quarta-feira, março 28, 2012

O dogmatismo de Dogville

Como sou obcecado por esse filme de Lars Von Trier, senti necessidade de postar esta bela resenha:

Por Alexandre Busko Valim

Um dos primeiros signatários do manifesto denominado “Dogma 95” surgido em Copenhague em 1995, foi Lars Von Trier. O manifesto procurava contrariar algumas tendências do “cinema comercial” e recuperar um cinema que consideravam estar morto. O Dogma 95 opunha-se ao conceito de autor, de cinema individual e efeitos especiais. Segundo tal manifesto “A tarefa ‘suprema’ dos realizadores decadentes é enganar a audiência. É disso que estão tão orgulhosos? Foi isso que ‘100 anos’ nos deram? Ilusões a partir das quais as emoções podem ser comunicadas? (…) Uma ilusão da dor e uma ilusão do amor”. Se observarmos as regras do “voto de castidade”[1] contido no manifesto assinado por Von Trier, veremos que Dogville não pode ser considerado como uma produção tardia do Dogma 95. No entanto, o radicalismo formal e de conteúdo em Dogville lembra, ao menos, as ousadas experiências feitas pelo movimento dinamarquês.
Dogville é uma pequena cidade, com pouco mais de uma dezena de residentes, situada em algum lugar entre as montanhas do meio-oeste estadunidense. A história se passa durante a Grande Recessão Americana na década de 1930 e gira em torno de Grace (Nicole Kidman), uma jovem que, fugindo de perigosos gangsteres, acaba encontrando refúgio em Dogville. Encantado com a moça, o introspectivo Tom (Paul Bettany) propõe que a cidade ofereça abrigo a Grace que, em troca, faria pequenos serviços para seus moradores. Aos poucos, porém, os aparentemente amáveis habitantes de Dogville, ao descobrirem que ela está sendo procurada pela polícia, vão exibindo um lado sombrio e passam a explorar a garota, a impedindo de abandonar o lugar.
 

Von Trier criou um espaço cinematográfico simples e despojado incorporando elementos teatrais e literários; utilizando vários elementos do teatro de Bertolt Brecht. Minimalista, o diretor utilizou alguns objetos de cena mas nenhum cenário; apenas linhas pintadas no chão demarcando duas ou três ruas e algumas casas. O cenário invisível (sem paredes, janelas ou portas) permite que o espectador veja os coadjuvantes em seus afazeres longe do foco principal da ação. Além de servir como metáfora do filme, não desviando a atenção do espectador para nada além da narrativa, o artifício ressalta a dramaticidade através da encenação. Desse modo, Von Trier consegue estender a profundidade de campo e sublinhar as conseqüências de cada ação individual em relação à comunidade como, por exemplo, nas seqüências em que Grace é estuprada.
Ao abdicar dos cenários e dos adereços, o diretor procurou valorizar o âmago de cada personagem para que o espectador, despojado do “supérfluo” e do “superficial”, pudesse olhar apenas para o que verdadeiramente interessa em seu filme: a desumanidade que “emana” da humanidade.
Embora o filme seja composto por um prólogo, que apresenta os personagens, e nove capítulos, sua argumentação pode ser divida em três partes: 1 – Grace é aceita na cidade ao se tornar útil a cada um dos moradores – oferecendo sua companhia a um homem cego que não admite a cegueira (Ben Gazzara), colhendo maçãs para um sitiante (Stellan Skaarsgard) ou cuidando do pomar de Ma Ginger (Lauren Bacall). 2 – Quando a polícia e os gangsteres intensificam a procura por Grace e os moradores tornam-se cruéis. 3 – O desfecho da trama, com uma mudança de atitude de Grace.
Dentre as leituras possíveis de Dogville, a que trata o filme como uma parábola moral me parece ser a mais interessante. Nessa perspectiva, Dogville é uma “novela exemplar” sobre o comportamento humano, a vida em comunidade e a tensão que se estabelece entre a escolha individual e a norma coletiva. Na segunda parte do filme, de maneira completamente oposta à primeira impressão que Grace tem quando conhece os residentes da pequena cidade, os moradores revelam a sua vilania, representada através de pecados da natureza humana como: a vaidade (Chloe Sevigny), o orgulho (Ben Gazarra), a ira (Patrícia Clarkson), a luxúria (Jean-Marc Barr), a avareza (Lauren Bacall) e a inveja (Stellan Skarsgard). Desse modo, por trás do gesto de tolerância e compreensão coletiva, só haveria torpes interesses individuais.
Em algumas seqüências existem motivos que estão relacionados a uma crítica do diretor à sociedade estadunidense como, por exemplo, no escritor pragmático que tenta transformar o vilarejo em um laboratório para testar suas teorias moralistas e obter material para um “grande livro”; o hábito de discutir as questões da comunidade em assembléias paroquiais – uma atividade coletiva, mas que no filme é uma máscara que esconde um individualismo conservador e possessivo, além do ódio ao forasteiro; quando Grace ensina o estoicismo aos filhos de Vera (Patricia Clarkson) lhes mostrando como suportar a pobreza e as frustrações sem revoltas. Entretanto, apesar destes pontos, talvez o filme seja mais uma crítica à sociedade de classes do que à sociedade estadunidense.

De maneira bastante moralista o filme afirma repetidamente, e de forma agressiva, que todos somos responsáveis pelos nossos atos, e se temos problemas é porque não fazemos o suficiente para resolvê-los. Assim, nossa ignorância e ausência de um verdadeiro interesse pelo coletivo, ilustrado em várias passagens, é a alavanca que causa dor e sofrimento a nós mesmos; como, por exemplo, na seqüência em que um morador é reprimido verbalmente pelos outros dentro da igreja, ao lembrar que eles nunca se ajudam.
Após oito kafkianas e angustiantes partes, Grace[2] se encontra com o pai gangster (James Caan) dentro do carro e iniciam uma conversa sobre o destino de Dogville. O gangster, na perspectiva que apontamos anteriormente, é um Deus severo e vingativo assim como no Antigo Testamento. Nesse momento, ela e o pai dialogam sobre a soberbia: Ela quer o perdão para os habitantes da cidade, como se dissesse “eles não sabem o que fazem”. Deus a acusa de soberbia por fazer a concessão de perdoar quem lhe é inferior e lhe impingiu tanto sofrimento. Grace diz que o pai é soberbo devido à sua vontade de vingança e pede poder, que lhe é concedido, para salvar Dogville. Entretanto, ao sair do carro, e ouvir Tom “o intelectual” dizer que escreveria sobre o que se passou, que aquilo seria passível de análise, ela se desilude com a humanidade e purga Dogville com o aniquilamento – houve aplausos entusiásticos na sessão em que eu o assisti.
Uma leitura possível do personagem Tom é que ele representa tão somente a parte da sociedade intelectualizada que, no filme, sempre repete as mesmas coisas, confunde os outros com seus discursos vagos; mente para dar coerência às suas teorias e tem medo de uma inserção mais incisiva nos problemas sociais; os exemplos estão presentes em várias seqüências, como por exemplo, quando ela é estuprada próximo dele. A esperança que Grace tinha na humanidade se perde quando os que realmente poderiam fazer algo, o titubeante Tom, não fazem e reafirmam sua hesitação e passividade; uma crítica ao papel dos intelectuais como operadores sociais, que reforça a opinião do diretor: a humanidade não tem salvação.
A mensagem na seqüência final, quando Grace ouve os latidos do cachorro chamado “Moisés”, é que o animal tinha um motivo para não gostar dela, afinal ela havia roubado seu osso. Ela permite que o cachorro fique vivo pois nele há algo que não havia nos habitantes de Dogville, o que era? Nesse momento, o narrador em off diz: “será que alguém terá coragem de perguntar? e se isso for feito, será que alguém terá coragem de responder?”. A resposta soa um tanto quanto óbvia e reafirma Grace como uma mártir destinada a limpar tais impurezas como um Cristo redivivo e altivo; No entanto, no encontro imaginado por Lars Von Trier ante a desumanidade de Dogville, a divina Grace, sem nenhum desejo de conceder o perdão, desencadeia o “Dia do Juízo Final”.
As quase três horas de filme terminam com fotografias tiradas nos EUA na década de 1930 e com um fundo musical de “Young Americans”, de David Bowie, reafirmando a crítica do diretor à política estadunidense. Juntamente com Dogville, foi produzido um documentário com os relatos – em forma de confessionário – dos participantes do filme, intitulado “Dogville Confessions”. Dogville será o primeiro de uma trilogia centrada nos Estados Unidos e chamada USA: The land of opportunities. O segundo filme, que começa a ser rodado em março de 2004, chama-se Manderlay – sobre a escravidão no sul dos Estados Unidos – e o terceiro Washington.
Em Dogville, Lars von Trier apresenta uma percepção pessimista da humanidade, onde impera o cinismo, a hipocrisia, a chantagem, a vingança, a mentira, e uma visão dogmática que, além de rejeitar qualquer alternativa, simplifica e naturaliza a maldade.

Ficha técnica
Dogville
Dinamarca / Suécia / França /Noruega / Holanda / Finlândia / Alemanha / Itália / Japão / Estados Unidos / Inglaterra. 2003.
Duração 177 min.
Direção: Lars Von Trier.
Roteiro: Lars Von Trier.
Distribuição: Imovision.
Elenco: Nicole Kidman – Grace; Harriet Andersson – Gloria; Lauren Bacall – Ma Ginger; Paul Bettany – Tom Edison, filho; Blair Brown – Sr. Henson; James Caan – O pai; Patricia Clarkson – Vera; Jeremy Davies – Bill Henson; Ben Gazzara – Jack McKay; Philip Baker Hall – Tom Edison, pai; John Hurt: Narrador off; Zeljko Ivanek: Ben

Devaneios sobre o nada

Disse Nietzsche certa vez que "convicções são prisões". Fico a observar os movimentos dos radicais, dos religiosos, dos cínicos e vejo o quanto o ser humano é criador de suas próprias cadeias. Temos uma grande vocação para o ataque. Criamos antíteses em todo tempo. Se não gosto de algo, envido forças para objetar aquilo que me incomoda.

E aí me vem à mente outra frase de Nietzsche: "A verdade não é algo que alguém tenha e outro não". Talvez, um dos grandes males da humanidade seja essa necessidade de fecundar "verdades". Segundo o próprio Nietzsche, uma das perguntas mais relevantes feitas em toda a história da humanidade, encontra-se na bíblia. Ela não veio de Cristo ou de um dos profetas. Foi Pôncio Pilatos, o governador romano, quem a proferiu. Disse o famoso personagem histórico: "O que é a verdade?". Essa pergunta frágil e pertubadora é a grande questão a ser enfrentada por todo homem corajoso. 

Convicções estabilizam entendimentos. Estes supostos entedimentos geram uma garantia, uma sensação de segurança. Eximimo-nos de refletir por causa disso. De conseguir autonomia. Os homens mais felizes foram/são aqueles que, olhando para dentro de si, para os reveses, contradições e feiúras humanos, não se escandalizaram e acabaram avançando para uma nova etapa: a aceitação de sua condição enquanto criatura humana, colocado num universo imparcial, regido por leis naturais. 

Uma última afirmação nietzscheniana: "Quando não se coloca o peso da vida na própria vida, mas sim no 'além', no nada, então retira-se da vida toda a sua importância".

"O que é a verdade?"

Cito outro filósofo (Soren Kierkegaard): "Procuro uma verdade que seja verdadeira para mim". Eis a minha missão, eis a tua missão, eis a nossa missão.

segunda-feira, março 26, 2012

Uma excursão por Paris?

Assisti, neste final de semana, ao filme Meia Noite em Paris. Gostei da película de Woody Allen. Inicialmente, julguei que o filme seria uma espécie de movie tour sobre Paris. Errei. Apesar de se deter em muitos aspectos belos da capital francesa, com suas alamedas, cafés, livrarias, a obra de Allen possui momentos de muito graça e descontração intelectual.

Meia Noite em Paris é o mote para uma viagem de Gil (Owen Wilson) para a Paris de 1920, época de ouro da cultura francesa. O personagem de Owen Wilson embarca num carro antigo para o encontro com grandes intelectuais do quilate de Ernet Hemingway, Gertrude Stein, o casal Fitzgerald, Pablo Picasso, Buñuel e outros nomes importantes. Gil é um falastrão cômico. É um romancista frustrado. Um péssimo namorado. Alguém que poderíamos julgar como anti-herói. Woody Allen é um mestre nesse sentido. Dois momentos engenhosos no filme se dão quando Gil chama de "pseudo-intelectual" à personagem do ator Michael Sheen. Na verdade, Gil estaria falando da própria obra. Ou seja, essa afirmação possui uma forte ressonância metalinguística. E outra é quando Gil dá um dica de filme a Buñuel. A cara de expressividade do cineasta espanhol é espetacular.

Achei o filme engenhoso (seria realismo fantástico?). Bem amarrado. O roteiro é bom. Vi a obra e, ao meu modo de entender, é uma piada contra supostos intelectuais. Vale a pena assistir. Temos no filme um Woody Allen diferente de Crimes e Pecados. Recordo-me que quando da estreia desse filme, o ano passado, queria tê-lo visto no cinema. Mas, infelizmente, não deu certo. Rapidamente ele saiu de cartaz. Recordo-me que havia uma sessão em um cinema distante da minha casa. Acabei perdendo a oportunidade ver. Mas, tendo visto o filme ontem, creio que valeu a experiência - mesm oque tardia.


quarta-feira, março 21, 2012

O Outono

Fiz esta postagem há três anos atrás - 2009. Queria escrever algo sobre o Outono. Pois se trata de minha estação favorita. Mas, vou reavivar este texto de Rubem Alves. Boa leitura!

Esperei com certo anelo a chegada do do outono. É a estação dos meus desejos poéticos. As mudanças climáticas têm modificado com bastante radicalidade as características das estações. O verão foi mais quente que o normal. Senti-me mal com esse fato. Indignado, enraivecido contra a humanidade gananciosa e avarenta, sei que o capitalismo está acabando com o natural. Li recentemente, que já há empresas esperando que o gelo dos pólos derretam para que se apropriem das reservas de gás e pétroleo escondidas nos extremos do planeta. São consideradas como as maiores reservas do mundo. Alguns especialistas estão sendo encaminhados por empresas americanas e européias para vasculharem por meio de pesquisas quais os locais mais vantajosos. Enquanto o planeta como um todo sofre com as variações climáticas, há quem somente pense em lucrar. Infelizmente, para o abismo caminha a humanidade. Todavia, não quero fixar atenção nesse fato. Pensar no outono faz ventilar dentro de mim sensações agradáveis. Já consigo perceber algumas modificações que se perpetram durante os dias: as noites chegam mais cedo, sempre acompanhada por uma escuridade fria; as manhãs trazem consigo aquela brisa suave. Durante o dia o sol mostra-se tímido. Sempre hesitante, a luz é um facho morno que impregna percepções sensíveis.

Resolvi postar esta crônica do Rubem Alves, um cultor da beleza. É um texto leve, delicioso, que retrata o mistério e o encanto do outono. O outono é a estação dos poetas. Vai ainda como oferta de beleza, um fragmento de um concerto para flauta de Mozart, com Emmanuel Pahud. Logo abaixo está o texto de Rubem Alves.





O Outono

Foi-se, finalmente, o Verão, não sem antes, fazer algumas grosserias e malcriações: trovejou, relampejou, choveu, inundou. Não queria ir embora. Compreendo. Queria ficar para ver e namorar o Outono, que é muito mais bonito que ele. Verão, quarentão: recusava-se a aceitar os sinais da passagem do tempo. Não queria dizer adeus. Gostaria de ficar. A vida é tão boa! Mas o tempo é implacável. O Sol disse que a hora do seu adeus havia chegado. Foi se inclinando no céu, suas viagens cada vez mais curtas, as noites mais longas, o crepúsculo chegando mais cedo, as manhãs chegando mais tarde. O vento antes convidava a que se tirasse a camisa. Agora ele causa arrepios e chama os agasalhos das gavetas onde dormiam. O céu fica mais azul. Deve ter sido numa tarde de Outono que os Beatles compuseram aquela balada que canta: “...because the Sky is blue it makes me cry...” E o verde das plantas fica mais verde. O Verão é inquieto. Tudo nele convida a sair e a agir. O Outono é tranqüilo, introspectivo, convida ao recolhimento e à meditação. É um convite ao pensamento.
Gosto especialmente das suas tardes. O Verão é a estação do meio-dia. O Outono vive mais ao sol que se põe. E como são belos os dois, O Outono e as tardes. Há uma pitada de tristeza misturada no ar. “O que é bonito enche os olhos de lágrimas”, diz a Adélia. Os dois se parecem porque os dois estão cheios de adeus.

A tarde

... é este ssossego do céu
com suas nuvens paralelas
e uma última cor penetrando nas árvores
até os pássaros.
É esta curva dos pombos, rente aos telhados,
este cantar de galos e rolas, muito longe;
e, mais longe, o abrolhar de estrelas brancas,
ainda sem luz...

Na cidade onde eu vivi, no interior de Minas, ao crepúsculo se tocava a Ave Maria, e era como se toda a natureza parasse e rezasse. Eu gostava de ficar olhando para as árvores: havia uma imobilidade absoluta no ar. Nem um único tremor perturbava a tranquilidade pensativa das folhas. E as nuvens ao poente se coloriam de verde claro, passando pelos, amarelos, laranjas, e vermelhos, até o roxo, que se preparava para desaparecer na escuridão. Tudo belo. Tudo triste. E pensamos pensamentos diferentes daqueles de durante o dia. Para Wordsworth,

as nuvens que se ajuntam ao redor do sol que se põe
ganham seu colorido triste
de olhos que têm atentamente
observado a mortalidade dos homens.

O crepúsculo e o Outono nos fazem retornar à nossa verdade. Dizem o que somos. Metaforas de nós mesmos, eles nos fazem lembrar que somos seres crepusculares, outonais. Também somos belos e tristes... Como o Verão quarentão também nós não queremos partir... Paul Bouget nos diz:

Quando, ao sol que se põe, os rios ficam cor de rosa
e um leve tremor percorre os campos de trigo,
parece das coisas surgir uma suplica de felicidade
que sobe até o coração perturbado.
Uma súplica de degustar o encanto de se estar no mundo
enquanto se é jovem e a noite é bela.
Pois nós vamos,
como se vai esta onda:
Ela, para o mar,
nós para a sepultura.

Quem quer que pare para ouvir as vozes do Outono e da tarde perceberá que, dentro da sua beleza, nos falam a nossa vida e a nossa morte. Nada de mórbido. Só podem viver bem aqueles que aprendem a sabedoria que a morte ensina.
Foi assim que o professor de literatura, no filme A sociedade dos poetas mortos, iniciou o aprendizado dos seus alunos. Vocês se lembram? Levou-os até uma fotografia onde se encontravam, imobilizadas sobre o papel, pessoas. Agora todas estavam mortas. Também nós, um dia. A lição da poesia é que é preciso contemplar o crepúsculo no horizonte para se sentir a beleza incomparável do momento. Cada momento é único. Não há tempo para brincadeiras. Carpe diem: colha o dia, como algo que nunca mais se repetirá, como quem colhe o crepúsculo, “antes que se quebre a corrente de prata, e se despedace a taça de ouro...” Beba cada momento até as últimas gotas. É preciso olhar para o Abismo face a face, para se compreender que o Outono já chegou e que a tarde já começou. Cada momento é crepuscular. Cada momento é outonal. Sua beleza anuncia seu iminente mergulho no horizonte.
Quando o sol está a pino estas ideias não nos perturbam. Tudo parece estar bem. Há muito tempo ainda. As rotinas do trabalho ocultam a nossa verdade. Mas elas não podem impedir nem que a tarde chegue, com suas cores de adeus, e nem que o Outono chegue, anunciando a proximidade do Inverno. E eles nos forçam a ter pensamentos diferentes, pensamentos de solidão. São mestres silenciosos. Se prestarmos atenção e ouvirmos o que nos dizem, ficaremos sábios. Porque sabedoria é isto: contemplar o abismo, sem ser destruído por ele. Nas palavras de Rilke, “conter a morte inteira, docemente, sem nos tornar amargos”.

ALVES, Rubem. O Retorno e o Terno: crônicas. Campinas, SP – Editora Papirus, 1997, p. 95-97.

domingo, março 18, 2012

Sábado Movie - Trier, Wagner e a "Melancolia" do fim do mundo

Fica-me uma sensação dúbia todas as vezes que assisto a um filme de Lars Von Trier. Inicialmente, fico pensando naquela abordagem simbolicamente excessiva. Penso que se trata de exagero, de megalomania. Mas, acabo tendo que concordar que Trier é um dos grandes diretores atuais. Não pretendo fazer uma reflexão contundente sobre o último filme que vi ontem (Melancolia, de 2011) - até por que me falta paciência e cabedal técnico para isso. Mas, ao ver os filmes de Trier fico refletindo que, no diretor dinamarquês, a superfície não é "aquilo" que ele quer que pensemos, que nos incomodemos.

O mar de Trier é vasto, imenso. Olhamos para a superfície e vemos o aparente. É no fundo, no símbolo, que está a sua reflexão mais refinada. Observando os seus dois últimos filmes - O Anticristo e Melancolia - vemos que este é mais simples do que aquele. O primeiro é um mergulho nos símbolos. É tão estereotipado que chega a irritar. Trier já criou uma marca - suas obras são reflexões duras, pungentes e de dores lancinantes. Em O Anticristo a fotografia vai do etéreo-poético da cena inicial, ao inferno telúrico da floresta. Da cena de amor embaixo da água, no qual vemos um pênis penetrar uma vagina como se aquilo fosse poesia da natureza, à agonia de um bloco de concreto amarrado à perna do personagem. Do abraço dos corpos abandonados ao prazer, à dor de perder o filho. Ou seja, o filme é uma tentativa de nos fazer silenciar. De ser convincente sob o ponto de vista psicanalítico. Trier quer nos atacar em todo tempo. O grande problema é que Trier ao fazer isso, não o faz com a naturalidade de um Bergman ou de um Tarkovski, cineastas cujas obras o dinamarquês se inspira.

Em Melancolia, uma obra de ficção científica, mas com requintes profundos de agonia, dor, depressão; e o cético e estóico sobrepondo-se à inocência e ao otimismo que, no fim, não nos leva a lugar nenhum, pois a vida na terra não vale a pena. Tese dura e cortante de Trier. Como aquele tese anti-humana de Dogville. Seguindo os pressupostos do Dogma 95, Trier não insere trilha sonora em Melancolia. A única sonoridade que surge é a Abertura da ópera Tristão e Isolda, uma das peças mais viscerais da história da música. Wagner torce a possibiliadade de fazer uma obra musical. Nunca vi o início de uma obra falar tão cética, negativa e tragicamente quanto aquela de Wagner. Melancolia insere a obra de Wagner, como se a obra do compositor alemão fosse uma leitmotiv (grande ironia de Trier), que nos leva a repisar a dor antes já sugerida na abertura do filme. O início do filme já nos sugere o fim. O planeta Melancolia colidirá com a Terra. Não restará nada.

Ninguém sentirá falta desse planeta insignificante da Via-Láctea. A vida na terra é um equívoco. Não existe saída. Estamos abandonados em um universo frio. Para que não sucumbamos, criamos linguagens, símbolos, explicações mirabolantes. Casamo-nos. Viajamos. Temos filhos. Acreditamos que deixaremos um mundo mais justo e digno para as próximas gerações. Acreditamos nos imperativos categóricos. Mas não passamos de um planeta cuja grandeza é o nosso próprio desvalor. No fundo, a tese que sobra é que as leis universais não cedem às nossas poesias e explicações religiosas. Nem mesmo a ciência é capaz de explicar e trazer otimismo, estabilidade e segurança às nossas consciências. O otimismo da ciência sucumbe ante ao poder enorme das forças incontroláveis. Nossos saberes são anêmicos e não fazem cócegas no grande, no imponderável.

O final do filme é de uma beleza extraordinária. O planeta Melancolia, cresce, agiganta-se, aproxima-se da Terra, as personagens Claire (Charlotte Gainsbourg), Justine (Kirsten Dunst) e Leo (Cameron Spurr) amparam-se embaixo de uma construção de gravetos. Seria a "caverna mágica", uma tentativa de construir um síbolo contra o caos, ou seja, contra a catástrofe apocalíptica iminente? O fato é que, por mais que enxerguemos exageros em Trier, ao final, sempre aquiescemos que suas produções nos tiram do lugar comum.


quinta-feira, março 15, 2012

Após 129 anos da morte, a voz ainda fala

"A doutrina de Marx suscita em todo o mundo civilizado a maior hostilidade e o maior ódio de toda a ciência burguesa (tanto a oficial como a liberal), que vê no marxismo um a espécie de "seita perniciosa". E não se pode esperar outra atitude, pois, numa sociedade baseada na luta de classes não pode haver ciência social "imparcial". De uma forma ou de outra, toda a ciência oficial e liberal defende a escravidão assalariada, enquanto o marxismo declarou uma guerra implacável a essa escravidão"
Lenin

Ontem, dia 14 de março, foi o Dia da Poesia, mas também foi dia em que o mundo comemorou 129 anos da morte física de Karl Marx. É curiosa a força que o pensador alemão ainda possui. O século XX, foi o século de Marx. Após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, há quem ache que falar em marxismo, comunismo, socialismo seja um grande contra-senso  Ledo engano. Marx é uma força rediviva. Seus textos ainda continuam vivos e atuais. Apenas para exemplificar, Karl nunca foi tão lido na Meca do Capitalismo, os Estados Unidos da América, como o é atualmente. Muitos são os exemplares de O Manifesto do Partido Comunista e O Capital que têm sido vendidos por lá.

Quando falamos em Karl Marx, falamos de uma potência. O pensador nunca nos deixa inertes. Sempre nos movemos em relação a ele. Se não o fazemos por amor, fazemo-lo por ódio. Se o movimento não é centrípeto é centrífugo - ou vice e versa. Lenin, um dos seus seguidores mais famosos, disse certa vez que o pensamento de Marx promove ódio à toda a ciência burguesa.

Marx se auto-explica, dizendo que a sua missão "não era explicar o mundo, como tantos outros filósofos fizeram". Que essa não deve ser a sina da filosofia e do engajamento de quem quer que seja. E talvez aqui resida a raiva ferina aos seus escritos. Para Marx, a função da filosofia e do engajamento "é mudar o mundo". Ou seja, estar em Marx é, a priori, está munido de um sentido de mudança. As páginas velhas da história, escritas com o sangue dos trabalhadores, precisam ser reescritas pelos próprios trabalhadores.

Desde o final de minha adolescência, sempre observei que, quando falam de Marx, ou falam com ódio ou com um amor religioso exagerado. Penso que descobri o porquê de tal aversão (olha a minha presunção!). A explicação de tal fato veio com uma frase de um dos seus discípulos - Antonio Gramsci. O pensador italiano disse que "dizer a verdade é sempre revolucionário". Quando nos debruçamos sobre qualquer texto de Marx, fica-nos a certeza de que estamos diante de um bisturi que cortou os membros da história. Karl foi fundo em sua descrição, em sua análise. Impiedoso em sua crítica da anatomia das sociedades. Constatou um modelo que perdura em todas as épocas - a batalha pela luta de classes.

Negar esse fato é negar a história. É, simplesmente, negar a condição de bilhões de homens e mulheres que vivem e já viveram a tirania opressiva. Que tiveram/têm os seus direitos negados; e a dignidade usurpada. A capacidade de alimentação e libertação olvidadas. Marx levantou as saias morais da história e denunciou a orgia e lascívia dos ricos sobre os pobres. O parasitismo das sociedades ditas "civilizadas" sobre os "incivilizados". Os antídotos que são forjados numa tentativa de explicar o inexplicável.

A frase clássica de Hobbes de que "o homem é o lobo do próprio homem" fez com que se criassem mecanismos para abafar o barbarismo dos homens sobre os homens. Para isso era necessário criar uma força que garantisse a ordem e impedisse que "o homem violentasse o homem". Uma força que fosse um agente imparcial para preservar a todos. Tal ente é o Estado Moderno, garantidor do bem comum.

Para Marx, a estrutura ficará viciada se, a sua formação ocultar a selvageria das relações. O Estado Moderno não é nada mais nada menos do que o desejo da burguesia. O que ele diria sobre a nossa sociedade atual? Sobre a nossa ideia ordinária de uma democracia, que nos dá a "liberdade" para escolher apenas quem serão os líderes que arrancarão nossos próprios ossos. Ou seja, os algozes que vão morder nossas carnes bambas pelo trabalho excessivo. Vivemos um ideal de sociedade que nos leva apenas à dominação e à domesticação da vontade. Julgamos que ter dinheiro e poder para consumir bens duráveis e não duráveis é o ideal para se viver bem. Esquecemos que essa é parte que nos cabe de nossa ração. Ou como diria o Chico Buarque na música Funeral de um Lavrador: "É a parte que te cabe deste latifúndio". Que esse modelo leva à barbárie e à selvageria. Ao predatismo da natureza. À cataclísmica situação ecológica que enfrentamos.

Se a infra-estrutura está viciada, a super-estrutura repetirá tais vícios. É por isso que as instituições que surgem numa sociedade capitalista, defenderão com unhas e dentes o capitalismo. Criarão linguagens. Explicações funcionalistas e positivistas do destino para o destino daquela sociedade. Falar-se-á em progresso. Em desenvolvimentismo. As demais instituições - a ciência, a religião, a política, as artes, a cultura em geral - reproduzirão esse anseio viciado. Não me assusta quando vejo alguém falando mal de Marx. Quando constato tal realidade, penso conjecturo duas hipóteses:

(1) Se o sujeito é proletário (apesar de ser um equívoco dorível ouvir um trabalhador falar mal de Marx), entendo que o veneno do "hospedeiro" o tomou. É como se o discurso do vencedor estivesse em seus lábios. Paulo Freire em seu texto clássico, A Pedagogia do Oprimido, disse que: "Os oprimidos, que introjetam a 'sombra' dos opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando a expulsão desta sombra, exigiria deles que 'preenchessem' o 'vazio' deixado pela expulsão com outro 'conteúdo' - de sua autonomia". Em outras palavras, a liberdade que ostentam ter é a liberdade "cerceada" e ilusória dada pelo opressor. Em nossa sociedade, a liberdade que temos é a liberdade para consumir as mercadorias que o mercado nos oferece. Ficamos felizes à medida que consumimos mais e mais. A arte, o engenho, o conhecimento, os corpos, o saber, a cultura, o turismo, transformaram-se em fetiche e alimentam as nossas ânsias. Quanto mais os temos, mais nos sentimos livres.

(2) Se ele não gosta de Marx e sabe o motivo por que não gosta, não sendo proletário, creio que ele esteja correto. Quem é algoz, jamais gostará da vítima. Quem explora, jamais sentirá comiseração pelo explorado. Quem está na condição de verdugo, não sentirá conforto se a sua atividade for criticada e exposta cientificamente.

Então, termos a oportunidade para dizer: "Parabéns, Marx, você é imensamente atual. Necessário para que entendamos a situação do trabalhador que levanta todos os dias cedo. Que se ergue para alimentar a sua família. Que paga tributos. Que produz mais-valia".

Para finalizar, um trecho da música Pedro Pedreiro de Chico Buarque:

Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem de quem não tem vintém
Pedro pedreiro fica assim pensando
Assim pensando o tempo passa e a gente vai ficando prá trás
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol, esperando o trem
Esperando aumento desde o ano passado para o mês que vem
Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem de quem não tem vintém
Pedro pedreiro espera o carnaval
E a sorte grande do bilhete pela federal todo mês
Esperando, esperando, esperando, esperando o sol
Esperando o trem, esperando aumento para o mês que vem
Esperando a festa, esperando a sorte
E a mulher de Pedro, esperando um filho prá esperar também (...)
Letra completa AQUI
Carlos Antônio M. Albuquerque

quinta-feira, março 08, 2012

O que a esquerda deveria aprender com os evangélicos

Impossível não postar uma análise tão profunda e tão visceral. Uma análise contrastante do universo prático e não burocrático dos evangélicos e do progressismo de gabinete. Aquela atitude velha e que só promove alardes e radicalismos supostamente intelectualizados da esquerda. Segue o texto:

O que a esquerda deveria aprender com os evangélicos

Ultimate Fighting Championship: Marx vs. Cristo

"As massas de homens que nunca são abandonadas pelos sentimentos religiosos
então nada mais vêem senão o desvio das crenças estabelecidas.
O institnto de outra vida as conduz sem dificuldades
ao pé dos altares e entrega seus corações aos preceitos
e às consolações da fé."


Alexis de Tocqueville, "A Democracia na América" (1830), p. 220.

No Brasil, um novo confronto, na forma como dado e cada vez mais evidente e violento, será o mais inútil de todos: o do esclarecimento político contra o obscurantismo religioso, principalmente o evangélico, pentecostal ou, mais precisamente, o neopentecostal. Lamento informar, mas na briga entre os dois barbudos – Marx e Cristo – fatalmente perderemos: o Nazareno triunfa. Por uma razão muito simples, as igrejas são o maior e mais eficiente espaço brasileiro de socialização e de simulação democrática. Nenhum partido político, nenhum governo, nenhum sindicato, nenhuma ONG e nenhuma associação de classe ou defesa das minorias tem competência e habilidade para reproduzir o modelo vitorioso de participação popular que se instalou em cada uma das dezenas de milhares de pequenas igrejas evangélicas, pentencostais e neopentecostais no Brasil. Eles ganharão qualquer disputa: são competentes, diferentemente de nós.

Muitos se assustam com o poder que os evangélicos alcançaram: a posse do senador Marcello Crivela, também bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, no Ministério da Pesca e a autoridade da chamada “bancada evangélica” no Câmara dos Deputados são dois dos mais recentes exemplos. Quem se impressiona não reconhece o que isso representa para um a cada cinco brasileiros, o número dos que professam a fé evangélica ou pentecostal no Brasil. Segundo a análise feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a partir dos microdados da Pesquisa de Orçamento Familiar 2009 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a soma de evangélicos pentecostais e outras denominações evangélicas alcança 20,23% da população brasileira. Outros indicadores sustentam que em 1890 eles representavam 1% da população nacional; em 1960, 4,02%.

O crescimento dos evangélicos não é um milagre, é resultado de um trabalho incansável de aproximação do povo que tem sido negligenciado por décadas pelas classes mais progressistas brasileiras. Enquanto a esquerda, ainda na oposição política, entre a abertura democrática pós-ditadura e a vitória do primeiro governo popular no Brasil, apenas esbravejava, pastores e missionários evangélicos percorreram cada canto do país, instalaram-se nas regiões periféricas dos grandes centros urbanos, abriram suas portas para os rejeitados e ofereceram, em muitos momentos, não apenas o conforto espiritual, mas soluções materiais para as agruras do presente, por meio de uma rede comunitária de colaboração e apoio. O que teve fome e dificuldade, o desempregado, o doente, o sem-teto: todos eles, de alguma forma, encontraram conforto e solução por meio dos irmãos na fé. Enquanto isso, a esquerda tinha uma linda (e legítima) obsessão: “Fora ALCA!”.

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O crescimento dos evangélicos não é um milagre,
é resultado de um trabalho incansável
de aproximação com o povo

Desde Lutero, a fé como um ato de resistência (Life of Martin Luther and and the Heros of Reformation, litografia, 1874)

O mapa da religiosidade no Brasil revela nossa incompetência social: os evangélicos e pentecostais são mais numerosos entre mulheres (22,11% delas; homens, 18,25%), pretos, pardos e indígenas (24,86%, 20,85% e 23,84%, respectivamente), entre os menos instruídos (sem instrução ou até três anos de escolaridade: 19,80%; entre quatro e sete anos de instrução: 20,89% e de oito a onze anos: 21,71%) e na região norte do país, onde 26,13% da população declara-se evangélica ou pentecostal. O Acre, esse Estado que muitos acham que não existe, blague infantilmente repetida até mesmo por esclarecidos militantes de esquerda, tem 36,64% de evangélicos e pentecostais. É o Estado mais evangélico do país. Simples: a igreja falou aos corações e mentes daqueles com os quais a esquerda nunca verdadeiramente se importou, a não ser em suas dialéticas discussões revolucionárias de gabinete, universidade e assembleia.

O projeto de poder evangélico não é fortuito. Ele não nasceu com o governo Dilma Rousseff. Ele não é resultado de um afrouxamento ideológico do PT e nem significa, supõe-se, adesão religiosa dos quadros partidários. Ele é fruto de uma condição evangélica do país e de uma sistemática ação pela conquista do poder por vias democráticas, capitalizada por uma rede de colaboração financeira de ofertas e dízimos. Só não parece legítimo a quem está do lado de fora da igreja, porque, para cada um dos evangélicos e pentecostais, estar no poder é um direito. Eles não chegaram ao Congresso Nacional e, mais recentemente, ao Poder Executivo nacional por meio de um golpe. Se, por um lado, é lamentável que o uso da máquina governamental pode produzir intolerância e mistificação, por outro, acostumemo-nos, a presença deles ali faz parte da democracia. As mesmas regras políticas que permitiram um operário, retirante nordestino e sindicalista chegar ao poder são as que garantem nas vitória e posse de figuras conhecidas das igrejas evangélicas a câmaras de vereadores, prefeituras, governos de Estado, assembleias legislativas e Congresso Nacional. O lema “un homme, une voix” (“um homem, uma voz”) do revolucionário socialista L.A. Blanqui (1805-1881), “O Encarcerado”, tem disso.

Afora a legitimidade política – o método democrático e a representação popular não nos deixam mentir – a esquerda não conhece os evangélicos. A esquerda não frequentou as igrejas, a não ser nos indefectíveis cultos preparados como palanques para nossos candidatos demonstrarem respeito e apreço pelas denominações evangélicas em época de campanha, em troca de apoio dos crentes e de algumas imagens para a TV. A esquerda nunca dialogou com os evangélicos, nunca lhes apresentou seus planos, nunca lhes explicou sequer o valor que o Estado Laico tem, inclusive como garantia que poderão continuar assim, evangélicos ou como queiram, até o fim dos tempos. E agora muitos militantes, indignados com a presença deles no poder, os rechaçam com violência, como se isso resolvesse o problema fundamental que representam.

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A esquerda nunca dialogou com os evangélicos,
nunca lhes apresentou seus planos,
nunca lhes explicou sequer o valor do Estado Laico

George Whitefield (1714-1770) pregando nas colônias britânicas

Apenas quem foi evangélico sabe que a experiência da igreja não é puramente espiritual. E é nesse ponto que erramos como esquerda. A experiência da igreja envolve uma dimensão de resistência que é, de alguma forma, também política. O “não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito” (Paulo para os Romanos, capítulo 12, versículo 2) é uma palavra de ordem poderosa e, por que não, revolucionária, ainda que utilizada a partir de um ponto de vista conservador.

Em nenhuma organização política o homem comum terá protagonismo tão rápido quanto em uma igreja evangélica. O poder que se manifesta pela fé, a partir da suposta salvação da alma com o ato simples de “aceitar Jesus no coração como senhor e salvador”, segundo a expressão amplamente utilizada nos apelos de conversão, transforma o homem comum, que duas horas antes entrou pela porta da igreja imundo, em um irmão na fé, semelhante a todos os outros da congregação. Instantaneamente ele está apto a falar: dá-se o testemunho, relata-se a alegria e a emoção do resgate pago por Jesus na cruz. Entre os que estão sob Cristo, e são batizados por imersão, e recebem o ensino da palavra, e congregam da fé, não há diferenciação. Basta um pouco de tempo, ele pode se candidatar a obreiro. Com um pouco mais, torna-se elegível a presbítero, a diácono, a liderança do grupo de jovens ou de mulheres, a professor da escola dominical. Que outra organização social brasileira tem a flexibilidade de aceitação do outro e a capacidade de empoderamento tal qual se vêem nas pequenas e médias igrejas brasileiras, de Rio Branco, das cidades-satélite de Brasília, do Pará, de Salvador, de Carapicuíba, em São Paulo, ou Santa Cruz, no Rio de Janeiro? Nenhuma.

Se esqueçam dos megacultos paulistanos televisionados a partir da Av. João Dias, na Universal, ou da São João, do missionário R.R. Soares. Aquilo é Broadway. Estamos falando destas e outras denominações espalhadas em todo o território nacional, pequenas igrejas improvisadas em antigos comércios – as portas de enrolar revelam a velha vocação de uma loja, um supermercado, uma farmácia – reuniões de gente pobre com sua melhor roupa, pastores disponíveis ao diálogo, festas de aniversário e celebrações onde cada um leva seu prato para dividir com os irmãos. A menina que tem talento para ensinar, ensina. O irmão que tem uma van, presta serviços para o grupo (e recebe por isso). A mulher que trabalha como faxineira durante a semana é a diva gospel no culto de domingo à noite: canta e leva seus iguais ao júbilo espiritual com os hinos. A bíblia, palavra de ninguém menos que Deus, é lida, discutida, debatida. Milhares e milhares de evangélicos em todo o país foram alfabetizados nos programas de Educação de Jovens e Adultos (EJAs) para simplesmente “ler a palavra”, como dizem. Raríssimo o analfabeto que tenha sido fisgado pela vontade ler “O Capital”, infelizmente. As esquerdas menosprezaram a experiência gregária das igrejas e permaneceram, nos últimos 30 anos, encasteladas em seus debates áridos sobre uma revolução teórica que nunca alcançou o coração do homem comum. Os pastores grassaram.

segunda-feira, março 05, 2012

Segunda sessão do sábado movie

Minha semana é bastante cheia. Trabalho como professor e a vida de quem ensina não é fácil. Quando não estamos em sala de aula, geralmente estamos preparando aulas ou corrigindo provas ou trabalhos. Minha mulher diz com certa recorrência que trabalho de professor "nunca acaba". E eu confirmo com todas as letras essa realidade em minha vida.

Com tanto tempo comprometido nessa atividade, sobra-me pouco espaço para fazer o que eu gosto. Ou seja, ler, ouvir música (embora quando estou em casa, sempre estou ouvindo alguma coisa) e assistir aos filmes de que gosto. Sendo sabedor dessa realidade de aperto, resolvi me munir de uma estratégia - os sábados vespertinos serão, doravante, chamados de "sábado movie". Em outras palavras: nas tardes de sábado, por volta das duas da tarde, terá início a minha sessão cinematográfica. Isso já me aconteceu por dois sábados seguidos.

No dia 25 de fevereiro, eu assisti ao filme Morangos Silvestres e, no último sábado, eu vi Amnésia (Memento), de 2000 - que havia sido indicado por um colega professor há algum tempo atrás. O filme do diretor Christopher Nolan, deixou-me com uma sensação de absurdo. Guy Pearce faz o papel de um sujeito que não consegue gravar as informações recentes em por causa de uma pancada que levou na cabeça. Ele fica impossibilitado de gravar as memórias mais distantes. Sabe do aqui e agora, mas rapidamente esquece aquilo que vivenciou em pouco tempo. O filme é constituído por um mosaico de acontecimentos que vão se encaixando e costurando os fatos fragmentados da vida do personagem vivido por Pearce. Apesar de o filme ser colorido, fez-me pensar naqueles noirs policiais no qual o fato nunca é solucionado.

Ou num romance kafkaniano, no qual percebemos o sofrimento do personagem, sem que este saia da "arapuca" que parecem ter armado para ele. E que por mais que ele faça movimentos, sua sina é estar preso em um cipoal de fatos viscosos e irracionais. A história é boa. O filme é bem contado. Tecnicamente, não aprsenta problemas. A atuação de Pearce é convicente. E ao final da película, proferimos em tom mofino: "O que foi isso que eu acabei de ver?" É assim que me sinto desde a última sessão do meu sábado movie.