. Dora inicia um romance com o chefe do grupo, consolidando um relacionamento entre aquele que chefiava os garotos – e a única mulher da comunidade –, um tipo de mãe.

Cena do filme "Capitães de Areia", de Cecília Amado

A obra faz parte da chamada 2ª geração modernista. Está inscrita no romance de 30. Reverbera nela uma forte crítica social. Vale mencionar que o chamado Romance de 30, mobilizou escritores para refletir a respeito de um país que passava por enormes mudanças. Logo após o fim da República Velha (1889-1930), o país inicia um outro período com mudanças políticas, econômicas e sociais. O outrora país agrário e refém das oligarquias regionais – vale mencionar os casos de São Paulo e Minas Gerais que, durante a Primeira República, revezavam-se na escolha dos presidentes do país, naquilo que ficou conhecido como a República do Café com Leite – começa a se industrializar. Novos atores políticos
emergem. O eixo do poder se consolida no Centro-Sul. Getúlio Vargas passará a ser o principal nome da política nacional nos próximos vinte anos.

Mesmo em face dessas transformações, nota-se o quanto o Brasil continuava atrasado em relação às grandes economias capitalistas. Jorge Amado, um baiano, filho de uma tradicional família do estado, entra no debate político, que demonstra de forma realista as chagas sociais de um país que precisa superar os seus problemas; iniciar um novo ciclo; superar os antagonismos.

Amado é o primeiro escritor a dar visibilidade ao papel de jovens adolescentes malandros. Havia um consenso que buscava enquadrar esses jovens como bandidos e marginais desocupados. Isso fica provado em dois momentos do romance: (1) na reportagem que surge no início da obra, trazendo as escusas do diretor do reformatório, defendendo-se das acusações de maus-tratos contra jovens institucionalizados; (2) quando Pedro Bala é apreendido e experimenta a tortura na própria pele numa instituição para menores.

Nota-se, assim, o olhar benevolente e generoso de Amado para a condição desses jovens. Sua tese era a de que garotos eram obrigados a praticar pequenas infrações pelo fato de não possuírem uma estrutura familiar favorável e o Estado não assumir o seu devido papel ante tão grande calamidade. Durante o Estado Novo, período conhecido como a Ditadura de Vargas (1937-1946), mais de 800 exemplares da obra foram queimados em praça pública. Observa-se que a mensagem da obra atingiu em cheio o poder oficial. Aqueles que controlavam o Estado entenderam a poderosa crítica escrita por Jorge Amado.

Jorge Amado


O escritor procura humanizar os garotos desumanizados por suas histórias de vida. Um exemplo é a personagem Sem-Perna. Após ter se inserido em uma família com o objetivo determinado de roubar, fica balançado entre a opção de cumprir as demandas do grupo e ceder aos afetos recebidos pela família que o acolheu. Nota-se, assim, que a principal carência dos meninos era de aceitação e afeto. Para que aquele bando de malandros juvenis pudesse abandonar aquele ciclo de contravenções, era necessário que tivessem algumas de suas carências preenchidas. Apesar da brutalização, da vida clandestina, há a clara tese de que o afeto, a necessidade de um lar, de uma vida segura e com as necessidades primárias atendidas, é um imperativo para todas as pessoas.

O livro possui uma mensagem atemporal. Passados mais de 80 anos da escrita, o país avançou em algumas questões, mas não entendeu a necessidade de proteger integralmente os direitos de crianças e adolescentes. Ainda vigora uma noção punitivista a respeito dos jovens que cometem ilícitos; uma defesa intransigente por certa porção da população brasileira que desconhece a realidade de milhões de brasileiros e brasileiras pobres que vivem nas periferias do país. O combate que evita o cometimento desses atos não é a repressão, mas a existência de políticas públicas que garantam os direitos sociais às famílias mais pobres. Certamente, foi essa a mensagem que atravessa o tempo deixada por Jorge Amado.

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