quinta-feira, agosto 30, 2018

A promessa Greta van Fleet

O rock é um movimento bastante curioso e dinâmico. Ele constantemente se reinventa. Uma determinada tendência acaba sendo absorvida por outra - ou, simplesmente, abre espaço para que outra surja. Foi assim, por exemplo, com o rock feito na primeira metade dos anos 70. Logo em seguida, veio o punk, um movimento completamente novo, com uma nova estética e um novo apelo. O punk, por sua vez, não cedeu a vez tão facilmente, esteve presente no pós-punk e na new wave do anos oitenta. Já na década de 90, contribuiu para o surgimento das bandas do movimento grunge. 

Embora seja um movimento bastante heterogêneo, o grunge possui um forte apelo punk. Escrevo assim para ilustrar um fato curioso. Pois, às vezes, o rock aponta para os locais já visitados, para as paisagens já conhecidas. Cheguei a esse conclusão rala após escutar a banda estadunidense Greta van Fleet. Trata-se de um quarteto formado por três irmãos (baixo, guitarra e baixo) e o baterista. A banda vem da região norte do país, do industrializado estado do Michigan. Ao ouvir, o nome pela primeira vez, ao invés de ouvir "Fleet", eu pensei ter ouvido "Flint", a cidade natal de um poderoso trio do rock setentista, Grandfunk Railroad, também do Michigan.  

O Greta van Fleet não olha para frente. O seu alvo é o rock produzido na primeira metade dos anos 70, o bom e velho hard rock, com fortes pitadas de blues rock. A banda é bastante nova. Os garotos não aparentam ter mais do que vinte anos. Ao ouvir o EP "From the Fires", fiquei contaminado por aquilo. A primeira canção ("Safari Song") nos remete imediatamente a Robert Plant. E toda aquela força saída de um garoto. Movido pela curiosidade, procurei um vídeo no Youtube e fiquei com os olhos grudados ininterruptamente por quarenta minutos, assistindo a um apresentação dos talentosos muúsicos. 

A tradição do velho e bom rock n' roll soprando mais uma vez. A apresentação mostrou muita consistência. O vocal é poderoso. O baterista é bom. O baixista sustenta bem a estrutura da música. E o guitarrista faz bem o dever de casa. No conjunto, o som possui grande densidade. Safari Song me remeteu a Custard Pie ou Travelling Riverside Blues, do Led Zeppelin. A segunda canção do disco ("Edge of Darkeness") é outro soco de bom gosto. Impressiona. E a terceira faixa ("Flower Power"), faz lembrar, principalmente, na parte final, quando surge o som de um órgão, a famosa faixa do Zep II, "Thank you". Há ainda a excelente "Highway Tune", que faz lembrar "Misty Mountain Hope" ou remotamente "When the levee breaks", do Zep IV. Há ainda outras três faixas graúdas "Meet on the ledge", "Talk on the street" e a música de trabalho "Black smoke rising"

Enquanto escutava os jovens do Michigan, fiquei me questionando sobre a questão da autenticidade, da originalidade. Esse é quesito que a banda deixa a desejar. Mas eu não ligo. O importante é que o quarteto se propôs a fazer algo e o fez muito bem. O álbum é graúdo, repleto de densidade. As melodias são bonitas. Os arranjos são bem trabalhados. Os vocais empolgam e a banda possui um carisma bem característico daquela geração que produziu uma das safras mais importantes da história do rock, momento este que viu surgir bandas como Led Zeppelin, Deep Purple, Black Sabbath, UFO, Free, Uriah Heep etc. Resta-nos apenas o aceno da paciência para perceber o trabalho do tempo. Ou seja, o amadurecimento da banda, dos vocais poderosos do jovem Joscha Riszka e dos seus irmãos inspirados. 

Por enquanto, deliciemo-nos com excelente EP lançado ano passado. Parece que a coisa saiu do fogo do rock setentista. Foi burilado pela mãos dos deuses do rock. 

quarta-feira, agosto 29, 2018

A nova razão do mundo

“Nunca fomos tão livres. Nunca nos sentimos tão incapacitados.” Zygmunt Bauman 

Tenho acompanhado à distância algumas entrevistas dos postulantes à eleição para presidente da República, que ocorrerá em outubro próximo. Semana passada, a Globo News promoveu uma série de debates com os economistas de cada um dos candidatos. Observe: a conversa não se estabeleceu com o suposto ministro da educação ou da saúde. O escolhido foi o chefe da economia. 

Existe uma preocupação profunda sobre como a equipe do novo presidente da República vai conduzir os destinos da economia do país. Até esse ponto tudo parece está muito bem. Na mesma entrevista promovida pelo canal do Grupo Globo, Miriam Leitão, a empregada mais comprometida com a riqueza dos patrões, esforçava-se em uma das entrevistas para tentar entender como o mercado não seria afetado por determinadas intervenções. 

Os jornais têm noticiado o frenesi em torno da alta do dólar. A explicação: a indefinição do cenário eleitoral. Lula estando preso e, mesmo assim, ainda na liderança das pesquisas é algo inaceitável para essa entidade sem rosto, imaterial, chamada mercado.

As empresas que fazem jornalismo no Brasil pertencem às famílias mais ricas do país. Portanto, defendem determinados temas por conveniência própria. São defensores de inclinações econômicas que não comprometam o status quo político. O termo mercado ganhou ares de sacralidade. Destoar de sua atuação é cometer um sacrilégio. Mercado é uma entidade invisível. Ninguém o ver, mas ele comanda tudo. Ele pertence a seis famílias, que monopolizam serviços, ganhos, aplicações; desmantelam economias quando é necessário; apropriam-se dos resultados do trabalho coletivo; subordinam governos; e compram a política. 

O mercado possui uma ideologia e ela se chama neoliberalismo. Sua força está justamente no anonimato. Ela não é visível. Poucos sabem o seu significado. Alguns até ignoram que ela ainda prevaleça ou tenha força no mundo atual. Todavia, o neoliberalismo não pertence apenas ao primado da economia. Ele é uma razão, uma força invisível e coercitiva. O colapso humano que talvez estejamos enfrentando; a crise de valores; o individualismo desumanizante do nosso tempo tem a sua origem no neoliberalismo. Para o neoliberalismo o individualismo é uma força necessária. 

A doutrina é a razão que governa o mundo. Ela é o resultado da astúcia dos ricos para se apropriar das riquezas do mundo. Ela depaupera o mundo física e espiritualmente. Enxerga na competição o elemento definidor das relações humanas. Permite que os ricos se tornem mais ricos; e, os pobres, mais pobres. Toda regulação é vista como uma violência contra a liberdade. Mas não se deve entender a liberdade como um elemento isento, desgarrado de condicionamentos. Lembrando a brincadeira que George Orwell realiza em "A revolução dos bichos": "Alguns são livres, mas alguns são mais livres que os outros". 

Estados, governos, sindicatos ou qualquer organização que ofereça um sistema de regulação é visto com máxima desconfiança. Todavia, neste ponto o indivíduo acaba caindo em um abismo perigoso. Já que o neoliberalismo é a ideologia a serviço das elites, quem poderia defender o interesse dos trabalhadores, daqueles que não são ricos? O curioso é o neoliberalismo subverteu a consciência do sujeito. Somos convencidos diariamente de que existe uma regra que determina a naturalização do mundo. Entendemos que o mundo sempre foi assim. Que aqueles que alcançaram a riqueza, conquistaram pelos próprios méritos - ignoramos o primado da herança, da melhor educação, de uma melhor preparação para iniciar a competição. 

O neoliberalismo atua no plano econômico para depois gerar efeitos sociais. Os ricos serão mais ricos. Mas você, se não conseguir ter o sucesso que o empreendimento neoliberal exige, ficará com toda a culpa. Os governos não devem se ocupar na construção de planos econômicos que diminuam a desigualdade. A desigualdade é um primado natural das relações entre os homens, entende o neoliberalismo. Para quê gastar dinheiro com políticas compensatórias? Para quê cotas? O triste é quando vemos um pobre defendendo esse tipo de coisa. Muitos candidatos já deixaram explícito que estão sendo conduzidos por sentenças neoliberais. É o caso de Alckmim que deixou nas entrelinhas que pretende privatizar a educação superior. Para o neoliberalismo, se você não tem condições de cursar o ensino superior público, a culpa é toda sua. Não se questiona a ausência da prestação pelo Estado. O questionamento fica retido no sujeito. Ou seja, quem conseguiu é vitorioso; quem não conseguiu, é fracassado. 

O fracasso passa a ser uma força operante em determinados grupos sociais, principalmente os mais pobres. Os defensores dessa ideologia não verbalizam ainda para manter as aparências. Se pudessem, diriam: "Ora, que cada um viva com o que tem. Se alguns não conseguiram nada é por que são incompetentes. Logo, que morram, que sumam". Cria-se, assim, uma elite, uma nobreza, uma oligarquia, uma casta de poderosos que manipula a maioria. A suposta liberdade defendida pelo neoliberalismo é para que os ricos continuem mais ricos; para que não surjam freios para suas especulações. 

* Para entender mais sobre este tema, ler o excelente texto de George Monbiot
** A Boitempo lançou recentemente o sensacional "A nova razão do mundo - ensaio sobre a sociedade neoliberal", de Christian Laval e Pierre Dardot.

segunda-feira, agosto 27, 2018

Um comentário interessante sobre Olavo de Carvalho

Assistindo a um vídeo em certo canal do Youtube, cujo objetivo era refutar algumas afirmações de Olavo de Carvalho, um charlatão, embusteiro, metido a filósofo; divulgador de generalizações perigosas, de uma lógica comprometida com o sofismo, resolvi dar uma olhada em alguns comentários. Acabei encontrando uma pérola. Certo visitante deixou um pequeno texto, encimado pelo título: "O mínimo que você precisa saber para não ser Olavo de Carvalho". A afirmação ecoa o título de um livro do bazofioso "intelectual" ("O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota"). 

A obra impressionou alguns incautos novidadeiros por aqui. Na verdade, suas olavices* fizeram sucesso por causa do momento político que o país enfrenta, de ascensão de um pensamento conservador e dito liberal - que de liberal mesmo não tem nada. Há hordas a postas para defender o grande Nostradamus do pensamento conservador brasileiro. Ele inclusive é citado no plenário do Congresso Nacional; é guru de candidatos a presidente da República; impressiona setores da obtusa classe média do país. O único lugar onde ele não é citado: a academia, espaço que, segundo ele, só produz preguiça, esquerdismo, analfabetismo funcional e muitos "filhos da puta".

Segue o belo comentário (observe a ironia nas afirmações):

O MÍNIMO QUE VOCÊ PRECISA SABER PARA NÃO SER UM “OLAVO DE CARVALHO” 

- Desonestidade de qualquer gênero, é uma merda. 
- Estuprar a história não mudará a história. 
- Ver o demônio nos outros, naqueles que não pensam como você, não te tornará melhor; ao contrário, fará de você um pervertido irrecuperável. 
- Um palhaço letrado continuará sempre... um palhaço, e entrará no hall do anonimato da história como palhaço, nada mais. 
- Generalização é a filosofia do ignorante que ama ser ignorante; aquele que abdica do raciocínio e do estudo para se tornar o “especialista de tudo o que não conhece”. 
- Mentir continuamente é no final, cair na desgraça de acreditar piamente nas próprias mentiras. 
- Qualquer canalha pode desprezar os pobres; qualquer miserável pode tripudiar o sofrimento humano; qualquer crítico venal pode desqualificar culturas e povos... grandeza humana e intelectual é outra coisa, pertence a um nível muito superior a tudo isso.


* É o nome que é dado às afirmações mirabolantes do astrólogo distribuidor de ódios, cuja imagem refletida da inteligência é a dele mesmo. Olavo não impressiona pelo conhecimento, mas pelo suco histriônico que faz com tudo o que sabe, ao fazer afirmações que achincalham o mundo como ele é. Vive a pregar conspirações - principalmente a comunista, a petista e do Foro de São Paulo, que para ele é a reunião das bestas do apocalipse. Por fim, as olavices são construções verossímeis, que se parecem com o conhecimento do mundo real, mas que,  no fundo, são meras ficções capazes de inebriar e desarticular a inteligência de seres instáveis e impressionáveis por conspirações pueris. 



sexta-feira, agosto 24, 2018

O "Novo" possui a cara da velha burguesia brasileira

Por Luis Felipe Miguel via Facebook 
O "Novo" (sic) é um fenômeno ilustrativo. Ele nos permite avaliar quão muderna e iluminada é a nossa burguesia.

A fundação do partido parece responder ao desejo do Itaú Unibanco de não pagar mais pedágio para a elite política tradicional e governar diretamente. Um partido, digamos assim, militantemente antibonapartista. "Todo poder à burguesia".

Com um reluzente plantel de multimilionários na sua direção, o "Novo" queria ser o arauto do credo ultraliberal, em sua forma mais descontaminada e intransigente. Seria um mostruário da sofisticação intelectual, competência gerencial e honestidade a toda prova - quanto não tentada pelo etos corrupto da elite política - da nossa classe capitalista.

Como demonstração mais cabal da seriedade do partido-empresa, foi instituído um "processo seletivo" para possíveis candidatos. Só tem direito de envergar a camisa alaranjada do "Novo" quem é aprovado por uma banca, que avalia currículo e aplica uma prova escrita. (Também é necessário pagar uma taxa, de 300 ou 600 reais dependendo do cargo, "não reembolsáveis". O "Novo" aceita cartão.)

Agora candidato a presidente, ganha maior visibilidade João Amoêdo, o inspirador, chefe e acionista principal do "Novo" - dados indicam que ele investiu mais de 4 milhões de reais no partido, enquanto nenhum dos outros banqueiros associados  colocou mais do que 250 mil. E quem é ele?

Em vez do sofisticado intelectual libertariano que era prometido, temos um troglodita de terno e gravata, que repete mecanicamente sua profissão de fé nas virtudes do mercado, indiferente às consequências humanas, incapaz de ver como pessoas aqueles que são jogados às margens. O Estado não pode intervir nem mesmo para impedir as injustiças mais gritantes, os serviços públicos devem ser abolidos, tudo deve ser privatizado. Não dá para perceber diferença entre Amoêdo e Flávio Rocha, por exemplo. Ambos são reprodutores do mesmo discurso tacanho.

Na verdade, o fundamentalismo de mercado de Amoêdo e o fundamentalismo cristão do Cabo Daciolo, por mais diferenças que possam apresentar, indicam a mesma incapacidade de raciocínio complexo e a mesma adesão a dogmas invulneráveis ao embate com a realidade. Sinto mais simpatia pelo Cabo, imerso em sua própria desrazão, do que pelo banqueiro janotinha, que tira proveito de seu próprio discurso e com quem a gente nunca sabe onde termina o fanatismo e começa o cálculo.

Falei que Amoêdo é um troglodita de terno e gravata, mas não é mais assim. Ao entrar em campanha, ele passou a envergar camisa polo e suéter. Seu site pretende que ele seja chamado de "João". (Risos.)

Mas não é só a imagem. A rigidez doutrinária libertariana não resistiu à política real e hoje o "Novo" está pronto a aceitar a defesa da censura, a limitação dos direitos individuais, o conservadorismo tradicional. Seus candidatos, aqueles mesmos que pagaram todas as taxas e passaram no rigoroso processo seletivo, parecem saídos da tropa de choque bolsonariana. Ricardo Salles, uma das principais apostas do partido para a Câmara dos Deputados em São Paulo, escolheu um número de candidato que faz alusão a calibre de projéteis de rifle e distribui material de campanha sugerindo o fuzilamento da esquerda. Diego Dusol, que também concorre a deputado federal, mas na Paraíba, promete tornar o aborto "crime hediondo" e liberar completamente o acesso a armas: "mais que um fuzil, fazendeiros e agricultores poderão adquirir um tanque de guerra" (não estou inventando, é citação literal do material de campanha dele).

Este é o "Novo". Talvez seja o que de pior existe na política brasileira hoje. Pior até do que Bolsonaro. Filhotes mimados da burguesia brasileira brincando de fazer política e se achando imensamente superiores a todo o resto da sociedade. Ao contrário de Bolsonaro, eles nem sequer desconfiam do quão toscos são.

quarta-feira, agosto 22, 2018

O aborto, uma decisão de mulheres

Li há pouco uma reportagem da Folha de São Paulo que trazia alguns dados sobre o aborto no Brasil. A reportagem mostrava o quanto este ainda é um tema complexo por aqui. Todavia, há um facho, uma cintilação de esperança em meio às pesadas nuvens negativas: houve uma queda no número de pessoas que defendem a mudança na legislação. Ou seja, na pesquisa anterior o número era de 68%; agora, é de 58%. Significa que houve um recuo que aponta para um importante sinal. Com o amadurecimento do debate, certamente, haverá a legalização do aborto em todos os casos, como acontece em 80% dos países mais desenvolvidos do mundo. Todavia, ainda é necessário caminhar bastante a fim de que haja uma sensibilização, sem preconceitos ou achismos, sobre o tema.

Esta mudança deve ter acontecido em decorrência do quanto a matéria esteve em exposição estas últimas semanas. (1) foi a notícia vinda da Argentina. Por lá, a Câmara aprovou por votação apertada em junho; no Senado, contudo, houve rejeição, no dia 8 de agosto. Mesmo diante de forte mobilização das mulheres e entidades sociais, não houve a aprovação do aborto naquele país. Infelizmente. Se tivesse ocorrido, a Argentina seria o segundo país da América do Sul a liberar o aborto em todos os casos - o primeiro que permitiu foi o Uruguai, em 2012. Se a Argentina tivesse aprovado, certamente, robusteceria o debate pró-legalização aqui no Brasil. (2) No início do mês de agosto, houve uma audiência pública para julgar ação proposta pelo PSOL (ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) para legalizar o aborto até a décima segunda semana de gestação. Nesta audiência, presidida por Rosa Weber, aconteceu uma série de debates, que apresentava argumentos favoráveis e contrários à legalização do aborto. Foi um importante momento para que esse tema fosse encarado, debatido e se tornasse um elemento a ser discutido pelas pessoas. Quanto mais ele for mostrado, mais haverá apoio à causa da mulher. Aborto é um tema que diz respeito, primeiro, à mulher. 

Quando saímos do mundo ideal para o mundo concreto, enxergamos uma situação em que o Estado não deve se omitir. Existe uma legislação que tematiza sobre o aborto, mas esta é ineficaz. Há apenas três possibilidades para que ocorra um aborto legal no Brasil: (1) em caso de risco para a mãe; (2) quando a concepção se deu por meio de um estupro; (3) ou quando a criança é anencéfala. No demais casos, a lei não permite. Quando olhamos as três possibilidades, indagamos: o Estado já não autoriza o aborto, por que não poderia estender para outros casos? Há projetos tramitando no Congresso, empunhados por uma bancada cega (religiosa), conservadora, medievalesca, que buscam proibir até mesmo nas três situações acima. 

Segundo pesquisas, uma em cada cinco mulheres no Brasil, com idade até quarenta anos, já fez um aborto. Anualmente, o número de abortos chega a aproximadamente um milhão (850 mil). Segundo Débora Diniz, pesquisadora da Universidade de Brasília, "Se todas as mulheres que fizeram aborto estivessem na prisão hoje, teríamos um contingente de 4,7 milhões de mulheres, pelo menos cinco vezes o sistema prisional, que já é o quarto do mundo. Por que tão pouca razoabilidade nessa conversa? Aborto não é matéria de prisão, é de cuidado, de proteção e prevenção". 

Ou seja, mais do que uma temática leviana, falar sobre aborto é debater essencialmente uma questão fundamental de saúde pública, principalmente, que diz respeito aos direitos das mulheres. Geralmente, esse direito esbarra em compreensões religiosas, em um conservadorismo que não leva em conta as decisões das mulheres. O aborto até hoje é um tema tabu no Brasil - e em muitas partes do mundo - porque a concepção não ocorre no corpo do homem. A proibição além de envolver um problemática religiosa que não condiz com a relação com o Estado ("o direito não está limitado pela esfera religiosa" - Marco Aurélio), até alicerçado em um machismo estrutural. O site Catraca Livre reuniu alguns dados estarrecedores sobre o aborto:

  1.     A cada dois dias, uma mulher morre vítima de aborto inseguro no Brasil. Todos os anos, ocorrem 1 milhão de abortos clandestinos.
  2.     São 250 mil internações no SUS (Sistema Único de Saúde) e R$ 142 milhões gastos por causa de complicações pós-aborto.
  3.     Uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já abortaram no país, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, desenvolvida pela Anis – Instituto de Bioética.
  4.     As mulheres que abortam são, em geral, casadas, já têm filhos e 88% delas se declaram católicas, evangélicas, protestantes ou espíritas.
  5.     Cerca de 20 milhões dos abortos são realizados no mundo de forma insegura todos os anos, resultando na morte de 70 mil mulheres, sobretudo em países pobres e com legislações restritivas ao aborto.
  6.     97% dos abortos clandestinos ocorrem em países em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, 80% dos países desenvolvidos permitem o procedimento.
  7.     Uma pesquisa da Organização Mundial da Saúde e do Instituto Guttmacher (EUA), publicada em 2016, demonstrou que nos países em que o aborto é proibido o número de procedimentos não é menor do que em lugares onde é legalizado.
  8.     Em 2007, Portugal autorizou o aborto até as 10 semanas de gestação. Dez anos depois, pesquisa da ONG Associação para o Planejamento da Família mostra que o número de abortos caiu e as mortes decorrentes da prática são quase nulas. Na década de 1970, eram 100 mil abortos, sendo que 2% deles resultavam em morte, enquanto dados de 2008 mostram que o país registrou 18 mil abortos e, hoje, este número está em queda constante.
O recrudescimento ou a manutenção da lei aos padrões do que temos hoje, não impedirá que as mulheres deixem de abortar, quando se sentirem motivadas para tal. Existe uma compreensão equivocada sobre o tema. Acha-se que, uma vez que haja uma liberalização, muitas mulheres procurarão o método de forma indiscriminada e irresponsável. O que os/as defensore(a)s da mudança da lei buscam é permitir às mulheres, que, se encontrarem diante deste dilema, façam uma opção segura, sem colocar a vida em risco. No Brasil, as mulheres negras, pobres e de periferia são aquelas que sofrem com a legislação proibitiva. As mulheres que possuem dinheiro não sofrem com esse problema. Simplesmente, procuram uma clínica segura e limpa e realizam o procedimento - ou viajam para países onde a prática é autorizada. Às mulheres pobres, restam a culpa, o medo e a exposição a um procedimento que coloca as suas vidas em risco.

Outro fato é a sensação psicológica medonha de acharem que estão cometendo um crime abjeto e serem julgadas pela sociedade como criminosas. Àquelas que não quiserem abortar, que não abortem. O que não se deve é fazer com que um entendimento prevaleça sobre a necessidade de algumas pessoas. No que tange a isso, o Estado não deve se omitir. Deve, por sua vez, garantir o direito.

O que está em jogo é o direito, a autonomia, a dignidade, a saúde física e psíquica das mulheres. As legislações são feitas, em sua maioria por homens. O número de mulheres participando da vida política e das decisões do Judiciário ainda é pequeno. Os homens arvoram-se ao direito de opinar acerca de um tema que diz respeito, primeiro, ao corpo e à mente da mulher. Em um mundo possível, deveriam se abster de debater sobre este tema. Somente as mulheres deveriam decidir. Quando elas tivessem decidido, eles, basicamente, ratificaram a decisão. 

terça-feira, agosto 21, 2018

quinta-feira, agosto 09, 2018

A patética afirmação do general Mourão

Na segunda-feira, 6, o vice do patético Jair Bolsonaro, proferiu uma frase carregada de um culturalismo fascista. O general da reserva do Exército Brasileiro afirmou em palestra no Sul do país que o problema de nosso atraso está relacionado com "a indolência do negro e a malandragem do negro". Segundo ele, ainda, o Brasil teria herdado "uma cultura de privilégios" dos países ibéricos, no nosso caso, oriunda de Portugal. Em se tratando da fonte de onde emanou, tal assertiva não impressiona. Bolsonaro e Mourão constituem aquilo que há de mais primitivo, patético e de forte tom burgesso que existe. São resultado de um fenômeno de imbecilização coletiva. Como disse Pedro Cardozo: "Bolsonaro é um sujeito equivocado com a própria virilidade". 

Se houvesse a mínima compreensão, entendimento da história do Brasil e quais atores foram responsáveis pela sua construção, nem Bolsonaro (um figurão que passou quase trinta anos se alimentando no submundo da política, com o intuito de tirar vantagens) nem Mourão (outro oportunista, que não compreende que a manutenção do status quo político é a primeira consequência de sua atuação), não teriam qualquer atenção. Uma vez que a sociedade tivesse debatido esse tema tão caro à nossa história, figuras como Bolsonaro e seu vice não teriam crédito como passaram a ter neste momento tão atribulado de nossa vida republicana. 

Mas voltemos à afirmação de Mourão! Primeiro é importante entender, que a tese sustentada pelo candidato a vice na chapa de Bolsonaro já foi defendida em alguns momentos da história. No final do século XIX e início do século XX, o maranhense Nina Rodrigues, baseado em teorias oriundas do cientificismo evolucionista, entendia que havia raças superiores e raças inferiores. Um dos primeiros estudiosos da formação racial brasileira, entendia que não havia uma igualdade como alegada pelos liberais. No seu entendimento, a igualdade residia apenas no campo teórico, ou seja, nos compêndios dos juristas. O resultado da mistura de raças era o atraso cultural. Não cabia aos brancos do país, permitir que a miscigenação continuasse. Para ele, a inferioridade racial do negro criava uma propensão para a prática de crimes. O negro possuía, por ser de uma raça inferior, uma disposição que o inclinava para a marginalidade. Houve assim uma bestialização do negro, com uma suposta base científica. 

Mais tarde, esse tipo de ideologia seria defendida, por exemplo, pelo movimento nazi-fascista surgido na Itália e na Alemanha. O negro e o índio são partes constitutivas da cultura brasileira, juntamente com os europeus. Não se pode dissociar esse fato. 

Um segundo fato que deve se compreender da fala de Mourão é de que ele praticou um crime coletivo; uma injúria cometida contra a própria sociedade brasileira. Há o sangue do europeu, do índio e do africano pulsando no interior de milhões de brasileiros. Negar isso é negar a própria história.

Uma terceira questão que deve ser considerada é: quem foram o negro e o índio no processo de construção do Brasil? Em relação aos índios, é preciso afirmar que boa parte das populações indígenas foi exterminada.  De um total de mais cinco milhões, quando da chegada dos portugueses, atualmente restam pouco mais de trezentos mil. O índio não é indolente. É preciso entender sua cultura; sua relação com a natureza. No tocante ao negro, este foi mais injustiçado. O maior crime da história do Brasil foi cometido contra os negros. Há uma dívida absurda contra eles. Enquanto não se resolver esse dilema histórico, o Brasil amargará a desigualdade; há crimes sendo cometidos; injustiças sociais; preconceitos dos mais variados tons.  

Os negros foram trazidos do continente africano como bichos sem qualquer dignidade. Castro Alves cantou isso no seu "Navio Negreiro". Do negro, desejava-se apenas a sua força; e, das negras, o sexo. Milhões foram trazidos e vendidos como animais. Morriam cedo. A expectativa de vida era baixíssima - no máximo, trinta anos. Eram propriedade do seu senhor. Podiam ser negociados, como  se negociam bestas (bois, cavalos, mulas, ovelhas, cabras) numa feira. Após a Abolição da Escravatura, uma jogada do capitalismo industrial, forçada pelos ingleses, os negros se viram em outro dilema: o que fazer e para onde ir? Muitos foram obrigados a migrarem para as periferias; outros, por sua vez, continuaram submetidos ao mesmo regime de escravidão, com a exigência apenas de um prato de comida. A abolição se deu apenas no campo da formalidade, mas,  não efetivamente, no campo da materialidade. Não houve um acerto de contas do estado brasileiro com o negro. Não houve indenização aos escravos. Não houve distribuição de terras. Se a Reforma Agrária do Brasil tivesse começado naquele momento histórico, 1888, certamente estaríamos numa outra condição. As terras continuaram concentradas nas mãos de poucos privilegiados, as chamadas oligarquias regionais. 

Um quarto fato diz respeito a uma pergunta fundamental: se a culpa pelo atraso brasileiro não é do negro nem índio, de quem é? Esta pergunta o general Mourão não ousa fazer. É importante pensar que ao longo de quinhentos anos, primeiro sob a liderança das elites portuguesas, depois, sob as elites agrárias constituídas em solo nacional, o Brasil não conheceu mudanças, processos abruptos para desconstruir a desigualdade. O povo se manteve distante das decisões. Os ricos desse país sempre nutriram um preconceito crasso contra os marginalizados. Somos um país em profundo atraso e indolência por causa das elites  (seja ela midiática, agrária, financeira, política etc) defendidas pelo general Mourão. É justamente essa gente que atrapalha o avanço do Brasil. Ela trabalha para boicotar o país, para saquear as riquezas nacionais; para se apropriar do fruto do trabalho do povo. É esta elite que impede que se façam políticas que incluam o negro. É esta elite que alimenta um preconceito histórico contra os mais pobres (em sua maioria, negros) e cria determinadas "teses" para que sejam defendidas pela própria sociedade (principalmente defendidas por alguns setores da classe média).

A tese sustentada por Mourão é criminosa. Por mais que ele ensaie respostas estapafúrdias, deixa evidente como uma noção equivocada de nossa história é disseminada. Utilizar os índios e os negros (principalmente este) como bode expiatório para justificar nossos dilemas e desigualdades, é se utilizar da mesma estratégia elaborada por Hitler na Alemanha. Naquele momento histórico, a Alemanha enfrentava uma crise gigantesca. O desemprego e a miséria eram grandiosos. A economia do país estava destroçada por conta da Primeira Guerra Mundial. Todavia, no jogo da cooptação é mais fácil atrair sectários com um discurso enviesado e nutrido de preconceitos, atribuindo a culpa dos males de determinada sociedade a certos agentes. Hitler apontou o seu dedo para os judeus, comunistas, ciganos, homossexuais etc.

Mourão nunca fará a pergunta de forma correta. Ele sabe o que defende. Seu nacionalismo é entreguista e subserviente. Ele não fará perguntas contundentes, pois seu papel como general é defender os privilégios de determinados setores, mesmo que para isso ele continue a inventar factoides esdrúxulos como aquele proferido no Rio do Grande Sul.



segunda-feira, agosto 06, 2018

Pensar enquanto se caminha

Uma vida honesta, em que o sujeito fosse autêntico, acredito, deveria ser o objetivo de vida de todo de todos aqueles que querem encontrar a felicidade. A modernidade nos colocou numa condição que nos separou completamente do exercício da autoanálise. Os objetos periféricos da vida se tornaram mais importantes do que a própria vida. Nunca fazemos perguntas fundamentais, como as que se seguem:

Como penso?

Como eu falo? 

Como eu trato os outros?

Que pensamentos adotei de outros sem que refletisse a respeito?

Há uma pergunta feita por Nietzsche que deveria iluminar a nossa preocupação; fixar-se em nosso interior como objetivo inexpugnável: "Como transformar a minha vida numa obra de arte?" 

O caminho necessário para que esse parto existencial aconteça é procurar ficar "nu" diante de si mesmo. Há certas pessoas que vivem cinquenta, sessenta, setenta, oitenta anos, sem que venham a se dar conta de quem de fato são. A modernidade nos condenou à rapidez. Não pensamos, refletimos.  Desejamos que tudo aconteça de forma rápida. As crianças são ensinadas desde cedo lidarem com a velocidade, com a instantaneidade, sem terem noção de que o movimento da vida que nos leva à suprema sabedoria é completamente outro. Uma geração inteira está sendo concebida sem que os indivíduos saibam lidar com as suas frustrações. Simplesmente, vomitamos sentenças. Preocupamo-nos com as aparências e esquecemos o essencial da vida, que é o exercício do autoconhecimento. 

O eu não existe por si só; ele é uma construção. O eu é adquirido e criado por meio de prática. Evocando Nietzsche, pode-se afirmar: "Só valem a pena aqueles pensamentos concebidos enquanto estamos caminhando". 

É preciso ficar bastante atento para que nossas ações não sejam as ações dos outros. Para que as minhas falas, não sejam as falas dos outros; que o meu olhar, não seja o olhar dos outros; que as minhas ideias não sejam as ideias dos outros, concebidas sem nenhuma reflexão; que elas não sejam aquilo que os outros querem que eu pense. 

Caminhemos em silêncio, pois é assim que teremos nossos próprios pensamentos.