quarta-feira, agosto 22, 2018

O aborto, uma decisão de mulheres

Li há pouco uma reportagem da Folha de São Paulo que trazia alguns dados sobre o aborto no Brasil. A reportagem mostrava o quanto este ainda é um tema complexo por aqui. Todavia, há um facho, uma cintilação de esperança em meio às pesadas nuvens negativas: houve uma queda no número de pessoas que defendem a mudança na legislação. Ou seja, na pesquisa anterior o número era de 68%; agora, é de 58%. Significa que houve um recuo que aponta para um importante sinal. Com o amadurecimento do debate, certamente, haverá a legalização do aborto em todos os casos, como acontece em 80% dos países mais desenvolvidos do mundo. Todavia, ainda é necessário caminhar bastante a fim de que haja uma sensibilização, sem preconceitos ou achismos, sobre o tema.

Esta mudança deve ter acontecido em decorrência do quanto a matéria esteve em exposição estas últimas semanas. (1) foi a notícia vinda da Argentina. Por lá, a Câmara aprovou por votação apertada em junho; no Senado, contudo, houve rejeição, no dia 8 de agosto. Mesmo diante de forte mobilização das mulheres e entidades sociais, não houve a aprovação do aborto naquele país. Infelizmente. Se tivesse ocorrido, a Argentina seria o segundo país da América do Sul a liberar o aborto em todos os casos - o primeiro que permitiu foi o Uruguai, em 2012. Se a Argentina tivesse aprovado, certamente, robusteceria o debate pró-legalização aqui no Brasil. (2) No início do mês de agosto, houve uma audiência pública para julgar ação proposta pelo PSOL (ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) para legalizar o aborto até a décima segunda semana de gestação. Nesta audiência, presidida por Rosa Weber, aconteceu uma série de debates, que apresentava argumentos favoráveis e contrários à legalização do aborto. Foi um importante momento para que esse tema fosse encarado, debatido e se tornasse um elemento a ser discutido pelas pessoas. Quanto mais ele for mostrado, mais haverá apoio à causa da mulher. Aborto é um tema que diz respeito, primeiro, à mulher. 

Quando saímos do mundo ideal para o mundo concreto, enxergamos uma situação em que o Estado não deve se omitir. Existe uma legislação que tematiza sobre o aborto, mas esta é ineficaz. Há apenas três possibilidades para que ocorra um aborto legal no Brasil: (1) em caso de risco para a mãe; (2) quando a concepção se deu por meio de um estupro; (3) ou quando a criança é anencéfala. No demais casos, a lei não permite. Quando olhamos as três possibilidades, indagamos: o Estado já não autoriza o aborto, por que não poderia estender para outros casos? Há projetos tramitando no Congresso, empunhados por uma bancada cega (religiosa), conservadora, medievalesca, que buscam proibir até mesmo nas três situações acima. 

Segundo pesquisas, uma em cada cinco mulheres no Brasil, com idade até quarenta anos, já fez um aborto. Anualmente, o número de abortos chega a aproximadamente um milhão (850 mil). Segundo Débora Diniz, pesquisadora da Universidade de Brasília, "Se todas as mulheres que fizeram aborto estivessem na prisão hoje, teríamos um contingente de 4,7 milhões de mulheres, pelo menos cinco vezes o sistema prisional, que já é o quarto do mundo. Por que tão pouca razoabilidade nessa conversa? Aborto não é matéria de prisão, é de cuidado, de proteção e prevenção". 

Ou seja, mais do que uma temática leviana, falar sobre aborto é debater essencialmente uma questão fundamental de saúde pública, principalmente, que diz respeito aos direitos das mulheres. Geralmente, esse direito esbarra em compreensões religiosas, em um conservadorismo que não leva em conta as decisões das mulheres. O aborto até hoje é um tema tabu no Brasil - e em muitas partes do mundo - porque a concepção não ocorre no corpo do homem. A proibição além de envolver um problemática religiosa que não condiz com a relação com o Estado ("o direito não está limitado pela esfera religiosa" - Marco Aurélio), até alicerçado em um machismo estrutural. O site Catraca Livre reuniu alguns dados estarrecedores sobre o aborto:

  1.     A cada dois dias, uma mulher morre vítima de aborto inseguro no Brasil. Todos os anos, ocorrem 1 milhão de abortos clandestinos.
  2.     São 250 mil internações no SUS (Sistema Único de Saúde) e R$ 142 milhões gastos por causa de complicações pós-aborto.
  3.     Uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já abortaram no país, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, desenvolvida pela Anis – Instituto de Bioética.
  4.     As mulheres que abortam são, em geral, casadas, já têm filhos e 88% delas se declaram católicas, evangélicas, protestantes ou espíritas.
  5.     Cerca de 20 milhões dos abortos são realizados no mundo de forma insegura todos os anos, resultando na morte de 70 mil mulheres, sobretudo em países pobres e com legislações restritivas ao aborto.
  6.     97% dos abortos clandestinos ocorrem em países em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, 80% dos países desenvolvidos permitem o procedimento.
  7.     Uma pesquisa da Organização Mundial da Saúde e do Instituto Guttmacher (EUA), publicada em 2016, demonstrou que nos países em que o aborto é proibido o número de procedimentos não é menor do que em lugares onde é legalizado.
  8.     Em 2007, Portugal autorizou o aborto até as 10 semanas de gestação. Dez anos depois, pesquisa da ONG Associação para o Planejamento da Família mostra que o número de abortos caiu e as mortes decorrentes da prática são quase nulas. Na década de 1970, eram 100 mil abortos, sendo que 2% deles resultavam em morte, enquanto dados de 2008 mostram que o país registrou 18 mil abortos e, hoje, este número está em queda constante.
O recrudescimento ou a manutenção da lei aos padrões do que temos hoje, não impedirá que as mulheres deixem de abortar, quando se sentirem motivadas para tal. Existe uma compreensão equivocada sobre o tema. Acha-se que, uma vez que haja uma liberalização, muitas mulheres procurarão o método de forma indiscriminada e irresponsável. O que os/as defensore(a)s da mudança da lei buscam é permitir às mulheres, que, se encontrarem diante deste dilema, façam uma opção segura, sem colocar a vida em risco. No Brasil, as mulheres negras, pobres e de periferia são aquelas que sofrem com a legislação proibitiva. As mulheres que possuem dinheiro não sofrem com esse problema. Simplesmente, procuram uma clínica segura e limpa e realizam o procedimento - ou viajam para países onde a prática é autorizada. Às mulheres pobres, restam a culpa, o medo e a exposição a um procedimento que coloca as suas vidas em risco.

Outro fato é a sensação psicológica medonha de acharem que estão cometendo um crime abjeto e serem julgadas pela sociedade como criminosas. Àquelas que não quiserem abortar, que não abortem. O que não se deve é fazer com que um entendimento prevaleça sobre a necessidade de algumas pessoas. No que tange a isso, o Estado não deve se omitir. Deve, por sua vez, garantir o direito.

O que está em jogo é o direito, a autonomia, a dignidade, a saúde física e psíquica das mulheres. As legislações são feitas, em sua maioria por homens. O número de mulheres participando da vida política e das decisões do Judiciário ainda é pequeno. Os homens arvoram-se ao direito de opinar acerca de um tema que diz respeito, primeiro, ao corpo e à mente da mulher. Em um mundo possível, deveriam se abster de debater sobre este tema. Somente as mulheres deveriam decidir. Quando elas tivessem decidido, eles, basicamente, ratificaram a decisão. 

Nenhum comentário: