quinta-feira, maio 21, 2009

O homem moderno e a náusea de nada ser

Ontem pela manhã enquanto caminhava, veio-me à mente um trecho instigante do livro A Náusea de Sartre. Nada de notável. Não se trata obviamente de um resultado semelhante àquele de Nietzsche. A História da Filosofia nos retrata que enquanto o filósofo alemão caminhava, como sempre gostava de fazer, veio-lhe a intuição da filosofia do eterno retorno. Esse é um dos pontos basilares do pensamento de Friedrich. Os gregos costumavam filosofar enquanto caminhavam. Aristóteles ficou conhecido como um dos principais representantes do método. Chama-se peripatético (que em gregos significa “aquele que gosta de passear”). O peripapetismo seria o saber atribuído a essa prática.

O meu caminhar não era nem como o de Nietzsche, nem tão menos como o de Aristóteles. Todavia, enquanto caminhava, vendo os seres apressados que passavam por mim, lembrei-me das palavras do filósofo francês Jean-Paul Sartre: “Eles estão saindo dos escritórios, depois de seu dia de trabalho, olham para as casas e para as praças com ar satisfeito, pensam que essa é a sua cidade, uma ‘urbe burguesa’. Não têm medo, sentem-se em casa. Nunca viram senão a água domada que corre das torneiras, a luz que jorra das lâmpadas quando se aperta o interruptor, as árvores mestiças, bastardas, sustentadas por espeques. Eles comprovam, cem vezes por dia, que tudo se faz por mecanismo, que o mundo obedece a leis fixas e imutáveis. Os corpos abandonados no vazio caem na mesma velocidade, o jardim público é fechado todos os dias às dezesseis horas no inverno e às dezoito horas no verão, o chumbo funde a 335 graus centígrados, o último bonde sai da prefeitura às vinte e três e cinco. Eles são sossegados, um pouco taciturnos, pensam no Amanhã, isto é, simplesmente num novo hoje; as cidades dispõem apenas de um único dia que retorna igualzinho todas as manhãs. Só enfeitam um pouco aos domingos. Que Imbecis! (...) Eles legislam, escrevem romances populistas, casam-se, cometem a extrema tolice de fazer filhos. No entanto a grande natureza vaga penetrou em sua cidade, infiltrou-se por todo lado, em suas casas, em seus escritórios, neles próprios. Não se mexe, mantém-se quieta, eles estão bem dentro dela, respiram-na e não a vêem, imaginam que ela está lá fora, a vinte léguas da cidade”.

O livro A Náusea de Sartre dispensa maiores comentários. É ao lado de outras grandes obras, um dos textos mais representativos do século XX. Aponta o estado psicológico do homem moderno, mergulhado numa condição de nulidade existencial. O que acontece a Roquetin, personagem principal da obra de Sartre, é de certa forma emblemático, simbólico. O personagem é o arquétipo de um homem completamente desalojado. Sentado num determinado local, Roquetin faz a observação-reflexão acima transcrita. Enxerga como os homens andam zumbificados. A vida do burguês domesticado segue uma fluência maquinal. Os fatos e sistemas estão habitados por uma lógica constante, repisada. A existência só tem uma cor e essa cor se repete, se faz da mesma forma todos os dias.

A correria de todos os dias nos grandes centros. A tirania para conquistar, para alcançar um lugar satisfatório no funil da ascensão social são fatores que escravizam o homem. O homem moderno está escravizado por uma condição com a qual não pode lutar. Esmagado, o indivíduo moderno tornou-se uma espécie de joguete coisificado pela ausência de substância universal. O seu existir é seguir um jogo de regras inalteráveis. O homem moderno já não é um ser autêntico. É uma peça manipulada pelas estruturas opressoras que drenaram o sujeito como ente que possui potencialmente a capacidade de construir a História. É a morte do sujeito, conforme apregoava Foucault. Todos estão mortos. O homem moderno morreu.

Ele é, assim, um ente programado desde o dia em que nasce, até o dia em que morre. Vive para reproduzir um modelo de vida completamente robotizado. Já não sabe o que é real e o que é fictício. Confunde-se com os símbolos que criou. Nietzsche dizia que o homem é o único ser capaz de criar realidades e logo em seguida tornar-se escravo das realidades que criou. Ou seja, a criação sujeita o criador. O homem moderno corre atrás de modelos configurados por outros. Todavia, tais modelos ao mesmo tempo não são nada.

Todos os dias os homens vão e vêm, num ritmo sem significado. São seres autômatos, incapazes de responderem o que são e para onde estão indo. Caminham, mas não têm destino. Esmurram pela vida afora, mas o resultado de tal pugna é nulo, pois não há oponentes. A única realidade que há é o modelo que deve ser seguido, obedecido, mas o mesmo não é algo em si – apenas “a coisa”.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: sábado, 23 de agosto de 2008, 00:53:10.

sexta-feira, maio 15, 2009

Frei Tito, 30 anos do martírio

Extrair este texto do Betto do sítio ADITAL. O autor reflete sobre a morte de Frei Tito, que foi barbaramente torturado pelos militares durante o período do Golpe. Tito acabou cometendo suicídio enquanto estava exilado na França por conta das lembranças da tortura. O texto foi escrito em 2004, quando na ocasião celebrava-se 30 anos da morte do Frei. Neste ano completam-se 35 anos. O texto, porém, permanece bastante útil. Este fato é narrado pelo próprio Betto no livro Batismo de Sangue.


Quando secar o rio de minha infância, Secará toda dor. (Tito de Alencar Lima)

A 10 de agosto completa trinta anos da trágica morte de Frei Tito de Alencar Lima, em L'Arbresle, no Sul da França. Em sua dor gravou-se o que de mais hediondo produziu o militarismo brasileiro e, nele, reflete-se a venerável indignação de quantos acreditam na política como expressão coletiva de princípios éticos. No sofrimento de Tito, tornado símbolo das vítimas de torturas elencadas no livro Brasil, Nunca Mais (Vozes), inscreve-se a esperança de quantos acreditam na política como mediação de utopias libertárias. Preso em novembro de 1969, em São Paulo, acusado de oferecer infra-estrutura a Carlos Marighella, Tito é submetido à palmatória e choques elétricos, no DEOPS, em companhia de seus confrades. Em fevereiro do ano seguinte, quando já se encontra em mãos da Justiça Militar, é retirado do Presídio Tiradentes e levado para a Operação Bandeirantes, mais tarde conhecida como DOI-CODI, na rua Tutóia. Durante três dias, batem sua cabeça na parede, queimam sua pele com brasa de cigarros e dão-lhe choques por todo o corpo, em especial na boca, "para receber a hóstia", gritam os algozes. Fernando Gabeira, preso ao lado, tudo acompanha. Querem que Tito denuncie quem o ajudou a conseguir o sítio de Ibiúna para o congresso da UNE, em 1968, e assine depoimento atestando que dominicanos participaram de assaltos a bancos. No limite de sua resistência, Tito corta, com a gilete que lhe emprestam para fazer a barba, a artéria interna do cotovelo esquerdo. É socorrido a tempo no hospital militar, no Cambuci. As incessantes torturas não abrem a boca do frade dominicano de 28 anos, mas lhe cindem a alma. Cumpre-se a profecia do capitão Albernaz, da Oban: Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de seu silêncio. Em dezembro de 1970, incluído na lista de presos políticos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bucher, seqüestrado pela VPR de Lamarca, Tito é banido do Brasil pelo governo Médici. De Santiago do Chile ruma para Paris, sem jamais recuperar sua harmonia interior. Nas ruas da capital francesa, ele "vê" o espectro de seus torturadores. Transferido para L'Arbresle, próximo a Lyon, em seu estreito quarto no convento construído por Le Corbusier, Tito estremece aos gritos do pai espancado no DOPS, geme aos berros da mãe dependurada no pau-de-arara, arrepia-se de pavor aos espasmos de seus irmãos eletrocutados, contorce-se em calafrios sob o fantasma do delegado Fleury. Sua mente naufraga em delírios. Tito não recupera, no exílio, a paz que lhe fora seqüestrada. No dia 10 de agosto de 1974, um estranho silêncio paira sob o céu azul do verão francês, envolvendo folhas, ventos, flores e pássaros. Nada se move. Entre o céu e a terra, sob a copa de um álamo, balança o corpo de Frei Tito, dependurado numa corda. O suicídio foi o seu gesto de protesto e de reencontro, do outro lado da vida, da unidade perdida. Deixara registrado nas páginas de sua Bíblia que "é melhor morrer do que perder a vida". De retorno ao Brasil, em março de 1983, os restos mortais de Frei Tito tiveram solene acolhida na catedral da Sé, em celebração presidida pelo cardeal D. Paulo Evaristo Arns. Repousam agora em Fortaleza. Não se apagou, todavia, a luz de seu exemplo. A criatividade artística captou o rastro de sangue que se faz caminho. O curta-metragem Frei Tito, dirigido por Marlene França, recebeu aplausos em festivais do exterior, conquistou em Cuba o prêmio de melhor curta-metragem, no Festival Latino-Americano de Cinema e, no Brasil, o prêmio Margarida de Prata, da CNBB. Premiada pelo Serviço Nacional de Teatro, a peça de Licínio Rios Neto, Não Seria o Arco do Triunfo um Monumento ao Pau de Arara?, em memória de Tito, foi proibida pela Censura Federal durante o regime militar, impedindo Ricardo Guilherme de montá-la para percorrer o país. Adélia Prado homenageou-o num comovente poema. Oriana Fallaci dedicou a ele o livro - Um Homem - em que narra a paixão dela por Panagoulis, líder da resistência à ditadura grega. O senador italiano Raniero La Valle escreveu, sobre Tito, Fora do Campo, editado no Brasil pela Civilização Brasileira. Clara de Góes encontrou em Tito a força de inspiração para um de seus livros de poesia. Frei Tito é venerado por muitas pessoas de fé, que recorrem à sua intercessão em busca de graças. Recordá-lo é resgatar o sacrifício de todos que, no Brasil, lutaram pela restauração da ordem democrática. Ela ainda é frágil, porém promissora, considerando que a sociedade civil prossegue se organizando e mobilizando na conquista de cidadania e na consolidação da democracia. Celebrar neste ano a memória de Frei Tito é homenagear o sacrifício de todos que, no Brasil, viveram na bem-aventurança da sede de justiça e da fome de liberdade. E não temeram dar a vida para que todos tivessem vida, e vida em plenitude (João 10, 10).

* Frei Betto é autor de Batismo de Sangue (Casa Amarela), entre outros livros.

terça-feira, maio 05, 2009

Comentário ao filme "Desmundo"

O filme “Desmundo”, do diretor Alain Fresnot, é um trabalho de competência. Esta encenação cinematográfica foi inspirada na obra homônima da escritora brasileira Ana Miranda. Não existe diretamente uma harmonia entre a obra de Miranda e o filme do diretor Fresnot. O filme se passa no século XVI, mais precisamente 1.570. Trata-se de um período singular da história nacional. Faziam-se apenas 70 anos da chegada de Cabral às terras brasileiras. É digno de se afirmar que há um hiato de 30 anos entre a chegada de Cabral – 1.500 a 1.530. Ou seja, 1.570 representa em termos cronológicos apenas 40 anos de exploração da terra brasileira.
Nesse sentido, o filme busca mostrar a rusticidade de como se encontrava a terra “brasis”. Não havia grandes instalações; construções sobejas; pavimentações necessárias. A colônia não passava de um vilarejo habitado por tipos estranhos. Portugal buscava naquele presente histórico povoar a terra. Há no filme uma pretensã, uma fidedignidade sociológica, histórica e antropológica. Pode-se aduzir, tocando neste aspecto, que a reprodução da contingência histórica é primorosa, esteticamente feliz.
A temática circunda em torno da história de Oribela, moça da metrópole enviada com outras donzelas pela rainha de Portugal para gerar homens com sangue português. Assim, há como que uma intenção da metrópole em fazer com que o sangue “puro” do colonizador esteja presente no Novo Mundo. A protagonista do filme possui trejeitos adolescentizados. As cenas se desenvolvem em torno da sua dor, da sua luta pessoal. A epicidade do filme se secundariza para lançar em primeiro plano o mundo de Oribela. A sua tarefa parece ser se dês-vestir da dor que a persegue como uma sombra negra. Ela é a mulher indômita, de vontade aflita, de nobreza de mártir, que sofre por causa de um desejo ardente de voltar a um Portugal distante como uma promessa divina, paradisíaca de liberdade. A sua dor acaba atingindo àqueles que assistem ao filme. Brota como que um sentimento de comiseração mesclado de indignação.
A moça acaba casando forçada pelas circunstâncias com Francisco Albuquerque, um colono rústico. De feições brutas. Cabelos longos, barba espessa. Homem imponderado, ganancioso, despido de sensibilidades; sequioso amante da luxúria, que acaba possuindo a donzela à força. Francisco é um homem do sexo. Ele possui Oribela com gestos animalizados. É de se ressaltar que o filme deixa transparecer com muita limpidez a situação da mulher do século XVI. O sexo feminino estava submetido ao desejo masculino. A vontade da esposa era para o “seu senhor”, que a subjugava com força – e às vezes com violência impudica. O filme é um retrato intencional dessa realidade.
Outro aspecto abordado e presente no filme é o poder da Igreja, que regia as mentalidades de forma absoluta. Não se discute com o padre. Ele representa a instituição com tentáculos virtuais enormes. Ela é uma espécie de Leviatã, um ente mitológico. Os sacerdotes são os embaixadores, os soldados que levam à frente as promessas e o poder real e ideal da igreja. A religião, assim, está incrustada na mente do povo de forma poderosa.
O filme possui assim por dizer uma carga universalizante, pois aparece a figura de um sarraceno, chamando em uma cena de “marrano”. Vale mencionar que identificar alguém como marrano naqueles dias era atribuir a “designação injuriosa dada outrora aos mouros e judeus; ou indivíduo excomungado, sujo, imundo, porco”. O dono dessa alcunha é Ximeno, “um cristão novo”.
Não se sabe se existe um caráter intencional da parte do diretor por expor no filme uma diversidade de línguas. Inicialmente, vale afirmar que o filme respeita a história que está escondida naquele emaranhado de fala portuguesa quinhentista reproduzida ficcionalmente. Trata-se de um português arcaico, antigo, quase uma mescla do espanhol com o galego. Em alguns moments, os sons soam como castelhano. Há ainda no filme a presença da língua hebraica e árabe, atribuída a Ximeno; do latim, usado na reza ds crentes e na proclamação dos rituais católicos; da língua indýgena, representando a ação primária dos homens que habitavam a terra quando da chegada dos portugueses; a presença de dialetos africanos, na figura de um escravo de Ximeno.
Num dado sentido, podemos inferir que essa babel globalizante de línguas pode possuir uma impressão simbólico-profética. É como se essas línguas constituíssem o tronco que faria surgir um português que é resultado de um processo progressivo de intensas manifestações sociais, de cruzamento étnico. Essas características forjam uma percepção naquele que assiste esta encenação cinematográfica.
A língua é um fato social. É o resultado da cultura imediata. Entendendo-se, assim, é de se salientar que o filme contribui para identificar a ampla gama de elementos lingüísticos que atuaram diretamente na formaçóo do português do Brasil. A língua portuguesa brasileira possui características somente inerentes a ela. A dogmatização de entendimento, conforme procedem os gramáticos, não permite que se perceba o processo de flexibilização da língua. Surge, assim, um devenir, um vir a ser da língua. Toda língua falada por um povo passa por este processo de “tornar-se”. Estes são os aspectos mais imediatos e identificáveis no filme do diretor Alain Fresnot.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: Terça-feira, 3 de abril de 2007, 20:37