sexta-feira, agosto 28, 2009

Via Crucis - Por Clarice Lispector


Clarice Lispector é mais que uma escritora de literatura. Ela costuma fazer profundas viagens filósoficas e poéticas em seus texos. Por isso, resolvi postar este conto fascinante: um misto de ironia, realismo fantástico e crítica da vida.


Maria das Dores se assustou. Mas se assustou de fato.
Começou pela menstruação que não veio. Isso a surpreendeu porque ela era muito regular.
Passaram-se mais de dois meses e nada. Foi a uma ginecologista. Esta diagnosticou uma evidente gravidez.
— Não pode ser! gritou Maria das Dores.
— Por quê? a senhora não é casada?
— Sou, mas sou virgem, meu marido nunca me tocou. Primeiro porque ele é homem paciente, segundo porque já é meio impotente.
A ginecologista tentou argumentar:
— Quem sabe se a senhora em alguma noite…
— Nunca! mas nunca mesmo!
— Então, concluiu a ginecologista, não sei como explicar. A senhora já está no fim do terceiro mês.
Maria das Dores saiu do consultório toda tonta. Teve que parar num restaurante e tomar um café. Para conseguir entender.
O que é que estava lhe acontecendo? Grande angústia tomou-a. Mas saiu do restaurante mais calma.
Na rua, de volta para casa, comprou um casaquinho para o bebê. Azul, pois tinha certeza que seria menino. Que nome lhe daria? Só podia lhe dar um nome: Jesus.
Em casa encontrou o marido lendo jornal e de chinelos. Contou-lhe o que acontecia. O homem se assustou:
— Então eu sou São José?
— É, foi a resposta lacônica. Caíram ambos em grande meditação.
Maria das Dores mandou a empregada comprar as vitaminas que a ginecologista receitara. Eram para o benefício de seu filho.
Filho divino. Ela fora escolhida por Deus para dar ao mundo o novo Messias.
Comprou o berço azul. Começou a tricotar casaquinhos e a fazer fraldas macias.
Enquanto isso a barriga crescia. O feto era dinâmico: dava-lhe violentos pontapés. Às vezes ela chamava São José para pôr a mão na sua barriga e sentir o filho vivendo com força.
São José então ficava com os olhos molhados de lágrimas. Tratava-se de um Jesus vigoroso. Ela se sentia toda iluminada.
A uma amiga mais íntima Maria das Dores contou a história abismante. A amiga também se assustou:
— Maria das Dores, mas que destino privilegiado você tem!
— Privilegiado, sim, suspirou Maria das Dores. Mas que posso fazer para que meu filho não siga a via crucis?
— Reze, aconselhou a amiga, reze muito.
E Maria das Dores começou a acreditar em milagres. Uma vez julgou ver de pé ao seu lado a Virgem Maria que lhe sorria. Outra vez ela mesma fez o milagre: o marido estava com uma ferida aberta na perna, Maria das Dores beijou a ferida. No dia seguinte nem marca havia.
Fazia frio, era mês de julho. Em outubro nasceria a criança.
Mas onde encontrar um estábulo? Só se fosse para uma fazenda do interior de Minas Gerais. Então resolveu ir à fazenda da tia Mininha.
O que lhe preocupava é que a criança não nasceria em vinte e cinco de dezembro.
Ia à igreja todos os dias e, mesmo barriguda, ficava horas ajoelhada. Como madrinha do filho escolhera a Virgem Maria. E para padrinho o Cristo.
E assim foi se passando o tempo. Maria das Dores engordara brutalmente e tinha desejos estranhos. Como o de comer uvas geladas. São José foi com ela para a fazenda. E lá fazia seus trabalhos de marcenaria.
Um dia Maria das Dores empanturrou-se demais — vomitou muito e chorou. E pensou: começou a via crucis de meu sagrado filho.
Mas parecia-lhe que se desse à criança o nome de Jesus, ele seria, quando homem, crucificado. Era melhor dar-lhe o nome de Emmanuel. Nome simples. Nome bom.
Esperava Emmanuel sentada debaixo de uma jabuticabeira. E pensava:
Quando chegar a hora, não vou gritar, vou só dizer: ai Jesus!
E comia jabuticabas. Empanturrava-se a mãe de Jesus.
A tia — a par de tudo — preparava o quarto com cortinas azuis. O estábulo estava ali, com seu cheiro bom de estrume e suas vacas.
De noite Maria das Dores olhava para o céu estrelado à procura da estrela-guia. Quem seriam os três reis magos? quem lhe traria incenso e mirra?
Dava longos passeios porque a médica lhe recomendara caminhar muito. São José deixara crescer a barba grisalha e os longos cabelos chegavam-lhe aos ombros.
Era difícil esperar. O tempo não passava. A tia fazia-lhes, para o café da manhã, brevidades que se desmanchavam na boca. E o frio deixava-lhes as mãos vermelhas e duras.
De noite acendiam a lareira e ficavam sentados ali a se esquentarem. São José arranjava para si um cajado. E, como não mudava de roupa, tinha um cheiro sufocante. Sua túnica era de estopa. Ele tomava vinho junto da lareira. Maria das Dores tomava grosso leite branco, com o terço na mão.
De manhã bem cedo ia espiar as vacas no estábulo. As vacas mugiam. Maria das Dores sorria-lhes. Todos humildes: vacas e mulher. Maria das Dores a ponto de chorar. Ajeitava as palhas no chão, preparando lugar onde se deitar quando chegasse a hora. A hora da iluminação.
São José, com seu cajado ia meditar na montanha. A tia preparava lombinho de porco e todos comiam danadamente. E a criança nada de nascer.
Até que numa noite, às três horas da madrugada, Maria das Dores sentiu a primeira dor. Acendeu a lamparina, acordou São José, acordou a tia. Vestiram-se. E com um archote iluminando-lhes o caminho, dirigiram-se através das árvores para o estábulo. Uma grossa estrela faiscava no céu negro.
As vacas, acordadas, ficaram inquietas, começaram a mugir.
Daí a pouco nova dor. Maria das Dores mordeu a própria mão para não gritar. E não amanhecia.
São José tremia de frio. Maria das Dores, deitada na palha, sob um cobertor, aguardava.
Então veio uma dor forte demais. Ai Jesus, gemeu Maria das Dores. Ai Jesus, pareciam mugir as vacas.
As estrelas no céu.
Então aconteceu.
Nasceu Emmanuel.
E o estábulo pareceu iluminar-se todo.
Era um forte e belo menino que deu um berro na madrugada.
São José cortou o cordão umbilical. E a mãe sorria. A tia chorava.
Não se sabe se essa criança teve que passar pela via crucis. Todos passam.


* Este texto faz parte do livro A Via Crucis do Corpo de Clarice Lispector.

quarta-feira, agosto 19, 2009

Mudança

Longe da fazenda, considerei-me fora da realidade e só. De fato, não estava só: várias pessoas transitavam por ali, ruídos vagos quebravam o silêncio. (...) Absurdo alguém viver num lugar onde se apertavam tantas casas.

Graciliano Ramos, in Infância, p. 43

No início do ano de 1.989 eu estava às vésperas dos dez anos. Um acontecimento extraordinário se deu. E isso desenhou contornos novos à minha vida. A minha existência se inclinou para outra direção. Foi um ano interessante para a minha família. Minha mãe era uma mulher de trinta anos; meu pai um homem de trinta e três anos; e meu irmão tinha apenas sete anos. Fomos visitados pela surpresa. Com certeza esse acontecimento mudaria a perspectiva da minha vida como estudante. Deixaria a escola rural. Lá estudei até a terceira série do ensino fundamental. Já sabia assinar o nome. Caminhava por estradas esburacadas quando ia ler. Intervalos volumosos. Gagueiras. Esforços no soletramento. Já havia vencido a cartilha. Estava num nível mais elevado. O livro agora tinha mais palavras e menos figuras, critério este, que para alguns, diferencia todo e qualquer livro.

Como acontecia naquelas paragens, muitos dos filhos daquela terra migravam para o centro-sul em busca de melhores condições para a sobrevivência. E assim havia se dado como Manuel Serafim que havia vindo para Brasília na década de setenta. Na capital do país chegara, constituíra família, arrumara um emprego e vivia com estabilidade na cidade satélite de Brazlândia. Chegara em Pernambuco no início de 1.989 – mês de fevereiro. Fez andanças. Visitou os colegas de infância. Foi à venda conversar com os matutos. Quando chegava alguém que morava num outro estado, a região inteira ficava excitada. Dizia-se, geralmente:

- Você viu, o filho de fulano chegou de...!?. Ou:

- Chegou de São Paulo, o filho de sicrano... – e assim se perpetuavam as novidades.

A minha fantasia também se colocava a trabalhar. Como seria esse novo mundo? Hoje, por exemplo, quando escuto a Nona Sinfonia de Anton Dvorak, “Novo Mundo” a compreendo e a sinto pelo simples fato de um dia ter experimentado as impressões de uma imaginação que brincava/brinca com a minha mente. Dvorak escreveu para descrever como os migrantes se sentiam ao chegar ao Novo Mundo, a América. Eu naquele tempo não conhecia o compositor tcheco, mas tinha nas paredes minha mente telas pintadas descrevendo estes mundos impressionantes. Contavam-me fora e eu os desenhava dentro. Por isso, imaginava esses novos mundos e os coloria com cores impressionantes.

O fato é que Manuel Serafim acabou encontrando meu pai. Fez promessas. Disse que levaria o meu pai para Brasília. No mês de março meu pai partia para Brasília. Ficamos eu, minha mãe e meu irmão sozinhos. Meu pai partia para criar condições, para que ao chegarmos a Brasília, não fossemos privados pela necessidade. Deixaria a minha terra. Partiria para um mundo estranho, novo. Como eram as criaturas. Meus nove anos me propiciava sensações agradáveis. Os meus pés calejados se afastariam da terra que nasci. Os meus banhos de riacho teriam cabo. Os coqueirais não mais tremulariam sob o vento para que eu os visse. Meus colegas seriam deixados. As cabras e bodes não mais seriam pastoreados por mim. A lenha na mata não teria mais necessidade de ser buscada. Iria embora a ameaça dos espíritos das matas. Os canaviais seriam abandonados. A visão do engenho Cacimba totalmente embargado pelo tempo se diluiria na memória. Esboroamentos completos. Lapsos abruptos. Expatriamento a fórceps, não tinha como lutar contra a mudança inexorável.

Cinco meses ficamos esperando até que as condições foram criadas para que partíssemos. Nesse período, lembro-me nitidamente, que abandonei a escola. Achava-me livre das lições morosas. Da professora que trocava “árvore” por “arvore”. Do cocó volumoso no alto da cabeça. Das vestimentas largas. Dos meninos que gastavam os olhos na lição ordinária.

Finalmente, no dia 19 de agosto de 1.989, às 21 horas e trinta minutos deixávamos o Pernambuco e nos dirigíamos para o coração do Brasil. Um novo tempo se desenhava, como a paisagem que corria fora das janelas do ônibus da Itapemirim. Meus olhos tentavam se adaptar às novas paisagens. Cheguei à Capital Federal num domingo. Tempo frio, seco, desértico. Os entardeceres tinham conotações místicas. O ocaso possuía tonalidades diferentes. O sol todos os dias se escondia avermelhado. As árvores eram banhadas por focos psicodélicos de luminosidade acobreada. Tinha a impressão de ver no céu um olho vermelho sem pálpebra. Uma bola enorme, incandescente. Menino desinformado, sentia-me inferiorizado diante dos outros. Fui morar em Ceilândia Norte num local insalubre. No lote em que morávamos várias famílias se escondiam em barracos de madeira. Espantalhos tortos. O local se assemelhava a um cortiço. Nas noites longas e frias ouvia as discussões entre os casais.

Nos meus dias eu sentia saudades do Nordeste. Ficamos eu, minha mãe e meu irmão no barraco crivado de instabilidade enquanto meu pai trabalhava. O frio molestava-nos. Fiquei o resto do ano de 1.989 sem estudar. Não lembro se brincava com o meu irmão e que brincadeiras poderíamos efetivar. O fato é que sentia um saudosismo dos meus avós. Habitava em meu peito um buraco que somente cabia às minhas vivências pernambucanas. Minha mãe se alimentava de cartas e eu de vontade de ser uma carta. Queria poder informar os meus parentes e ambientações distantes sobre como estávamos em nossa saudade do tamanho deles.

Mudamos para um outro local na mesma vizinhança, contudo tratava-se de um local melhor, mais amplo, mais privativo. Fiz amizades com meninos da minha idade. Brincava de carrinhos. Nas tardes que se finavam num processo morredouro, eu com minha sensibilidade lembrava do Pernambuco. Como naqueles mesmos momentos, enquanto estava nos rincões pernambucanos, eu ia catar lenha na mata, apascentar o rebanho de minha mãe, brincar, correr, andar descalço, buscar água na cacimba. Tecendo essas memórias, amarrando idéias e desembaraçando pensamentos, vejo hoje que deve ser por isso que até tenho o costume de fazer comparações, guardar fatos e mergulhar nos rios caudalosos de reminiscências doces. Aprendi esse artifício na minha infância. Criança invadida pela saudade, eu a levava comigo para onde ia e isso me fazia crescer. Uma despedida, hoje, abre hiatos no peito ao passo que me recordo de situações vividas. Didatismo aprendido de um tempo em que privado pela distância, eu guardava em mim a capacidade de me orientar nas estradas da minha imaginação.

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* Este texto é resultado de uma pequena autobiografia que escrevi no ano de 2006 para uma atividade na faculdade. Possui pouco mais de 65 páginas. Este capítulo narra a minha saída do Pernambuco. Foi num dia como este, 19 de agosto. Ainda me recordo dos acontecimentos. Pretendo futuramente engrossar as ideias e tornar esses fatos em um livro. Com disciplina isso será possível.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque

Data: 19 de agosto de 2009, 20:49:52

sábado, agosto 15, 2009

Pequenos Burgueses - uma breve reflexão

Terminei de ler há pouco a peça de teatro Pequenos Burgueses de Maximo Gorki. Causou-me impressão profunda. A história se passa num ambiente familiar asfixiante na Rússia pré-revolucionária. O realismo da obra revela como viviam os homens no Império Russo do início do século XX. A peça é, assim, um retrato exatificante da sociedade do escritor.
Gorki a escreveu em 1901. É um dos primeiros trabalhos de peso do escritor. As personagens vivem num meio niilista. São espectros de uma realidade condicionada pela mesquinhez. Bessemenov é a figura paterna que representa a ganância, a sovinice, o desejo pelo lucro. Piotr, filho de Bessemenov, é um intelectual insatisfeito. Tatiana é a filha depressiva e angustiada. É um tipo de figura de figura que representa a feminilidade opressa pelas tradições burguesas. A mulher deveria casar até certa idade. Era necessário se preocupar com essa imposição para não ficar mal vista.
Outra figura importante na peça é Nil, um entusiasta, destemido e trabalhador. É a figura do revolucionário. Daqueles que mais tarde empunhariam lanças e espadas e fariam a Revolução de 1905; e, mais tarde, a Revolução Russa de 1917. Nil é um tipo de arquétipo do proletário valente. Do homem destemido que enfrenta o frio, a neve, a fome, os soldados do czar e que é capaz de duelar com o desconhecido com as próprias mãos.
Mas ao meu modo de ver, o personagem mais interessante da obra é um pensionista e cantor que mora na casa de Bessemenov chamado Teteriev. Este personagem me deixou a impressão de que era um cínico, maquiavélico e cético. Essa atribuição de valores não é negativa. Muito pelo contrário. Teteriev é a figura mais lúcida da obra. Suas intervenções são profundamente filosóficas. As enunciações que faz evidenciam verdades desconcertantes. A lucidez de Teteriev cria um contraste na história. Ele é um ícone da racionalidade. Porque ao seu modo de ver “só os homens duros, inflexíveis como espadas, abrem caminho...”. Ou: “...é melhor morrer caminhando, do que apodrecer no mesmo lugar”. Ou ainda: “Vivo apenas por curiosidade”.
O livro é assim um tipo de literatura que evidencia o proletariado. O retrato familiar burguês é um quadro notável da sociedade russa. É a sociedade russa miniaturizada com suas lutas infames, com seus dilemas mesquinhos e com o seu niilismo. Gorki retrata essas questões com uma vivacidade realista impressionável. Acredito que quadro mais vivo e dramático é mostrado em A Mãe, que principiarei a leitura.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: 15 de agosto de 2009, 20:38:51