domingo, maio 30, 2021

"As ideias inertes"


Mês passado, o extraordinário Alfredo Bosi faleceu, vitimado pela Covid-19. Uma perda verdadeiramente inestimável para a inteligência brasileira. Muitas homenagens ao seu legado foram direcionadas honesta e devidamente. Procurei no Youtube algumas de suas palestras. Pus-me a escutar uma em particular, feita (penso) em 2015, na Academia Brasileira de Letras – vale ressaltar que Bosi fazia parte do corpo de imortais da instituição fundada por Machado de Assis.

A palestra tratava sobre o conceito de cultura e seus desdobramentos. O próprio Bosi diz na palestra que o conceito de cultura é complexo e carece de enormes esforços reflexivos. E, ao longo de sua fala, buscava conciliar a reflexão sobre o conceito de cultura com experiências e histórias vividas, o que tornava a sua fala irresistível. Bosi utilizava eventos aparentemente banais e os transformava em uma reflexão poderosa. Em dado momento, ele disse algo que me deixou em suspensão. Evocando o filósofo e educador estadunidense John Dewey, o autor de “A história concisa da literatura brasileira” fala em “ideias inertes”.

Ele explica que a expressão era extraída do pensamento de Dewey, um dos nomes mais importantes da filosofia dos Estados Unidos. Dewey é considerado como um dos fundadores da corrente pragmatista de filosofia ao lado de William James, Charles Sanders Peirce e Josiah Royce. Para o pragmatismo uma ideia é boa, portanto, aproveitável, quando o conjunto dos seus desdobramentos resulta em algo prático.

Com sua maneira muito singela, mas com grande vitalidade e erudição, Bosi fala sobre as ideias que podem morar no campo da abstração e, portanto, do alto idealismo, mas que nunca se transformam em substância prática. Coloquei-me a pensar sobre essa questão – “ideias inertes” – e perceber o quanto a sociedade e a nossa própria vida podem estar encharcadas por ideias estagnadas. Um exemplo é a quantidade de leis existentes no nosso país. Somente as federais são mais de quatorze mil, sem mencionar as estaduais e municipais. Essas leis são abstrações, são fossilizações ideais. Existem apenas como um regulamento ideal. Enquanto não se transformam em prática; enquanto não são se tornam em eventos práticos, são meras ideias que pouco servem. Estão “inertes” em sua inamovibilidade. E o que mais testemunhamos é o desrespeito a essas normas. Uma sociedade que faz leis, mas não as segue, verdadeiramente, considera esse conjunto normativo como “ideias inertes”.

Do mesmo modo, há aqueles sujeitos que se cercam de “ideias inertes”; de sonhos inertes, que não se tornam em movimento. Importante dizer que existem ideias que são como o vento: elas são intangíveis. O que seria do mundo se não existissem as ideias intangíveis? Seríamos homens e mulheres apoéticos. Nós humanos temos uma necessidade de abstrair. A literatura e a arte em geral são campos das ideias e abstrações. Acredito que não era sobre esse tipo de abstração à qual Dewey estava se referindo.

Penso que Bosi ao evocar Dewey queria justamente chamar a atenção para o fato de que é preciso tornar concreto aquilo que se pensa. Sair do mundo dos pensamentos que não se encaminham para a vida. Abandonar as resoluções estéreis, aquelas que pouco contribuem com a história. Neste sentido é importante pensar em João Cabral de Melo Neto e seu fabuloso poema “A Educação pela pedra”. Diz ele que é importante experimentar da pedra “sua carnadura concreta”. Sim! É importante experimentar a “carnadura concreta” da vida. Sentir a sua resistência! Seu bafo quente! Seu arrojo, seu movimento. “Captar a sua voz inenfática, impessoal”, ainda citando o poema de João Cabral de Melo Neto.

O que é “inerte” não muda, não transforma, não exaspera, não comove o mundo.